Nativo da Amazônia, o cacau ajuda a preservar a floresta em pé, gerar renda e recuperar áreas degradadas. Com a procura maior do que a produção, a cadeia ligada ao fruto no país ainda carece de incentivo para crescimento e desenvolvimento dos produtores locais.

Sob as sombras da maior floresta tropical do planeta, crescem cacaueiros a perder de vista. A árvore, da espécie Theobroma cacao, pode chegar a 20 metros de altura e é conhecida por seu fruto que dá origem a um dos alimentos mais apreciados em todo o mundo, o chocolate. Está na Amazônia há pelo menos 7 mil anos. Muito antes do que se pensava. 

Por muito tempo, acreditou-se que o cacau teria surgido originalmente na América Central, há cerca de 3 mil anos. Em 2013, um estudo de pesquisadores do Equador e da França revelou vestígios arqueológicos de cultivo e manejo da planta na província de Zamora Chinchipe, na porção equatoriana do território amazônico. A pesquisa mostrou que a domesticação do cacau e seu consumo já aconteciam no Equador pelo menos 1.500 anos antes do previsto. Ele teria se estendido pela floresta peruana até a parte alta do rio Amazonas e mais tarde, chegado a países como México, Honduras, Guatemala e Nicarágua e, depois, América do Norte.

Não se sabe ao certo como e quando o cacau chegou à Amazônia brasileira. Seu cultivo, no entanto, começou provavelmente no final do século XVII com a colonização portuguesa, primeiro introduzido no Pará, mas consagrando a produção em outro bioma, a Mata Atlântica, mais precisamente no estado da Bahia, sobretudo a partir do século XIX. A época de ouro do cacau, na primeira metade do séc. XX, rendeu muito dinheiro a grandes produtores da região de Ilhéus, no sul do estado, e levou o Brasil ao segundo lugar no ranking dos maiores produtores do mundo. Estima-se que a exportação de amêndoas de cacau chegava a 370 mil toneladas/ano, equivalente a 25% de toda produção mundial.

Só no final dos anos 1980, quando a cultura foi fortemente afetada por um fungo, é que a produção nacional perdeu sua força. A praga, chamada “Vassoura de Bruxa”, espalhou-se rapidamente e devastou plantações inteiras, provocando queda de mais da metade da produção, o que levou milhares de pessoas à pobreza. Curiosamente, o mesmo fungo já havia destruído cultivos de cacau no Equador, décadas antes. 

Para lidar com o problema, foi criada a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, que trabalha para o desenvolvimento rural sustentável nas regiões produtoras de cacau através de assistência técnica, capacitação e programas de melhoria de desempenho e eficiência econômica. Entre as estratégias para a retomada da produção, a comissão estabeleceu como diretriz o uso de variedades misturadas e/ou clonadas da planta e, por isso, mais resistentes. Predominam três tipos: forasteiro, criollo e trinitário. Depois de longos anos de amargura, a atividade apresenta novamente sinais de crescimento.

“Comparado com outros países produtores, o Brasil tem a cadeia toda estabelecida aqui, desde a produção ao consumo. É o quinto maior consumidor do mundo e a gente tem uma capacidade ociosa da indústria. Então, se a gente produzir cacau, a indústria absorve. Não tem problema de oferta, ao contrário, hoje falta cacau. A indústria importa cacau da África para suprir essa necessidade. Acho que no curto/médio prazo, por conta dos investimentos que vêm ocorrendo na cadeia, a gente vai ficar autossuficiente rápido e o Pará tem muito a contribuir com isso”, explica Guilherme Salata, coordenador da Cocoa Action Brasil, uma iniciativa público-privada da World Cocoa Foundation financiada por oito indústrias alimentícias.

O Brasil tem a cadeia toda estabelecida aqui, desde a produção ao consumo. É o quinto maior consumidor do mundo e a gente tem uma capacidade ociosa da indústria. Então, se a gente produzir cacau, a indústria absorve. Não tem problema de oferta, ao contrário, hoje falta cacau. A indústria importa cacau da África para suprir essa necessidade.

Guilherme Salata, coordenador da Cocoa Action Brasil

Cacau selvagem da Amazônia

O produtor rural João Dorismar da Paixão nasceu e cresceu no Amapá. Desde cedo, acompanhou a mãe e as tias na coleta extrativista de cacau selvagem, em uma área denominada Vila Velha, composta por 31 km de extensão às margens do rio Cassiporé. Andiroba, abacaxi, açaí compõem a floresta de várzea da região.

 Deixou o local para estudar no município de Oiapoque. Décadas mais tarde, ele voltou ao lugar de origem, e como o sobrenome que carrega, descobriu a paixão pelo cacau. Há dois anos, montou uma pequena fábrica e virou produtor de chocolate, que leva o nome do rio, a Cassiporé. O processo é praticamente artesanal. Na época da coleta, ele trabalha ao lado de 12 famílias de comunidades locais.

“Eles trazem o fruto todinho na canoa para a base. Lá, eles quebram e, depois de quebrado, a gente pesa e eu pago para eles. Aí o resto do trabalho é comigo. Eu tenho um funcionário que faz todo o processo de fermentação, obedecendo o protocolo da Ceplac e da Embrapa, e que nós adaptamos à nossa realidade, porque não é o mesmo que o cacau plantado, o nativo é diferente. Depois, vem a secagem dele no inverno. Quando termina a safra a gente traz o cacau pro Oiapoque, antes semente e agora amêndoa. Faz o processamento, a seleção, a torra e a quebra, para separar a casca do nibs, leva para processar e fazer o delicioso chocolate 50%, 70%, chocolates finos”, detalha.

Segundo Paixão, um estudo de viabilidade apontou para uma capacidade de produção para a Vila Velha, de 42 toneladas ao ano. “Nós ainda não chegamos a esse patamar. Em 2018, produzimos 1.600 kg, depois passamos para 2.000 kg, aí veio a pandemia, ano passado foram 3.000 kg e esse ano temos a perspectiva de colher 6.000 kg de cacau”. 

Como alguém que cresceu vendo de perto a importância da floresta preservada, Paixão defende um limite de produção para que o lugar que abrigou sua infância, possa dar frutos por muito tempo.

“Nós não vamos sonhar além daquilo que é possível. Não sei quantas mil toneladas, isso não! Vai chegar naquele ponto que é só isso, vamos nos contentar e preservar o que tem. Precisamos valorizar aquelas comunidades para que eles possam ter oportunidade de renda e mostrar que é possível viver do extrativismo, dos produtos da floresta, sem derrubar nenhuma árvore.”

Nós não vamos sonhar além daquilo que é possível. Não sei quantas mil toneladas, isso não! Vai chegar naquele ponto que é só isso, vamos nos contentar e preservar o que tem. Precisamos valorizar aquelas comunidades para que eles possam ter oportunidade de renda e mostrar que é possível viver do extrativismo, dos produtos da floresta, sem derrubar nenhuma árvore.

João Dorismar da Paixão, produtor rural

Animado, o produtor rural diz que tem trabalhado para oferecer diferentes produtos ao seu público e ter uma loja própria, que pretende transformar em uma rede pelo Brasil. A iniciativa de Paixão chamou a atenção de Luiza Abram, especialista em chocolates finos e formada em gastronomia. Ela ficou conhecida por seu trabalho com cacau selvagem fornecido por comunidades extrativistas da Amazônia e hoje produz uma linha de chocolates em parceria com o produtor rural do Amapá.   

Pará: o maior produtor de cacau do Brasil 

Outras iniciativas como a de Paixão estão surgindo na Amazônia e, hoje, o Brasil é o sétimo maior produtor de cacau do mundo. Apesar da relativa boa posição,  responde por menos de 5% do total da produção do planeta. Quase tudo é absorvido pelo mercado interno e a exportação ainda é considerada insignificante. No passado, o país chegou a ser o segundo maior produtor mundial, arrebatando uma fatia de 25%, muito graças ao cacau da Bahia. 

Na Amazônia, a produção acontece basicamente no Pará, responsável por mais da metade de todo o cacau nacional e 96% da região Norte. Em 2022, foram produzidas 132.124 mil toneladas de amêndoas do fruto,  com produção mais expressiva em municípios da região Transamazônica. Os dados são do relatório “Safra de cacau no estado do Pará – 2022/Ceplac”, enviado à InfoAmazonia. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil produziu 270 mil toneladas de amêndoas de cacau em 2020/2021. Rondônia, Amazonas e Amapá, respectivamente, completam a produção.

Quartetto/AIPC
Espécie Theobroma cacao, o cacau, está há 7 mil anos na Amazônia

O agrônomo e pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Adriano Venturieri trabalha mapeando, por meio de imagens de satélites, o uso da terra na Amazônia em parceria com o Instituto Nacional de Pesquisas (Inpe), no Projeto TerraClass. Antes, de forma mais geral, com áreas classificadas como pastagem ou vegetação secundária: É a vegetação que, conforme os estágios de desenvolvimento ou de recuperação de florestas e de outras formações naturais, termina por ocupar o espaço físico-ecológico onde antes predominava a vegetação primária., utilizando um sistema que não diferenciava áreas de agricultura perene como cacau, dendê ou café. Mais tarde, com o avanço da tecnologia, foi possível reconhecer os cultivos. Venturieri, então, implementou um plano para monitorar o cacau no estado do Pará, o maior produtor do país, e cruzou os dados obtidos com o Cadastro Ambiental Rural: Registro eletrônico obrigatório, feito por autodeclaração e voltado à regularização ambiental de imóveis rurais de todo o país. (CAR). Para validar as informações, contou com trabalho em campo e participação de comunidades locais.

Na primeira etapa, até 2019, Venturieri identificou 70 mil hectares de cacau. Nos dois anos seguintes, chegou a 90 mil hectares. A partir daí, o agrônomo e sua equipe realizaram análises que mostraram porque o cacau é considerado amigo da floresta, contribuindo, inclusive, para restauração de áreas degradadas. Os resultados estão reunidos no artigo “A expansão sustentável do cacau (Theobroma cacao) no estado do Pará e sua contribuição para a recuperação de áreas degradadas e redução do fogo”.

Observou-se que o plantio é feito predominantemente em pequenas propriedades de agricultores familiares em sistemas agroflorestais, em que cultivos de várias espécies acontecem juntos, semelhante ao que acontece em uma floresta. “Nós observamos que nas propriedades que têm cacau o desmatamento é menor do que nas propriedades que não tem. Outra coisa importante que nós vimos: 75% da área que nós mapeamos até então, os 70 mil hectares onde hoje existe cacau, já estavam desmatados antes de 2008, antes da data do novo código florestal. Os outros 25%, a maioria foi em cima de pastagem”, explica Venturieri. 

Nós observamos que nas propriedades que têm cacau o desmatamento é menor do que nas propriedades que não tem. Outra coisa importante que nós vimos: 75% da área que nós mapeamos até então, os 70 mil hectares onde hoje existe cacau, já estavam desmatados antes de 2008, antes da data do novo código florestal. Os outros 25%, a maioria foi em cima de pastagem.

Adriano Venturieri, agrônomo e pesquisador da Embrapa

Além disso, o pesquisador da Embrapa explica que a produção de cacau também tem um papel importante na redução do uso do fogo para a agricultura: “A Amazônia é cheia de extremos, tem proprietários que dispõem de tecnologia, mas essa não é a realidade, grande parte das pessoas ainda utiliza o fogo como prática agropecuária. Quando tem uma pastagem degradada, usa o fogo para limpar a área. Então, quando começa a plantar o cacau, automaticamente o produtor deixa de usar o fogo, porque ele não vai tocar fogo numa agricultura permanente, perene como a gente chama. Assim, onde houve o avanço do cacau, houve redução de queimadas e consequentemente a redução da emissão de gases de efeito estufa”, avalia.

Quando começa a plantar o cacau, automaticamente o produtor deixa de usar o fogo, porque ele não vai tocar fogo numa agricultura permanente, perene como a gente chama. Assim, onde houve o avanço do cacau, houve redução de queimadas e consequentemente a redução da emissão de gases de efeito estufa.

Adriano Venturieri, agrônomo e pesquisador da Embrapa

Por outro lado, na próxima etapa do mapeamento, Venturieri pretende, em parceria com a NASA, avançar nos métodos de mapeamento e diferenciar Sistemas Agroflorestais: SAFs otimizam o uso da terra, conciliando a preservação ambiental com a produção de alimentos, conservando o solo e diminuindo a pressão pelo uso da terra para a produção agrícola. Podem ser utilizados para restaurar florestas e recuperar áreas degradadas. (SAFs) de plantações denominadas “a pleno sol” – um tipo de prática de monocultura – que começam a surgir no Pará. Com promessas de aumento de produtividade, esse modelo preocupa os cientistas, que temem um estímulo ao desmatamento: Eliminação total da vegetação nativa numa determinada área seguida, em geral, pela ocupação com outra cobertura ou uso da terra..

“Eu vejo uma expansão de risco para a região, sob diversos aspectos, mas o principal é o risco do cacau daqui um tempo – assim como tem a moratória da carne, da soja – ser acusado de causar desmatamento. Se uma propriedade for acusada que está desmatando, vai levar toda a cadeia, não importa se é a minha propriedade ou a sua. Então, isso pode trazer consequências muito graves para o setor. Falta uma política agrícola ali para valorizar mais esse cacau que recupera área, que é produzido dentro de um SAF e não tem uma diferenciação, por exemplo, no preço para os produtores”, alerta.

A economia da floresta em pé

As alternativas sustentáveis de geração de renda e inclusão das populações da região partem da manutenção da floresta em pé, baseando-se em produtos e serviços florestais que não comprometam a conservação dos ecossistemas, a chamada bioeconomia. Se por um lado, a fartura da floresta parece garantir o futuro de seus habitantes, por outro, a ausência de planejamento, investimento e apoio do poder público nas cadeias de produção sustentáveis pode colocar tudo a perder. 

“Temos desafios de cunho social, econômico, ambiental e, também, de criar um ambiente facilitador. O cacau é uma cadeia que perdeu expressividade e acabou não tendo acesso a instituições fortes, cooperativismo, como café, açúcar e milho”, explica o coordenador da CocoaAction, Guilherme Salata. 

Ainda segundo Salata, quase todo cacau produzido no Brasil vai parar na mão das indústrias processadoras. São essencialmente três multinacionais que detêm 95% da produção. Embora a maior parte venha do Norte do país, o Pará conta apenas com uma pequena processadora: praticamente toda a produção do estado é escoada para a Bahia, onde são feitos os subprodutos que viram chocolate. Promover a autonomia da cadeia de produção regional da Amazônia e dos trabalhadores envolvidos deve ser premissa da bioeconomia.

“A gente tem ainda uma produtividade média, baixa, o que deixa o produtor em uma situação ruim. Ainda não existe viabilidade econômica da produção de cacau, o que acaba gerando outros problemas como informalidade (no trabalho). Então, a gente bate muito nessa tecla de que precisa melhorar a produtividade para que esse produtor saia da situação de pobreza. Esse é o caminho para atingir outros desafios. Existem estudos que mostram que do ponto de vista econômico, da bioeconomia, de fato o produtor consegue atingir um patamar de vida digna com o cacau. A gente está falando de cacau 5, 6 vezes mais rentável que a pecuária”, diz Salata.

Existem estudos que mostram que do ponto de vista econômico, da bioeconomia, de fato o produtor consegue atingir um patamar de vida digna com o cacau. A gente está falando de cacau 5, 6 vezes mais rentável que a pecuária.

Guilherme Salata, coordenador da Cocoa Action Brasil

Para Adriano Venturieri, é preciso ir além do monocultivo do cacau: “O produtor precisa vender e não tem um sistema de armazenamento, de cooperativismo, e ele tem dívida. Agora, se ele tivesse outra cultura perene, rentável, junto com o cacau, ele teria como se manter. Ele precisa ter alternativas ao cacau, ele não vai substituir, tem que ter junto e o SAF propicia isso. Açaí, bacuri…se o cacau não tiver um preço bom naquele momento, ele guarda e vende outra coisa. Mas para isso precisa ter todo um ecossistema de produção. Essa é a grande alternativa para o pequeno produtor, essa produção integrada. É a vocação da Amazônia, essa produção florestal, a bioeconomia tão falada, mas que tem que ter toda uma tecnologia, um conjunto de políticas e planejamento de território”.


Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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