Família migrou do Maranhão para Manaus no fim do século XIX e em 2014 conseguiu o título do segundo quilombo urbano do Brasil

Há 132 anos a família de Maria Severa Nascimento Fonseca se reúne para transformar um tronco da árvore envireira num símbolo festivo de fartura e memória. Preenchido com frutas, folhas e fitas, o tronco se torna um mastro que é erguido tradicionalmente no Domingo de Ramos e só é retirado no domingo de Páscoa. Esta tradição centenária é mantida no segundo território quilombola urbano reconhecido no Brasil: o Quilombo do Barranco de São Benedito, localizado no bairro da Praça 14, em Manaus, Amazonas. 

A matriarca Maria Severa  foi uma mulher escravizada que migrou do Maranhão para Manaus no final do século XIX. Hoje, seus descendentes formam um grande clã dividido em 145 núcleos familiares.

A erguida do mastro de envireira é um dos ápices da tradição, mas os festejos, na verdade, duram 9 dias e incluem procissões, novenas e danças em homenagem ao santo padroeiro do quilombo, São Benedito. Ao sétimo dia de festas, o tronco é derrubado e guloseimas, como doces e bolos, são servidas.

O quilombo tem suas movimentações sociais organizadas por mulheres, num ritmo matriarcal em que elas são protagonistas e passam as responsabilidades e ensinamentos umas para as outras. Desde 2010, quem organiza a festa é a analista de comércio exterior, Jamily Silva. Ela assumiu o posto depois que a Tia Cimar, Jacimar Silva, faleceu em 2009. Antes de Cimar, Jamily recorda que Tia Lurdinha havia permanecido por quase 50 anos como responsável pela tradição.

Além de estar à frente, Jamily também passou a estudar sobre sua família e teve um artigo publicado no livro “A quebra do silêncio”, organizado pela historiadora Patrícia Campos. “A festa é de liderança feminina, a Tia Cimar é da quarta geração. Em 2009, ela começou a apresentar problemas de saúde e ficou muito ‘adoentada’. Ela me chamou e disse ‘eu quero que você siga com a nossa tradição’, eu não tive como recusar. É uma festa que faz parte da nossa cultura, da nossa família”, explica.

São Benedito é considerado o santo protetor dos escravizados. Homem negro, filho de descendentes escravizados, Benedito Manasseri nasceu em 1526 na Sicília, Itália, e teve sua trajetória religiosa marcada pela ajuda aos pobres. Canonizado em 1807 pelo papa Pio VII, oficialmente a Igreja Católica celebra o santo em 5 de outubro, mas os festejos no quilombo ocorrem simultaneamente à semana santa.

Reconhecimento quilombola

Antes de ser oficializado pela Fundação Palmares em 2014 como Quilombo do Barranco de São Benedito, o local era chamado de “Comunidade Negra de São Benedito”. A mudança ocorreu, em 2013, após intervenção do Ministério Público Federal que visitou a comunidade e explicou para as lideranças que era possível fazer a certificação enquanto remanescentes de quilombo. Depois iniciou-se um movimento para documentar a história do quilombo, dos ancestrais, da vivência e da cultura. 

Além da certificação, a comunidade também poderia ter entrado com pedido de regularização fundiária do Incra (Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária), mas decidiu pelo não reconhecimento territorial para evitar conflitos com lojistas que se estabeleceram na região. 

Há 60 anos, dois quarteirões do bairro da Praça 14 pertenciam à família, que possuía um terreiro onde ocorriam celebrações tradicionais, mas Jamily conta que as estruturas do espaço sagrado foram derrubadas com o projeto de urbanização  da região executado, entre 1963 e 1964, pelo então governador do estado, Plínio Ramos Coelho.

“Na década de 60, quando o Plínio resolveu urbanizar, ele passou com um trator no meio da comunidade. O barracão era aqui e na frente tínhamos um grande terreiro. Depois tudo isso acabou e ficou um barranco. As famílias foram vendendo as casas, tirando as características do barranco e, apesar de ainda ter uns pedaços, muito já se perdeu”, explica. 

As famílias foram vendendo as casas, tirando as características do barranco e, apesar de ainda ter uns pedaços, muito já se perdeu

Jamily Silva, analista de comércio exterior
Arquivo Pessoal
O que restou do Barranco no Quilombo de São Beneditos

No Amazonas, existem outras três comunidades quilombolas reconhecidas oficialmente. A comunidade quilombola do Tambor, localizada no município de Novo Airão, O Quilombo Ituquara, no município de Barreirinha, e a comunidade Sagrado Coração de Jesus do Lago de Serpa, em Itacoatiara.

Reduto do samba

O Quilombo de São Benedito também é conhecido por manter viva a tradição dos sambistas da família. Um exemplo é Tia Lourdinha, grande referência quilombola, que desfilou em escolas de samba por quase 30 anos e teve um ponto de venda de lanches na frente da quadra do Grêmio Recreativo Escola de Samba Vitória Régia. Hoje, embaixo da quadra existe o  “Centro Comercial Tia Lurdinha”, em sua homenagem.

A certificação como quilombo deu um ânimo na família, que passou a ressaltar ainda mais suas raízes culturais. Em 2015, o corretor de imóveis José Ribamar Neto passou a organizar, todos os sábados, o “Samba do Pagode do Quilombo”. Com apresentação do grupo “Pão Torrado”, a programação começa às 16h da tarde, com venda de bebidas e também de feijoada, que é feita por Jamily, irmã de José. 

A Importância de manter a tradição do Samba no Pagode do Quilombo é a chama de cantar os sambas de raiz, sambas de terreiros, sambas de quadras

José Ribamar Neto, corretor de imóveis

“A Importância de manter a tradição do Samba no Pagode do Quilombo é a chama de cantar os sambas de raiz, sambas de terreiros, sambas de quadras e de sempre manter viva a história do Samba na Praça 14”, explica José.

Jullie Pereira
Samba com o grupo “Pão Torrado”, no Quilombo de São Benedito

Educação e reconhecimento

Após a certificação, as mulheres do quilombo criaram a “Associação das Crioulas de São Benedito” e passaram a realizar debates para reconhecimento de suas ancestralidades. Foi dessa forma que Rafaela Silva passou a exercer seu ativismo como mulher negra e quilombola. 

“Eu sempre soube que era uma mulher negra, mas nunca me vi nos espaços que eu frequentava e quando consegui ter esse letramento racial do que eu realmente era e também meus estudos, comecei a entender a importância da minha luta e das minhas primas Crioulas do Quilombo”, explica. 

As rodas de conversa são uma forma de reconhecimento, mas elas também passam isso para as crianças, de forma mais lúdica, com a criação de bonecas de pano que representam os ancestrais e os orixás. Também são feitos artesanatos com garrafas e confecção de blusas.

Keilah Silva é presidente da associação e responsável pela produção das bonecas. Para as escolas públicas do bairro, Keilah leva as bonecas e conta a jornada de sua família ensinando para as crianças a história do quilombo. 

“Através de bonecos negros e Orixas nós contamos nossa história. Eles lembram e representam nossos idosos e os orixás. O trabalho feito com o pano é um carro chefe na comunidade, as crianças gostam muito, da confecção e da história”, diz
Rafaela relata que essas conversas são importantes para manter o sentido de coletividade, que é refletido em todas as ações do quilombo. “Eu não luto por mim, luto pelo coletivo. Porque tenho que fazer o alicerce que meus ancestrais fizeram para eu estivesse ocupando a escola, a universidade. A nova geração precisa que estejamos lá lutando por eles”, diz.

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Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

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  1. Sou neto da minha vó Maria Fonseca negra e provavelmente tem uma família quilombola, não conheço e queria saber

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