A teoria de que os indígenas poderiam pedir demarcação de todo o território nacional caso o Marco Temporal não seja aprovado é uma das falácias propagadas nas redes sociais.
Desde que a tese do Marco Temporal: A tese do marco temporal, reivindicada pelos ruralistas, estabelece que a demarcação de terras indígenas só pode acontecer se for comprovado que os indígenas ocupavam o espaço que reivindicam até 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição atual começou a ser discutida, durante o julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2008, o boato de que os povos indígenas poderão reivindicar todo o território nacional tem sido propagado com frequência, principalmente nas redes sociais. No Youtube, por exemplo, são dezenas de vídeos recheados de argumentos controversos com títulos como “Copacabana pode virar terra indígena”.
Nesta quarta-feira (20), o Supremo Tribunal Federal retoma o julgamento do Marco Temporal, cujo placar, até o momento, é de quatro ministros com voto contra a tese e dois favoráveis. Um dos votos mais aguardados é o do ministro Gilmar Mendes. Em 2014, em um despacho que julgava a procedência da demarcação de três terras indígenas, Mendes usou o argumento que viria a ser conhecido como “tese de Copacabana” para se posicionar contra a posse da terra pelos indígenas. “Claro, Copacabana certamente teve índios, em algum momento; a Avenida Atlântica certamente foi povoada de índio. Adotar a tese que está aqui posta nesse parecer (a tese do marco temporal), podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena”, argumentou Mendes em seu voto.
Nesta entrevista à InfoAmazonia, Bruno Martins Morais, advogado, especialista em Direito Ambiental e mestre em antropologia, explica que os indígenas não estão reivindicando grandes territórios urbanos e que, caso fizessem, dificilmente teriam respaldo jurídico, já que o conceito de terra tradicionalmente ocupada está definido no artigo 231 da Constituição. Bruno trabalha há mais de 10 anos com direitos dos povos indígenas. Durante a graduação, desenvolveu pesquisa na Terra Indígena Raposa Serra do Sol e é autor do livro “Corpo ao Pó: crônicas da territorialidade Kaiowá e Guarani nas adjacências da morte”. Atualmente é bolsista da Bertha Foundation.
Ele explica como se dá o processo demarcatório e como surgiu a teoria do marco temporal. Otimista quanto ao resultado da votação, ele diz que está ansioso pelo voto ministro Gilmar Mendes, e que acredita na mudança de posição do jurista. “Eu confesso que estou ansioso pelo voto do Gilmar, porque ele tem indicado que talvez tenha mudado de opinião. Ele teve uma grande participação na criação da tese, mas disse algumas vezes nas sessões que “os tempos são outros”, de modo que para mim é o voto mais aguardado.”
Confira a seguir a entrevista completa.
InfoAmazonia – O que os indígenas precisam fazer para conseguir demarcar um território?
Bruno Martins Morais – Foi em 1996 que o governo de Fernando Henrique Cardoso criou um procedimento próprio regulado detalhadamente pelo Decreto Federal nº 1775. Nos termos desse decreto, na hipótese de o Estado receber a notícia de que existe um grupo humano que se reconhece como indígena e pede demarcação de uma terra, essa reivindicação vai para uma base de dados mantida pela Funai. A Fundação faz, então, uma “qualificação da demanda”, isto é, a Funai manda um técnico em campo, preferencialmente um antropólogo, que vai fazer uma investigação preliminar: conversas, entrevistas com as pessoas, pesquisas bibliográficas e documentais. Ao fim, ele prepara um documento com a caracterização mínima dessa reivindicação, indicando se ela tem ou não fundamento.
Se tiver fundamento, se justifica a criação de um Grupo de Trabalho (GT) interdisciplinar, responsável por fazer o relatório de identificação e delimitação dessa terra. Esse GT trabalha por muito tempo. Um GT rápido demora por aí uns cinco anos. Há estudos que tomam mais de uma década. Após este longo tempo, o procedimento vai para o Ministro da Justiça, que publica uma portaria declaratória. Com base nela, se dá início ao procedimento de regularização fundiária e desintrusão da Terra Indígena. Esse com certeza é o momento de maior importância para a demarcação. Só depois o processo vai para o Presidente, que assina a homologação.
Em um vídeo publicado no YouTube, uma pessoa diz que, hoje, basta os indígenas apresentarem um laudo histórico antropológico que comprove a ligação com aquele território, para que ele seja demarcado. Essa pessoa fala isso como se o laudo fosse algo simples, banal. O que é o laudo histórico antropológico?
Veja, essa é uma informação importante. As pessoas falam do “laudo” como se fosse uma folha, uma lauda, mas não é. Um relatório circunstanciado de identificação e delimitação, como é chamado, tem comumente tem mais de mil páginas. É um documento oficial, científico, elaborado por um conjunto de técnicos e juntado em um processo administrativo. Ele não é uma opinião, não é uma consulta ao antropólogo. Ele é um estudo antropológico, histórico, geográfico e ecológico elaborado por cientistas que vão a campo, ficam muito tempo entre as comunidades e o seu entorno, fazem extensa pesquisa em bases de dados e documentos, e ao fim oferecem uma caracterização integral daquela reivindicação. A partir dela, esses técnicos tentam identificar a expressão da vida daquele grupo humano sobre o espaço que ele ocupa, e propor a delimitação de um território.
Existe uma fake news circulando há muito tempo, de que os indígenas podem reivindicar todo o território nacional se quiserem. Que até Copacabana pode virar terra indígena. Isso tem respaldo jurídico?
A primeira coisa que precisa ser colocada é que não existe no país uma reivindicação de demarcação da praia de Copacabana, quanto menos de todo território nacional Se existisse, ela teria que ser submetida ao procedimento de identificação e delimitação previsto no decreto 1775. Tem um controle de legalidade ali: a tradicionalidade de uma ocupação tem que ser comprovada, tem de ter estudos, uma análise científica da relação daquele grupo humano com o território específico que ele reivindica para saber se aquela posse se adequa ou não aos termos da Constituição.
Não adianta um grupo humano de poucas pessoas em Copacabana passar a se dizer indígena. É verdade que o critério da lei é a autodeclaração, mas essa reivindicação de uma identidade precisa estar fundamentada também no reconhecimento daquele grupo como indígena pelos seus pares. Por isso são necessários estudos que caracterizem a relação entre a identidade e a terra. Nisso entramos no conceito de terra tradicionalmente ocupada.
Terra tradicionalmente ocupada é um conceito constitucional, está lá, definido no artigo 231. Essa definição foi a forma do constituinte se referir aos territórios ocupados por um grupo humano que se identifica como indígena, e têm na terra a continuidade da expressão da sua identidade. São terras em que se imprimem as marcas de um certo tipo de vida, de um certo grupo, de uma identidade. Copacabana não é uma terra tradicionalmente ocupada, não há um grupo indígena atual cuja identidade esteja intimamente relacionada com aquele pedaço do mundo. O argumento de Copacabana pode ser demarcada é uma redução ao absurdo, uma falácia.
Um dos argumentos usados para defender o Marco Temporal é justamente a visão do conceito de “tradicionalmente ocupada”, que para alguns significa a terra habitada pelos indígenas em 1988. Como isso surgiu?
A Constituição diz que “são reconhecidos aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Essa ideia de usar o presente do verbo, no caso a palavra “ocupam” no texto da Constituição, apareceu pela primeira vez no julgamento que discutiu a demarcação da TI Raposa/Serra do Sol, é um desdobramento da decisão naquele caso. Depois que os Ministros votaram pela legalidade daquela demarcação e instituíram “19 salvaguardas” que balizariam as demarcações de terra, os Ministros do Supremo despacharam três decisões monocráticas que diziam respeito a três terras indígenas, duas no estado do Mato Grosso do Sul e uma no Maranhão, suspendendo os procedimentos demarcatórios, com base nessa ideia de que tinha que existir um limite temporal para demarcação dos territórios.
A partir dessa dessa primeira reação, os juízes e os tribunais inferiores começaram a reproduzir esse argumento de que existe um Marco Temporal e isso virou uma tese. O ministro Gilmar Mendes é um dos principais responsáveis por esse discurso. Historicamente foi ele quem sustentou essa tese, foi ele quem criou o argumento da demarcação de Copacabana, que depois foi se transformando em várias fake news.
Eu confesso que estou ansioso pelo voto do ministro, porque ele tem indicado que talvez tenha mudado de opinião. Em uma das sessões, e apesar de ter vociferado várias impropriedades contra lideranças que, com razão, indignaram o movimento indígena Brasil afora, o Ministro parece ter admitido que “os tempos são outros” e que um marco temporal não se justifica mais. Uma mudança de posição por parte de Gilmar revelaria que toda a discussão do marco temporal sempre foi um engodo político, sem cabimento no direito constitucional. Então, para mim, é o voto mais aguardado.
A gente discute hoje a tese do Marco Temporal, qual é a tese que se mostra contrária à ela?
A tese contrária tem um nome: indigenato.
O indigenato é a base jurídica que justifica a proteção constitucional das terras indígenas. Ele aparece no Brasil a partir de escritos de juristas da faculdade de direito da USP na virada do século XIX para o século XX, e vem como uma crítica à história da relação da sociedade nacional com os povos indígenas. O Marquês de Pombal, durante as reformas do império Português, instituiu uma lei chamada “Diretório para os índios do Brasil”. Essa lei era uma espécie de estatuto do índio do século XIX, estabelecendo o papel do Estado em integrar, forçadamente, os povos indígenas brasileiros à sociedade nacional.
Essa foi uma das razões pelas quais, por exemplo, o Marquês de Pombal entrou em desavença direta e aberta com jesuítas que tinham uma ideia de missionalização diferente da ideia do diretório : Conjunto de direitos pombalino. Então ela aparece na virada do século XIX para o século XX como uma crítica, dizendo: ‘olha essa coisa do diretório pombalino vai levar à extinção de grupos humanos de culturas riquíssimas’. A tese diz que os indígenas têm direito às suas terras, hoje, porque eles já ocupavam essas terras desde antes da colonização, antes do advento da ordem jurídica. O direito que sustenta a relação dos povos indígenas com seus territórios é um que prescinde de uma ordem constitucional.
É o mesmo que a Constituição de 1988 afirma. Quando do advento da ordem constitucional, os indígenas já mantinham relações com as suas terras e essa relação com as suas terras é uma relação jurídica. A Constituição diz que não compete ao Estado decidir sobre essa relação dos povos indígenas com suas terras, compete ao Estado meramente reconhecer esse direito originário. Por essa razão, a ideia de um marco temporal que estabeleceria um ponto de origem desse direito não faz sentido.