Políticos usam mentiras para aprovar projetos de leis ambientais de seus interesses, tudo pela família e por uma economia nada sustentável.
As mudanças climáticas estão afetando visivelmente a Amazônia Legal. Diariamente, a mídia comercial tem apresentado imagens de rios secando, de queimadas em proporções nunca vistas nos últimos anos, alta mortalidade de peixes e botos, principalmente no estado do Amazonas. Entretanto, são poucas as notícias que apresentam possíveis causas de aceleramento dos fenômenos, como o El Niño: Fenômeno natural que ocorre quando há o aquecimento do Oceano Pacífico Equatorial, causando alterações climáticas no mundo, ou orientam como frear suas consequências, como as que têm deixado territórios sem alimentos e acesso à água potável.
Para complicar ainda mais a desordem informacional, a desinformação é usada como estratégia pelos tomadores de decisão para dificultar a compreensão do que realmente acontece, não somente no Amazonas, mas em outros estados da Amazônia Legal, que também estão sendo afetados pela emergência climática, prejudicando ainda mais a compreensão geral e o enfrentamento a estes cenários.
Nos últimos meses, o Projeto Amazônia Livre de Fake, coordenado pelo Intervozes e mais 15 organizações amazônidas nos estados do Amazonas, Mato Grosso e Pará, tem mapeado algumas figuras públicas do cenário político com o objetivo de identificar quais são os difusores, quais os tipos de desinformação que eles disseminam, como se dá a circulação e o financiamento dos conteúdos enganosos.
Num primeiro levantamento, realizado de agosto a outubro de 2023, identificamos 90 desinformações produzidas por 31 cargos políticos, segmentados entre senadores, deputados federais, deputados estaduais e governadores nos três estados. A maior parte dessas representações compõem e atuam ou atuaram na Frente Parlamentar da Agropecuária, nas CPIs das ONGs e do MST, e na CPMI do 8 de janeiro, cujo relatório resultou no indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 60 pessoas.
Cerca de 40% das desinformações disseminadas são caracterizadas como notícias falsas, que aparecem em imagens e textos curtos, usadas de forma enganosa para enquadrar uma questão ou indivíduo. As narrativas divulgadas, principalmente pelos perfis de redes sociais das representações políticas, vêm normalmente com outras tipificações, como a falsa conexão entre as informações apresentadas.
Um exemplo disso é a publicação do deputado federal Fausto Santos Júnior (União Brasil) no dia 27 de setembro em sua conta do X (antigo Twitter). Ele acusa a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede Sustentabilidade), de ser displicente com a população da Amazônia e a favor das organizações da sociedade civil, classificada pelo parlamentar como ‘entidades estrangeiras’.
Além disso, ele relaciona a “inimiga” Marina Silva com a pavimentação da BR-319. Essa reconstrução da rodovia prevista é considerada por estudiosos da área ambiental como uma grande ameaça para toda a área de floresta, pois levaria o chamado “arco do desmatamento” para a porção mais norte da Amazônia.
O próprio governador do Amazonas Wilson Lima (União Brasil) também defende a pavimentação da BR-319 em decorrência de outros projetos de enfrentamento à estiagem e ao alto número de queimadas nas últimas semanas em seu estado, como já mencionado no artigo “Mídia comercial e ausência de políticas públicas alimentam o fogo amazônico”.
Já em Mato Grosso, a estratégia de utilizar a desinformação para ludibriar a população e manipular a favor do agronegócio tem sido a regra. O governador Mauro Mendes (União Brasil) utiliza o debate em relação à utilização dos termos “queimadas” ou “incêndios” para descrever a destruição de vegetação nativa por meio do fogo para atacar “a mídia internacional” e defensores do meio ambiente no país. Ele ainda afirma que incêndios ocorrem apenas “por algum sinistro, algum equívoco”, desconsiderando a parcela de queimadas intencionais para abertura de novas áreas para a produção do agronegócio.
Em entrevista publicada pelo site da revista Istoé em 25 de agosto de 2023, intitulada “O que chamamos de queimadas, lá fora chamam de incêndios”, Mendes ainda desconsidera a quantidade de focos, a área atingida, impactos à saúde, sociais e ao meio ambiente. Além de não mencionar gastos estatais para a prevenção e o combate ao fogo, especialmente considerando a falta de políticas essenciais, como os planos de manejo das unidades de conservação do Estado, que abriga além da Amazônia, Cerrado e Pantanal.
Esse processo desinformativo apoiado em posicionamentos oficiais de autoridades políticas é classificado pelo pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Dr. Phillip M. Fearnside, como “mentira institucionalizada”, quando a desinformação ganha uma aceitação generalizada por meio da repetição constante. Ele cita o caso da construção da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, e as inúmeras declarações oficiais que tentavam minimizar os impactos econômicos, sociais e ambientais que a obra gigantesca teria.
Para além do ambiente virtual, que muitas vezes passa pelo crivo de uma equipe de assessoria, as notas taquigráficas de sessões legislativas, por exemplo, nos permitem acompanhar momentos em que essas representações dão vazão a discursos menos polidos. É o caso do deputado Adail Filho (Republicanos-AM), que chegou a apresentar projeto de lei proibindo a veiculação de publicidade governamental em sites que tenham propagado informação comprovadamente falsa. Na sessão de 3 de outubro, na Câmara dos Deputados, ele fez coro ao discurso de Fausto Santos Jr e questionou a atuação e os interesses das organizações da sociedade civil durante a crise climática pela qual o Amazonas passa.
Discurso de ódio na defesa da família
Os danos ocasionados pela desinformação não se limitam aos objetivos econômicos das representações políticas, mas também têm consequências preocupantes para grupos vulnerabilizados. Na pesquisa, têm sido recorrentes conteúdos de ataques, principalmente aos povos indígenas e à comunidade LGBTQIAPN+.
Ainda no estado do Mato Grosso, temos acompanhado postagens discriminatórias da deputada federal Amália Barros (PL) que insiste em utilizar o termo “ideologia de gênero” para justificar um pedido de exoneração da diretora de uma escola pública de Juína – MT ao governador Mauro Mendes. Na filmagem publicada pela deputada, aparecem os alunos em uma quadra de esportes e o palestrante puxando o grito de guerra que dizia: “Héteros, as gays, as bi, as trans e as sapatões estão todas organizadas para fazer revolução”.
Amália, em sua postagem em 12 de setembro, classificou o vídeo, provavelmente editado e descontextualizado, como “Isso é um absurdo! Não podemos permitir episódios como esse, que aconteceu na escola estadual Artur Antunes Maciel, em Juína. E vocês, o que acham disso? Aguardando a posição do governo de Mato Grosso!”, escreveu. Segundo nota enviada à imprensa pela Secretaria de Estado de Educação (Seduc), a diretora da unidade foi afastada do cargo. Postagens sobre esse tema no mesmo período foram feitas por outros parlamentares, como Gilberto Cattani, Coronel Fernanda, ambos do PL, e Coronel Assis (União Brasil), indicando, entre outros fatores, o trabalho em rede para disseminar conteúdos contra grupos em situação de vulnerabilidade.
No Pará, outros políticos do mesmo partido de Amália seguem a bíblia que prega a violência contra a diversidade. Durante a semana da criança em outubro, o deputado federal Eder Mauro (PL) não somente usou as redes sociais para atacar as pessoas transgêneras, como divulgou em letras garrafais em outdoors espalhados pelos bairros de Belém e em cidades do interior: “Crianças trans não existem”.
O outdoor assim como algumas postagens em seus perfis nas redes sociais é um convite para a Marcha da Família, que foi realizada no dia 12 de outubro em Belém, no Pará. O evento foi capitaneado por Eder Mauro e a deputada federal Alessandra Haber (MDB) que, além de negarem a existência das crianças transgêneras, protestaram contra a descriminalização do aborto. O conteúdo da placa tem caráter ofensivo e criminoso, uma vez que direcionado a manifestar discriminação e ridicularizar pessoas transexuais e travestis. O Supremo Tribunal Federal (STF) determinou, em 2019, que atos de homofobia e transfobia sejam enquadrados como crime de injúria racial. Inclusive, essa divulgação do outdoor está sendo investigada pelo Ministério Público Federal.
Éder Mauro, além de práticas de discurso de ódio, foi considerado como o deputado “mais antiambiental do Pará” segundo a pesquisa Ruralômetro de 2022, coordenada coordenada pela Repórter Brasil, que avalia a atuação na Câmara a partir dos temas como meio ambiente, povos tradicionais e trabalhadores rurais. Éder também foi identificado na pesquisa Donos da Mídia, realizada no último período eleitoral de 2022 pelo Intervozes, e se tornou deputado a partir da área de segurança pública – o ex-delegado e reeleito deputado federal é alvo de 101 denúncias na Ouvidoria por sua atuação como policial. Apesar disso, ele foi categorizado como influenciador no estudo conduzido pelo Intervozes por ter mais de 200 mil seguidores no Facebook e considerável engajamento.
Outro político eleito, difusor de desinformação e aliado de primeira hora de Eder Mauro, o deputado estadual Rogério Barra (PL), ex-policial civil, defende em suas postagens nas redes sociais ser contra a “ideologia de gênero”. Essa expressão, usada pelo grupo “Escola sem Partido” em 2015, vai na contramão da educação sexual e identidade de gêneros no ambiente escolar.
Por isso, é importante debater, entre as discussões do projeto de lei 2.630/2020, conhecido como ‘PL das Fake News’, que está em andamento no Congresso Nacional, a desmonetização de contas de atores institucionais por plataformas digitais, uma vez que se trata de remuneração pessoal proveniente de investimentos realizados com recursos públicos. Nesta segunda fase da pesquisa “Amazônia Livre de Fake”, também estão sendo investigados os gastos dos políticos com a mídia.
E quem são os políticos proprietários de mídia?
Na Amazônia Legal, segundo reportagem da Agência Pública, “uma em cada cinco retransmissoras de TV da região pertencem a algum político”.
As palavras de ordem de Silas Câmara (Republicanos), deputado federal pelo Amazonas, são “Deus, Pátria, família e liberdade”. O irmão do deputado, o pastor Jônatas Câmara, é o único sócio da TV e Rádio Boas Novas, que é gerida por uma fundação cristã homônima e opera no Amazonas e no Pará. Além disso, a esposa e a filha do deputado, a também deputada federal Antônia Lúcia Câmara (Republicanos) e a advogada Milena Câmara, respectivamente, administram a emissora no Acre.
Durante a programação da Rádio e TV Boas Novas é constante a reprodução de conteúdos desinformativos e do discurso de ódio contra a população LGBTQIAPN+. Na Câmara Federal, Silas é líder da bancada evangélica e defendeu o posicionamento contra a criminalização da homofobia. Em 2010, a Fundação Boas Novas foi investigada por participação em um possível esquema de compra de votos.
Já no Pará, a família Barbalho detém o grupo Rede Brasil Amazônia de Comunicações, que inclui a RBA TV, que retransmite a TV Band, a Rádio Clube do Pará, mais quatro rádios afiliadas e o jornal Diário do Pará. Em 2022, a família Barbalho reelegeu Helder Barbalho (MDB) como governador e a mãe, Alcione Barbalho, como deputada federal (MDB), com a RBA TV como aliada. As acusações de abuso de poder contra Alcione remontam a 1998, quando a deputada iniciou sua carreira política. Ela é suspeita de envolvimento com esquema de desvio de dinheiro do Banpará em 2000, desvio de verbas do fundo eleitoral e infrações trabalhistas ocasionadas pelo não recolhimento do FGTS de 142 trabalhadores da RBA.
Em Mato Grosso, é a família Riva a protagonista da concentração de propriedade de mídias e poder político. A deputada estadual Janaina Riva (PSD) é esposa de Diógenes Fagundes, um dos sócios da Rádio e Televisão Massa. Diógenes é filho do atual senador, Wellington Fagundes (PL), e faz parte do quadro societário do grupo Agora de Comunicação, gerindo as TVs Cidade, Primavera e Vale, o portal de notícias Agora MT e três rádios: Jovem Pan FM 102,9, Jovem Pan FM 91,1 e Primavera FM. Janaina e sua mãe, Janete Riva, já foram investigadas por um suposto esquema de compra de votos nas eleições de 2014, mas a denúncia no Ministério Público Estadual foi arquivada.
A Fazenda Paineiras, de propriedade dos Riva, foi investigada dentro da Operação Jurupari, onde trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão, conforme investigação da Repórter Brasil, em 2010. A Fazenda Bauru, de propriedade da Floresta Viva Exploração de Madeira Ltda, cujos sócios são José e Janete Riva e que já teve Janaina Riva no quadro societário, também é alvo de diversas multas e embargos ambientais pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente (Sema).
Mesmo sendo ilegal que deputados federais e senadores tenham propriedades de rádio e TV, de acordo com o artigo 54 da Constituição Federal, devido aos empreendimentos explorarem concessões públicas sujeitas a conflitos de interesses ao serem geridos por agentes públicos, os políticos contam com a seletividade de um sistema de Justiça que insiste em pender a balança para o capital econômico quando o assunto é comunicação.
A cegueira da Justiça diante desse cenário tem consequências graves, uma vez que muitos jornalistas acabam sendo perseguidos justamente porque a linha editorial ou os políticos proprietários da mídia não desejam que as reportagens os denunciem. A organização internacional Repórteres Sem Fronteiras (RSF) mapeou a violência contra profissionais da imprensa no relatório “Amazônia: Jornalismo em Chamas” — um ataque à imprensa ocorre a cada cinco dias nos nove estados da Amazônia Legal.
Entre junho de 2022 e junho de 2023, foram registrados 66 casos de violações à liberdade de imprensa. Dessas ocorrências, 16 estavam relacionadas a reportagens que abordavam temas como agronegócio, mineração, povos indígenas e violações de direitos humanos. Pelo menos um terço desses incidentes ocorreu durante as últimas eleições gerais no Brasil. As violações à liberdade de imprensa incluem agressões físicas, assédio e ameaças.“Além de controlar diversos veículos de imprensa na região, autoridades políticas também passaram a financiar diretamente blogs de opinião, que se proliferam nos últimos anos na região norte do Brasil. Em locais onde a produção de notícias é escassa, o domínio das figuras políticas se reflete na proliferação de blogs de opinião, financiados diretamente por partidos, candidatos, governos ou lideranças de oposição”, diz um trecho do documento da RSF.
A desinformação, disfarçada de paletó verde na Amazônia, assemelha-se a um polvo com muitos tentáculos. Ela atua por meio de várias articulações entre os setores políticos, midiáticos e econômicos, ganhando força para promover projetos de leis prejudiciais às populações e ao meio ambiente.
Muito do que vem sendo decidido nas casas legislativas ou não é divulgado como deveria ou é eufemizado por matérias fabricadas, conteúdos falsos ou que manipulam e provocam deliberadamente confusão no debate público. Essa situação enfraquece a democracia e dificulta ainda mais as ações de combate às crises climáticas. Portanto, é fundamental que as lutas ambientais estejam alinhadas ao combate à desinformação e à promoção do direito à comunicação.
Esta coluna de opinião foi produzida pelo Grupo de Trabalho do Projeto Amazônia Livre de Fake, com base nos primeiros levantamentos da segunda fase do projeto.