A mostra “Histórias Indígenas” apresenta 10 obras que combinam técnicas e narrativas da cosmologia Karipuna, resgatando raízes espirituais. As pinturas são uma expressão única que conecta o passado ancestral e o presente.

“Temeron-Kê fez o universo. Estava sozinho. Então, criou um gêmeo que viaja entre os três mundos, o céu dos espíritos: o do meio, o dos seres humanos e o das águas”. Histórias como essa, que apresentam a visão única de um artista indígena sobre a mitologia Karipuna, estão na exposição “Histórias Indígenas”, que abriu nesta sexta-feira (20), no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), e segue até 25 de fevereiro de 2024. Na mostra, dez telas de Caripoune Yermollay fazem da arte um instrumento para resgatar as raízes espirituais e a ancestralidade do seu povo.

Em suas obras, Yermollay combina técnica com as notáveis narrativas da cosmologia Karipuna. O resultado revela uma forma de expressão original que o destaca como artista plástico e designer no cenário da arte indígena contemporânea.

Yermollay é um artista experiente. Já expôs em diversas mostras e algumas de suas obras compuseram parte dos cenários de uma turnê do cantor Djavan, além de ter sido convidado pela Universidade Federal do Amapá (Unifap) para pintar murais nos ambientes do curso de Licenciatura Intercultural Indígena. Também é dele a logomarca da empresa de produção de cacau nativo da Amazônia, a Chocolates Cassiporé

Caripoune Yermollay, artista indígena, é parte de exposição que estreia no Masp, em São Paulo. (Foto: Elza Lima)

Embora o artista plástico já tenha deixado uma marca na cena artística, sua estreia no MASP é um marco significativo em sua carreira. A exposição coletiva “Histórias Indígenas”, fruto de uma parceria entre o museu de São Paulo e o Kode Bergen Art Museum, da Noruega, promete ser uma jornada transcendental pelo universo da arte indígena. Yermollay contribui com dez pinturas, sendo que cada uma delas é um convite para explorar a riqueza da cultura Karipuna.

A mostra apresenta a diversidade e a complexidade da cultura de diversos povos da América do Sul, América do Norte, Oceania e Escandinávia. A seleção cuidadosa de obras e narrativas busca promover diálogos interculturais entre diferentes partes do mundo.

Em uma era em que as vozes indígenas ganham mais destaque e reconhecimento, Caripoune Yermollay se declara agradecido pela oportunidade. “É mais um passo importante para a valorização da herança cultural dos povos indígenas”, diz. 

Para ele, a arte é o um dos caminhos mais eficientes para dar continuidade à tradição Karipuna. Nascido em 1976 na floresta amazônica, o artista plástico indígena encontrou uma forma de conectar sua vivência individual às tradições do seu povo. Seu processo criativo resgata materiais e técnicas ancestrais, criando uma linguagem única que na sua língua nativa se chama de “Adaminã” – o que é desenhado, pintado e escrito.

A escolha de materiais acrescenta profundidade às narrativas que ele cria em suas pinturas. Cada obra é uma ponte entre o passado ancestral e o presente, quer seja real ou imaginário, divino ou humano. Nelas, grafismos, cores e histórias se entrelaçam em uma dança visual única.

Sobre seu início como artista, Yermollay relembra que sua inclinação pela arte é “um dom natural” que surgiu cedo. Aos 10 anos, ele começou a produzir seus primeiros trabalhos, inspirado pelas mulheres mais velhas de sua aldeia. Às avós tradicionalmente cabe o papel de desenhar em cuias, peneiras e tipitis. Para ele, a arte sempre foi uma parte intrínseca de sua identidade e cultura. Mais do que isso, dá a ele um sentido de missão junto ao seu povo.

Além de sua carreira artística, Yermollay atua como educador e defensor de causas importantes para a comunidade. Ele está profundamente envolvido com a educação e a saúde relacionadas à arte em escolas indígenas, compartilhando sua paixão pela preservação ambiental e promovendo atividades que transmitem as tradições de seu povo às novas gerações.”Chamamos a isso de relembrar e repassar”, explica o artista, acrescentando que essa abordagem é essencial para valorizar o patrimônio cultural e contribuir para a sua preservação.

Caripoune Yermollay, artista indígena com obras em exposição no Masp. (Foto: Elza Lima)

Primeiro vereador indígena do Brasil

A trajetória de Caripoune Yermollay está profundamente ligada a uma particular tradição familiar: a de se destacar além da sua aldeia, localizada em Oiapoque, um dos mais isolados municípios do país e, ainda assim, permanecer fiel à sua cultura.

O avô de Yermollay, o cacique Karipuna Manuel Primo dos Santos, o Kôko, foi o primeiro vereador indígena do Brasil. O pai dele, Luiz Soares dos Santos, foi o segundo indígena a ocupar uma vaga na Câmara de Vereadores. Segundo documentos de arquivo do ex-prefeito de Oiapoque, Rocque Pennafort, pertencentes ao Departamento de História da Unifap, os dois indígenas se elegeram para a Câmara Municipal de Oiapoque em 30 de novembro de 1969, um verdadeiro feito se considerarmos que era uma época distante de ações afirmativas e em que o preconceito contra os povos indígenas era ainda mais explícito.

Boa parte dos Karipunas do Oiapoque são bilíngues ou poliglotas. Yermollay fala português, karib, francês, aruaque e tupi. Mais uma tradição familiar: seu avô tinha por hábito a leitura de jornais e revistas, ouvia diariamente o noticiário da BBC de Londres e era fluente em cinco idiomas. Embora interagisse com desenvoltura com os não indígenas, o cacique amava e valorizava a sua região e sua cultura. É a mesma disposição de Yermollay, que não se diz seduzido por qualquer possibilidade de abandonar a sua terra natal.  

Artista precoce, ele superou muitos obstáculos para a educação formal, um desafio para indígenas e não-indígenas que vivem em Oiapoque, município marcado pela falta de serviços básicos de infraestrutura. Sua formação acadêmica é tardia, mas fruto de persistência. Ele foi aprovado no vestibular aos 40 anos e concluiu o curso de Licenciatura Intercultural Indígena na Unifap em 2021.

Serviço

A exposição “Histórias Indígenas” ocupa as galerias do primeiro andar e do segundo subsolo do MASP de 20 de outubro de 2023 a 25 de fevereiro de 2024. Em seguida, a exposição viajará para o Kode Bergen Art Museum, de 26 de abril a 25 de agosto de 2024. Veja como garantir ingressos aqui.

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