Exploração de petróleo representa 62% do orçamento previsto para a transição energética. Investimento para combustíveis de baixo carbono, como etanol e biometano, ficou em R$ 20,2 bilhões, um valor 13 vezes inferior ao que será alocado para a indústria petroleira. Governo federal alega que escolheu o caminho de menor impacto possível.
A propalada “transição energética”, uma expressão que tem sido usada à exaustão nos gabinetes da Esplanada dos Ministérios para se referir a um menor consumo de combustíveis fósseis, está longe de deixar de ser apenas mais um jargão da política ambiental. Falar em transição energética está na moda, pega bem discorrer sobre consumo sustentável. Só falta isso ocorrer, na prática.
O novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) fez da transição energética um de seus nove eixos, reservando uma posição de destaque ao tema, em pé de igualdade com assuntos vitais ao país, como educação e ciência, transportes, infraestrutura, saúde e água. Quando se observam as destinações de investimentos previstos para a tal transição, porém, o que se vê ainda é um país mergulhado na dependência dos poços de petróleo.
O PAC prevê, em sua nova versão, um total de R$ 1,4 trilhão em investimentos em todas as áreas, entre 2023 e 2026. Desse valor, R$ 449,4 bilhões (32,1%) serão destinados para projetos de “transição e segurança energética”. É um dos maiores orçamentos entre os nove eixos do programa. O compartilhamento dessa cifra, porém, reserva nada menos que R$ 273,8 bilhões para a ampliação da exploração petroleira. Na prática, 62% do recurso carimbado como transição energética, portanto, será usado para finalidades que perpetuam o mesmo tipo de dependência do petróleo.
Para se ter uma ideia, o investimento previsto para combustíveis de baixo carbono, como etanol e biometano, ficou em apenas R$ 20,2 bilhões para os próximos quatros anos, ou seja, um valor 13 vezes inferior ao que será alocado na indústria do óleo pesado.
“É bem paradoxal que uma transição energética ainda invista mais de 60% desse eixo do PAC em petróleo e gás. A ciência já disse que precisamos parar de explorar e queimar combustíveis fósseis. O primeiro relatório de avaliação do Acordo de Paris diz que estamos atrasados”, comenta Marta Salomon, especialista sênior do Instituto Talanoa, organização voltada a políticas climáticas.
Na equação do governo, o que se vê, na prática, é que o peso ambiental ainda está distante de fazer frente à conta financeira do negócio petroleiro, uma realidade que não é exclusividade do Brasil. Em 2024, o dinheiro decorrente da exploração de petróleo vai injetar mais de R$ 100 bilhões nos cofres públicos, para financiar as despesas do orçamento da União, segundo as previsões oficiais. “A realidade é que o mundo ainda não definiu quando vamos parar, embora isso já seja necessário. Alguns países precisam parar antes, fazer a tal transição justa, mas nem todos poderão ser os últimos”, diz Salomon.
O governo alega que escolheu o caminho de menor impacto possível. Dentro da área de geração de energia elétrica, por exemplo, não está prevista a construção de nenhuma grande hidrelétrica, como ocorreu reiteradamente nos PAC’s anteriores, de onde saíram obras como Belo Monte, Jirau e Santo Antônio. Ficou de fora, por exemplo, o projeto da usina de São Luiz do Tapajós, um desejo antigo do governo do PT, mas combatido fortemente pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva.
Dos R$ 75,2 bilhões previstos para geração de energia elétrica, a maior parte dos recursos – R$ 41,5 bilhões – está voltada para usinas solares. Outros R$ 22 bilhões serão usados em fazendas eólicas. “Da potência adicional prevista, 80% serão energia de baixo carbono. Além disso, 72% das novas usinas fotovoltaicas e a totalidade das novas eólicas serão implantadas na Região Nordeste, contribuindo para a redução das desigualdades regionais”, justifica a Casa Civil da Presidência da República.
Na avaliação de Juliano Bueno, diretor do Instituto Arayara, organização que integra cientistas, engenheiros, urbanistas e ambientalistas, o mapa dos investimentos revela uma visão dividida sobre o futuro. “Temos hoje, no país, dois governos. Um quer a transição energética, as reduções de emissão e a reindustrialização tecnológica com a geração de energia limpa e barata para todos, o que inclui o hidrogênio verde. Outro quer manter o modelo exploratório de gás natural, petróleo, carvão mineral e veículos, com queima de combustíveis fósseis.”
Em sua defesa, o governo sustenta que faz o que pode, no momento atual, e que obras de grande impacto não entraram na nova edição do programa, como a pavimentação da BR-319, estrada que liga Manaus (AM) a Porto Velho (RO), empreendimento que é visto como um potencializador do desmatamento na Amazônia, uma das práticas que mais colaboram para a emissão dos gases de efeito estufa.
O Brasil é o quinto maior emissor mundial desses gases, atrás de China, Estados Unidos, Índia e Rússia. “Temos visto algumas mudanças grandes neste cenário nos últimos anos. Nossas emissões decorrem, principalmente, de mudanças no uso da terra e desmatamento (50%) e da agropecuária (24%). Porém, devido a uma política energética equivocada, podemos mexer com esse quadro. Temos quase 80 novas termelétricas a gás natural fóssil e a carvão mineral em licenciamento e construção no país, que irão sujar intensamente nossa matriz energética”, diz Juliano Bueno.
Mais poluentes e mais caras que outras fontes, cada usina térmica costuma fechar contrato de fornecimento de energia por 30 anos, em média, com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), ou seja, é emissão garantida por mais três décadas.
“A principal contradição do governo Lula na narrativa bem construída que coloca proteção ambiental como elemento central de suas propostas está na área de energia. Não se pode querer ser uma liderança mundial em política climática e, ao mesmo tempo, apoiar a expansão da produção de petróleo com a perspectiva de se tornar um grande exportador. O novo PAC internaliza essa contradição”, diz Suely Araújo, especialista sênior em políticas públicas do Observatório do Clima.
Os recursos destinados a combustíveis de baixo carbono, avalia Araújo, que é ex-presidente do Ibama, estão bem abaixo do que poderiam ser. “O Brasil necessita caminhar para a descarbonização, não o contrário. Em plena crise climática, que tem assumido cada vez mais o tom de tragédia, o olhar do setor de energia do governo está voltado para trás, não para o futuro. Isso necessita ser corrigido, com urgência.”
Plano de Transição Ecológica
Paralelamente ao novo PAC, o governo federal lançou um “Plano de Transição Ecológica”, que pretende impulsionar projetos de desenvolvimento baseados em preservação ambiental e combate às mudanças climáticas. O PAC, que integra um pacote de investimentos em diversas áreas, está ligado aos eixos que formam o Plano de Transição Ecológica e que devem ser impulsionados pelo Ministério da Fazenda: finanças sustentáveis, economia circular, adensamento tecnológico, bioeconomia, transição energética e adaptação à mudança do clima.
Em termos práticos, as medidas desse plano incluem a oferta de novos instrumentos financeiros, fiscais e regulatórios que apoiem projetos sustentáveis. Deverão ser lançadas novas linhas de crédito, além de aperfeiçoamento do ambiente regulatório e do licenciamento ambiental. A regulamentação do mercado de carbono, por exemplo, é uma das prioridades do plano e tema que já tem uma proposta em tramitação no Congresso. A lei deverá impor tetos de emissões de gases de efeito estufa para empresas de diversos setores.
Outra ação prevista pelo Plano de Transição Ecológica é a emissão de títulos soberanos sustentáveis e a reformulação do Fundo Clima, para financiar atividades que envolvem inovação tecnológica. “O projeto de lei do mercado de carbono está no Senado e ainda tem tramitação pela frente. Depois, sendo aprovado, entra em fase de regulamentação, o que deve demorar pelo menos um ano, e então teremos uma fase de transição”, diz Marta Salomon. “Para a agenda climática, interessa quando os setores que emitem mais, como cimento, alumínio, petróleo, gás e frigoríficos, tiverem tetos de emissão. O mercado de carbono não é para ninguém ficar rico, é para baixar as emissões, contribuindo para restaurar florestas.”
Olho na foz do Amazonas
A ambição de explorar petróleo na bacia da foz do rio Amazonas expõe a ambiguidade do setor energético do governo federal sobre a transição energética. Nesta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) voltou a falar sobre a exploração na chamada Margem Equatorial, como é conhecida a região onde deságua o maior rio do planeta. Lula afirmou que o país não deixará de fazer pesquisas na região, que teria potencial para exploração de 14 bilhões de barris de petróleo, segundo a Petrobras.
“Se encontrar a riqueza que se pressupõe que exista lá, aí é uma decisão de Estado, se você vai explorar ou não. Mas veja, é uma exploração a 575 quilômetros à margem do [rio] Amazonas. Não é uma coisa que está vizinha do Amazonas”, disse Lula, durante sua passagem pela Índia. “Não foi pesquisado ainda. É impossível saber antes de pesquisar. Você pode pesquisar, descobrir que tem muita coisa, aí vai se discutir como fazer a exploração daquilo.”
O projeto, que já teve seus estudos rejeitados em análise técnica do Ibama, voltou a ser apresentado pela Petrobras, com novas informações. A isso, somou-se ainda um parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre o tema, apresentado pelo Ministério de Minas e Energia, que defende a exploração.
Segundo a AGU, as dificuldades levantadas pelo Ibama sobre a exploração da área foram levadas à Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal (CCAF), para tentar um “acordo”. O parecer técnico apontou, por exemplo, inconsistências no estudo ambiental que embasa a avaliação da atividade de perfuração em um dos blocos, deixando de avaliar seus impactos ambientais. Coube à ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, rechaçar a ideia e lembrar que “não existe conciliação” para questões de ordem técnica.
Avanços
Para além de novos projetos de infraestrutura, outras medidas incluídas no programa podem ajudar na melhoria do cenário climático. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por exemplo, já traz uma previsão de R$ 10 bilhões de seus recursos para financiar projetos de descarbonização por meio do Fundo Clima, via emissão de títulos verdes. Essa iniciativa faz parte das medidas institucionais do novo PAC.
Criado em 2009, o Fundo Clima é um dos instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima que se destina a aplicar recursos reembolsáveis, com o objetivo de garantir recursos para projetos ou estudos e financiamento de empreendimentos que tenham como objetivo a mitigação das mudanças climáticas. Na prática, se propõe a facilitar a implantação de empreendimentos, aquisição de máquinas e desenvolvimento tecnológico relacionados à redução de emissões de gases do efeito estufa.
“Essa é uma medida importante do programa. Pelo perfil de emissões no Brasil, sabemos que grande parte da coisa se resolve se acabar, de fato, com o desmatamento ilegal. A questão é que o PAC não trouxe um cálculo sobre o quanto esses projetos todos podem impactar na redução de nossas emissões”, diz Marta Salomon, do Instituto Talanoa.
Outro eixo do novo PAC visto como avanço é o das “cidades sustentáveis e resilientes”, que propõe R$ 557,1 bilhões em investimentos públicos, privados e parcerias público-privadas entre 2023 e 2026.
O governo afirma que os investimentos dentro desse eixo estão voltados à moradia, mobilidade urbana, urbanização de favelas, saneamento, prevenção a desastres e gestão de resíduos sólidos. O objetivo é combater desigualdades sociais e regionais, fazendo com que as cidades possam garantir melhores condições de vida à população.
Para este eixo “cidades sustentáveis e resilientes”, foram alocados R$ 10,5 bilhões à prevenção de desastres climáticos e outros R$ 24 bilhões para esgotamento sanitário. Grande parte do recurso neste eixo foi reservada para o programa Minha Casa Minha Vida, que fica com R$ 316,7 bilhões.
“Não está claro se teremos construções com eficiência térmica, uso de materiais de baixo carbono e tecnológicos, tampouco se teremos efetivamente a autogeração de energia elétrica voltadas a baixa e média renda, como um compromisso real de geração distribuída, ao contrário dos enormes subsídios de bilhões dados, por exemplo, à geração e queima de carvão mineral, que encarece a tarifa elétrica de todos”, afirma Juliano Bueno, do Instituto Arayara.
“Há avanços, sim, mas insuficientes, por exemplo, em garantir água em uma crise climática global de extremos, ora com muita água, ora sem água nenhuma. Esses extremos serão o nosso novo normal. Termos um programa mais robusto de resiliência e adaptação climática é necessário.”
Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.