Rio Negro está passando pela pior vazante da história em mais de cem anos, e os indígenas do Amazonas estão sofrendo com a escassez de suprimentos e com a fumaça das queimadas. Povos utilizam travessias por água para chegar ao médico e à escola, buscar recursos financeiros, visitar parentes e, inclusive, para se alimentar.
O rio Negro atingiu o nível mais drástico de vazante já registrado em mais de um século pela primeira vez neste ano, em 16 de outubro, atingindo 13,59 metros. Nesta quarta-feira (25), no entanto, o volume é ainda menor e já atingiu 12,73 metros. Em algumas localidades onde se via o extenso rio, hoje há apenas areia, barro e pedras. Por isso, comunidades indígenas estão isoladas ao redor de um cenário que mais parece um deserto. O estado tem 134 terras indígenas regularizadas e outras 27 em processo de demarcação. Muitas delas, às margens dos rios.
É atravessando a água doce que eles recebem atendimento médico especializado, recursos financeiros vindo de assistências governamentais, visitam parentes em outras aldeias, e se locomovem para as escolas. Principalmente: é o rio que dá o alimento de cada dia.
Sem o rio, tudo isso ficou mais difícil. A situação se agrava com o aumento das queimadas no estado. A região metropolitana de Manaus foi tomada, desde o início de setembro, por nuvens de fumaça. “Aqui nós somos mais de 3 mil pessoas, 400 e poucas famílias. Estamos sobrevivendo, com dificuldades para beber água e respirar”, conta Tuniel Mura, vice-conselheiro local de saúde indígena da aldeia Murutinga, do povo Mura, de Autazes.
Há duas semanas, a população da aldeia de Murutinga começou a ficar sem água no poço comunitário. Quando a água já estava chegando ao fim, eles conseguiram ajuda do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI). Juntos, aprofundaram mais o poço para encher de água tratada e assim ter o que beber. “Até o poço estava secando. Nunca houve uma seca assim. No começo, passamos por momentos piores, com falta de comida, mas graças a Deus tivemos algumas doações para a aldeia”, conta Tuniel.
A artesã Terezinha Ferreira, do povo Sateré-Mawé, é cacica da aldeia Gavião, na zona rural da cidade de Manaus, à margem do Rio Tarumã Açu, afluente do rio Negro. Há duas semanas, o pai dela precisou ir cuidar de um pé adoecido no hospital Delphina Aziz, situado em Manaus. Quando tentou voltar, já era impossível. O rio desceu tanto que ficou intrafegável. Terezinha precisou andar uma hora e meia para levar mantimentos ao pai. “Nós fomos levar mel e banana para o meu pai, porque ele não sabe andar para chegar até aqui”, conta.
Vazante histórica
Desde agosto deste ano, as principais bacias hidrográficas da região – Aripuaã, beni, Bracno, Coari, Guaporé, Içá, Japurá, Javari, Ji-Paraná, Juruá, Jutaí, Madeira, Mamoré, Marañon, Napo, Negro, Purus, Solimões, Tefé e Ucayali – apresentam tendência à seca. Em 15 de agosto, por exemplo, a bacia de Jutaí tinha uma anomalia categorizada como “muito seca”. Naquele dia, das 20 bacias monitoradas pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB), apenas três não estavam em níveis de seca. Em 27 de novembro, todas chegaram aos níveis de seca e a Bacia de Jutaí alcançou o nível de extremamente seca.
Já o rio Negro começou a apresentar cotas mínimas também a partir de agosto. De acordo com o SGB, que registra as cotas anualmente, o rio está medindo 12,73 metros. A pior vazante, até então, tinha ocorrido em 2010, quando o rio mediu 13,63 metros. Em 2022, a cota em 21 de outubro era 16,69 metros e, em 2021, de 20,07 metros.
O SGB monitora e registra a cada hora do dia as cotas em 18 estações do estado. De acordo com Jussara Cury, geóloga do Serviço, a estação onde fica o rio Negro, em Manaus, está descendo 9 centímetros diariamente desde 16 de outubro. No momento, é possível observar que algumas das outras estações também estão em nível drástico.
“Há dois dias, a estação de Manacapuru ultrapassou a vazante de 2010 e, hoje [20 de outubro], também apresenta descidas na ordem de 9 centímetros, marcando um nível de 3,61 metros. É o que ocorre também em Itacoatiara, que está mais a jusante [abaixo] da bacia, mas também apresenta descidas diárias nessa ordem e que hoje ultrapassou a vazante de 2010 com a medição agora de 89 centímetros”, explicou a geóloga.
Na última semana, Manaus começou a receber chuvas. Em períodos normais, os meses de novembro e dezembro indicam o inverno amazônico, quando as cabeceiras passam a encher com as chuvas. Isso já está ocorrendo onde estão localizadas algumas estações de monitoramento e os geólogos esperam que o rio volte a subir no próximo mês.
“Na parte de cabeceira da bacia, como é o caso do Alto Solimões, na estação de Tabatinga, hoje tivemos uma elevação considerável, de vinte e quatro centímetros. Então, nessa semana, o rio Solimões, nesta parte da bacia, está em processo de recuperação em decorrência das chuvas isoladas da região dos Andes que abastecem essa entrada da bacia”, explica Jussara.
A esperança é de que essas chuvas que estão abastecendo alguns rios na cabeceira da bacia desçam até a região metropolitana nas próximas semanas. “Então, há uma tendência de que essa confluência do rio Negro com Solimões ainda continue em processo de descida, mas descidas com menor intensidade até o final do mês”, diz.
Na última década, os extremos climáticos estão ocorrendo com mais frequência, levando o rio a cheias e secas severas a cada ano. Esses eventos modificam as temperaturas, os cursos dos ventos, criam barreiras de chuva e intensificam o clima.
Em 2021, o Negro teve a maior cheia de sua história, com 30,02 metros. Este ano, no entanto, a vazante mostrou seu menor índice, os 12,79 metros. De acordo com o Relatório Síntese sobre Mudança Climática 2023, do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), esses eventos climáticos extremos – o que inclui tanto o excesso quanto a ausência de chuvas – estão ocorrendo com mais celeridade devido ao aquecimento do globo, que já subiu 1,1º C acima dos níveis pré-industriais.
Conectados a isso, há outros fenômenos em curso: um aquecimento do Atlântico Norte e uma maior duração do El Niño, o que também causa a seca no Amazonas, como explicou Marília Nascimento, técnica do Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), à InfoAmazonia.
“O planeta, de uma forma geral, está mais aquecido. Nesses últimos meses foram recordes de temperatura da superfície do mar como um todo. Isso provoca algumas mudanças no planeta. O próprio El Niño, por exemplo, tende a acontecer entre 1 a 7 anos, mas a tendência (agora) é que ocorra em período mais curto, de dois a três anos”, explicou.
O governo do Amazonas criou um Comitê Intersetorial de Enfrentamento à Situação de Emergência Ambiental e através da Defesa Civil, Secretaria de Meio Ambiente, Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e Instituto de Proteção Ambiental, tem implementado medidas que incluem a distribuição de alimentos e o combate às queimadas. O governador Wilson Lima (União Brasil) também está recebendo reforços do Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas e, em 26 de setembro, recebeu a ministra Marina Silva e o vice-presidente Geraldo Alckmin.
Engolindo fumaça
As poucas chuvas estão sendo comemoradas e vistas com muita esperança pela população do Amazonas. Esse momento de torcida ocorre por conta da seca, mas também por outro fator que dificulta e prejudica o dia a dia no estado: as queimadas.
Nos últimos meses, Manaus e as cidades no entorno foram tomadas por fumaças ocasionadas pelas queimadas ao sul do estado. Túnel Mura conta que, na sua comunidade, as crianças foram as mais prejudicadas. “Elas tiveram falta de ar e algumas tiveram enjoo, dor de barriga”, explica.
O mesmo ocorreu com Terezinha Ferreira. Em 2020, Terezinha quase morreu de Covid-19. Depois disso, passou a conviver com a falta de ar. “Eu fiquei com sequelas de falta de ar e agora com a fumaça eu fico com a garganta muito seca. Estamos sentindo muito as fumaças e fica mais difícil porque não temos água para lavar a garganta”, conta.
Em 2021, a InfoAmazonia mostrou, com o projeto “Engolindo Fumaça”, que a ingestão do material particulado PM 2.5 é altamente tóxico, o que colaborou para o agravamento das doenças respiratórias, em especial da Covid-19.
A professora, Raynete Kambeba, vive na comunidade Três Unidos, que fica à margem do rio Cuieiras, também afluente do rio Negro. Lá, bastava colocar o pé para fora de casa, andar alguns metros e ter a canela molhada com a água do rio. Agora, é necessário andar cerca de 1 hora e 20 minutos para chegar até um barco e encontrar o rio estreito. Ela conta que as aulas foram suspensas, devido à dificuldade de locomoção provocada pela fumaça e pela seca.
O pior de tudo foi o impacto na saúde das crianças, diz a professora. Com as fumaças deste ano, elas relataram problemas de saúde. “A grande quantidade de fumaça causou falta de ar e irritação nos olhos das crianças. Isso nunca tinha acontecido antes e ficamos muito preocupados”, conta.
A comunidade está recebendo ajuda da Defesa Civil municipal, que tem distribuído alimentos e água, no perímetro rural da cidade. A Prefeitura de Manaus, no entanto, alega que as queimadas estão fora do município e tem indicado medidas básicas de proteção contra as fumaças, como uso de máscara e hidratação. Além disso, um caminhão pipa começou a rodar a cidade, com agentes da prefeitura regando plantas nas principais avenidas, no intuito de dissipar as fumaças e reduzir o calor.