A reportagem da InfoAmazonia conversa com um dos cientistas mais influentes do mundo, segundo pelo menos três listas de publicações internacionais. Marengo traz conceitos, reflexões e previsões climáticas para a Amazônia.
O planeta Terra está esquentando. O climatologista José Marengo, um dos mais influentes cientistas do mundo, afirma que o futuro pode ser de completa anormalidade: “não uso isso de ‘novo normal’, porque o clima já não é mais normal”, disse à InfoAmazonia. Apesar disso, ele pondera que “ainda não é o fim” e que se nós “fazemos parte do problema”, nós “também fazemos parte da solução”.
Seus esforços de pesquisa estão concentrados no Brasil. Marengo conta que busca descobrir quando, na história da Terra, mais de 200 botos teriam morrido por estresse térmico, como ocorreu no Amazonas neste ano.
Peruano, o climatologista chegou ao Brasil em 1994 e, desde lá, contribuiu com estudos sobre a crise climática e seus impactos. Já atuou no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) e na Organização Meteorológica Mundial (OMM). Hoje, desenvolve seu trabalho no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão responsável por prever e organizar a atuação do governo em casos de desastres naturais, e atua nos planos de adaptação do Brasil.
Há cinco anos, seu nome é visto como um dos mais influentes no mundo dentro do campo ambiental e da geociência, como apontam as listas da Clarivate Analytics, da Reuters e da Research.com. Esta última, mais recente, classificou o cientista em 242º lugar dentre os 11.258 mil que atuam na área de Ciências Ambientais.
Para o pesquisador, são os ribeirinhos e indígenas os grupos mais vulneráveis às mudanças climáticas na Amazônia, principalmente porque eles dependem dos rios para se locomover e se alimentar. A previsão, segundo ele, é de que o esperado inverno amazônico seja mais quente em 2024 e que a seca continue.
Nesta entrevista, concedida no primeiro dia da COP28, Marengo explica o que são os extremos e os eventos extremos — sim, são dois conceitos diferentes —, quais são as expectativas para o cumprimento das metas climáticas dos países e o que podemos esperar para o futuro da Amazônia dentro de um cenário de mudanças do clima.
InfoAmazonia — O que é um extremo climático e como podemos identificar quando um acontecimento está fora da normalidade?
José Marengo — A questão é exatamente definir o que é normalidade. Estatisticamente, nós trabalhamos com a média. Então, a temperatura, a chuva, todos tem uma média estimada. Quando algo se afasta muito da média, é quando existe um extremo. Por exemplo, saiu [a notícia] que ontem choveu 228 mm em Natal, no Rio Grande do Norte, mas a média é 22 mm. Então, temos um extremo. Existe uma diferença também entre extremo, que é o valor que foge da média, e o evento extremo. O evento extremo é o valor fora da média associado aos impactos gerados, que vimos também neste ano.
A tendência é que os eventos extremos sejam mais frequentes?
Como os dados da nossa história climática são curtos, temos uma dificuldade, porque precisamos da média. Este ano, no Amazonas, foi registrado em 16 de outubro a maior seca da história, com 12,70 metros, no Rio Negro. O menor número em mais de 100 anos. Isso foi um extremo. É possível definir porque temos uma série longa de registros. Mas os extremos estão aumentando em todo o mundo, como consequência do aquecimento global, e isso nos leva a pensar que os extremos no futuro ocorrerão com mais frequência e que mais pessoas vão morrer.
No Amazonas, nós tivemos mortes de botos, aumento de doenças e lagos completamente vazios. É comum ver pessoas atribuindo esses fatos ao aquecimento global. O que podemos dizer que foi causado pelas mudanças do clima e o que não foi causado?
Temos um termo que usamos na climatologia que se chama variabilidade climática. A variabilidade climática seria a forma como naturalmente o clima funciona, sem interferência humana. O El Niño, por exemplo, é um fenômeno climático, uma amostra da variabilidade natural do clima, o homem não tem nada a ver com esse fenômeno acontecendo. Se nós temos falta de chuva por causa do El Niño, isso seria um impacto do fenômeno. Mas a mudança climática ocorre mais no contexto antrópico, por interferência humana. O que nós temos agora na Amazônia é uma mistura dos dois.
Nós temos os efeitos do El Nino, um processo natural que provoca menos chuva. Com menos chuva, temos, então, o aumento da temperatura. O aquecimento do mundo é um processo antrópico. Muitos rios secaram e por isso, associado ao calor, os peixes morreram. Os botos ficaram nas águas rasas, ficaram lerdos por causa do estresse térmico e não conseguiram nadar para águas profundas e morreram. Estamos procurando na literatura se isso já aconteceu antes. Com os peixes, sim, mas, com os botos, é a primeira vez que vemos. Isso é algo que deixa este ano muito único.
Como você analisa a vulnerabilidade da Amazônia para as mudanças do clima?
Depende de que tipo de vulnerabilidade. O que acontece na Amazônia é que existe um número grande de pessoas vulneráveis, os ribeirinhos e indígenas dependem do rio para ir para as escolas, para levar seus produtos para as feiras, para viver. Não só quando existe a cheia e o rio inunda, mas quando existe a seca e as queimadas, a fumaça muitas vezes chega até as cidades. Então, isso atinge os grupos vulneráveis, as crianças, os idosos, as pessoas com doenças. E claro, a floresta e a biodiversidade. Os botos estão morrendo com o calor, então, a Amazônia é vulnerável. Na verdade, todo o país é vulnerável. Falando sobre densidade populacional talvez o semiárido do Nordeste seja o mais vulnerável de todos.
Marengo, quais são as previsões para a continuidade dos efeitos El Niño aqui na região?
O que se espera para a região amazônica é o agravamento da seca, porque ainda será ano [2024] de El Niño. Quando ele terminar, podemos entrar numa fase de transição ou entrar no La Niña. A última cheia histórica ocorreu cinco anos atrás, ou seja, levou um tempo. Então, não temos previsão de outra cheia histórica tão rapidamente. O risco maior é para a seca, o pico do El Niño é agora em janeiro e deve continuar até junho de 2024. O inverno amazônico que se espera provavelmente não vai acontecer, todos os modelos apontam que o inverno vai ser muito fraco.
Aqui nós estávamos esperando chuva para esse mês, mas não está chegando como sempre chega nesta época do ano.
Esse é o problema, as chuvas estão muito irregulares. Chove uma pancada à tarde, depois chove durante um dia o que devia ter chovido a semana toda. Depois, volta o tempo seco. O clima está muito irregular, já tem se observado isso há décadas. As ondas de calor vêm crescendo no Sudeste, no Sul. O clima está mudando realmente. Eu não uso isso de “novo normal”, porque o clima já não é mais normal. Para definir normalidade você tem que definir uma série de critérios, mas as coisas estão ficando mais extremas, o clima no futuro vai ser de mais extremos.
O Observatório do Clima publicou relatório com dados de emissão, mostrando que o Brasil pode ter metas ambiciosas para reduzir os dados se conseguir executar com eficácia o PPCdam. A nível global, ainda é possível que os países cumpram o acordo de manter o aquecimento em 1,5º C?
Está muito difícil. Esse compromisso foi firmado em 2015, mas depois disso ocorreram crises econômicas, pandemia e guerra. Tudo isso tirou a atenção dos governantes. Quando você reduz as emissões e o desmatamento agora, você verá os benefícios e as coisas boas só uma década depois. Mas se você tem uma pandemia em que estão morrendo milhões e milhões de pessoas, você tem que indicar todo o recurso para isso. Como consequência desses eventos não climáticos, a agenda ambiental ficou em último plano. No mundo, já estamos em quase 1,2º C. Para manter em 1,5º, nós deveríamos já ter controlado os níveis de CO2 e, pelo contrário, isso só está aumentando.
O Cemanden é um dos órgãos responsáveis por criar ações em casos de desastres climáticos. Como vocês estão trabalhando nessa nova gestão do governo federal?
O Brasil reduziu o desmatamento [este ano] mas tivemos muito prejuízo nos anos anteriores, muitas coisas ruins que não resolvemos nesse primeiro ano de governo. Estamos tentando sair da era da escuridão para ver a luz. Nós tentamos atualizar o Plano Nacional de Adaptação, criado em 2006, no governo passado, mas nada, não conseguimos. Agora, o governo atual já está trabalhando com o plano de clima e plano de adaptação. Os problemas já estão acontecendo, então, precisamos proteger as populações, proteger as propriedades. Isso está sendo conversado por todos os ministérios do governo. Estamos correndo atrás, realmente correndo.
Isso tudo exige dinheiro, muito dinheiro, precisamos definir o fundo de adaptação, quais países vão contribuir, quais são os responsáveis pelas emissões. E isso pode levar anos e anos em discussão. Existem lugares que já estão afetados, mas precisamos saber como os países vão se comprometer agora em Dubai. São discussões complexas que teremos na COP, vamos torcer para que os compromissos sejam cumpridos.
Marengo, no último mês, tivemos um aumento de pesquisas sobre os termos “ansiedade climática”, no Google. Como você enxerga essa perspectiva de futuro e essa angústia que muitos estão sentindo?
Olha, eu tenho ansiedade, estou tratando com psiquiatra, não tenho vergonha de dizer isso. Todos os dias os jornalistas ligam e me fazem perguntas, quando estou no banheiro, no cinema, no veículo, aparece um plin plin plin [som de notificação do celular]. Isso mostra um grau de ansiedade da sociedade e da imprensa que está procurando informação. É natural se preocupar, mas não é necessário ansiedade.
Por que? Porque o planeta já passou por fases biológicas assim, já foi mais quente, foi mais frio. Eventualmente, em centenas de anos, vamos entrar na nova era glacial e todos nós teremos sumido do mapa, existirão outras espécies. O clima muda. O que nós queremos com as adaptações é que nossa vida não seja muito complicada. Eu vejo gente falando que virou vegetariano porque o gado emite metano e outras pessoas dizendo que não querem ter filhos. Eu acho bom ter uma preocupação pelo clima, mas ansiedade é demais, não devemos chegar a isso.
Nós fazemos parte do problema, mas também fazemos parte da solução, então eu digo: ainda não é o fim, nós podemos pensar em medidas e podemos ter preocupação. Esse tema precisa continuar atual, temos que pensar sobre ele, mas não só quando ocorre algum extremo.