Análise inédita da InfoAmazonia com pesquisadora colaboradora da Fiocruz revela que mulheres, crianças e adolescentes de municípios mato-grossenses com pelo menos 5% da área dedicada à soja têm risco entre 26% e 33% mais chances de desenvolver e morrer por leucemia e linfoma

Como investigamos o impacto da expansão da soja na saúde de crianças e adolescentes nos municípios do Mato Grosso


Analisamos dados da cobertura do uso do solo de Mato Grosso entre 2013 e 2021 disponibilizados pela plataforma MapBiomas

Com esses dados em mão, fizemos um cruzamento entre área dedicada à plantação de soja no estado, entre 2013 a 2021, com os casos e mortes de linfoma não-Hodgkin difuso, leucemia, malformações e óbitos fetais extraídos do Datasus no mesmo período.
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A conexão entre taxas elevadas de incidência de câncer e áreas ligadas ao agronegócio é um assunto complexo que tem sido estudado por cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde há muitos anos. O câncer é uma problema de saúde multifatorial, em que é difícil estabelecer um único motivo como causa. Mas a ciência já mostrou que os agrotóxicos estão entre os fatores ambientais por trás do avanço do número de certos tipos de câncer, como linfoma não-Hodgkin e leucemia, em regiões produtoras de commodities agrícolas. 

O desafio é mensurar o risco à saúde de viver em municípios rodeados de lavouras com uso intensivo de agrotóxicos. Uma análise inédita desenvolvida na InfoAmazonia com consultoria técnica da pesquisadora colaboradora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Tatiane Moraes estimou as chances de desenvolver esses tipos de câncer no Mato Grosso. O levantamento revela que crianças de municípios mato-grossenses com mais de 5% da área dedicada à produção de soja podem chegar a ter 33% a mais de chances de desenvolver linfoma não-Hodgkin e 26% de desenvolver ou morrer de leucemia até os 19 anos. Nestas cidades, o risco de nascer com malformações congênitas pode chegar a ser 27% maior, e o de morte fetal 18% superior à média dos municípios mato-grossenses com área de cultivo de soja menor que 5% da área total. 

Setenta e nove municípios, que representam mais da metade do estado, têm 5% ou mais da área ocupada por lavouras de soja. Entre eles, estão a capital, Cuiabá, e municípios importantes como Sorriso, São Lucas do Rio Verde, Sapezal, entre outros. “O cruzamento confirma nossas impressões, do que vemos aqui. Para além das contradições ambientais e sociais, o agronegócio adoece as pessoas”, diz Valdeir de Souza, coordenador do MST no estado, que reúne 1 mil famílias assentadas.

A análise examinou os registros de casos e mortes de linfoma não-Hodgkin e leucemia apresentados pelo Painel Oncologia, enquanto os dados de malformações congênitas e óbitos fetais são oriundos do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos (Sinasc), ambos do DataSUS, mantido pelo Ministério da Saúde (MS), entre 2013 e 2021. Também foi considerado no cruzamento a área de soja plantada no Mato Grosso, no mesmo período, utilizando os dados da rede MapBiomas, que monitora a cobertura e uso do solo em todo o país. 

A partir de 2017, a soja se tornou a principal commodity no estado, superando as áreas dedicadas ao algodão e ao milho. Dados do MapBiomas revelam que o centro do estado concentra a maior área de cultivo. Lucas do Rio Verde é a campeã: o município tem 64% da área do seu território coberto pela commodity. Ipiranga do Norte e Sorriso ficam logo atrás, com 62% e 61%. Na região sul, o destaque são os municípios de Primavera do Leste e Campo Verde, conforme o gráfico abaixo.

A expansão da soja fez com que o glifosato se tornasse o agrotóxico mais usado nas lavouras do estado, segundo o Departamento de Defesa Agropecuária (Indea) do Mato Grosso. Em 2019, foram aplicados 60,1 milhões de kg de defensivos somente em plantações de soja. Em dois anos, em 2021, saltou para 95,8 milhões de kg, um aumento de quase 60%. Os agrotóxicos usados na soja representam 66% do total de defensivos aplicados nas plantações em Mato Grosso.

Em 2015, a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC, na sigla em inglês), órgão da Organização Mundial de Saúde (OMS), classificou o glifosato como potencialmente cancerígeno. Na contramão das restrições internacionais, a Anvisa reclassificou o glifosato em 2019, tornando sua classificação menos perigosa. Agora nenhum dos derivados do herbicida está na categoria “extremamente tóxica”, que obriga a exibir o símbolo da caveira nas embalagens. Antes, eram considerados potencialmente cancerígenos, teratogênicos (quando há dano ao embrião) e mutagênico (causador de alterações no DNA). A alteração levou uma série de entidades, como a Abrasco, a se manifestar.

Doenças do agro

A pediatra e sanitarista Lia Giraldo da Silva Augusto, coordenadora do projeto Saúde Reprodutiva e Agrotóxicos da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), afirma que os resultados do cruzamento da InfoAmazonia e de pesquisadores da Fiocruz revelam a gravidade da situação. “O estudo evidencia os danos à saúde humana decorrentes do modelo químico-dependente da produção de commodities”, diz Lia Giraldo. “Trata-se de um problema de saúde pública que requer uma ação pronta, apesar de ser um problema crônico. Esse é o valor da pesquisa: trazer as evidências para não se ter mais desculpas de dizer que não sabia”, completa a especialista.

Trata-se de um problema de saúde pública que requer uma ação pronta, apesar de ser um problema crônico. Esse é o valor da pesquisa: trazer as evidências para não se ter mais desculpas de dizer que não sabia

Lia Giraldo da Silva Augusto, pediatra e sanitarista

A sanitarista também destaca o valor da análise feita com base em indicadores públicos, mas de difícil acesso. “A pesquisa escolheu indicadores pouco estudados no Brasil ou mesmo ocultados por falta de um sistema de informação sensível capaz de sinalizar aos gestores públicos e à sociedade a gravidade da situação frente aos riscos dos agrotóxicos”, diz Giraldo. “Os serviços de saúde, especialmente os de vigilância em saúde, não utilizam dados territoriais de produção e de consumo para monitorar efeitos nocivos. Não há integração com os dados de outros setores, mas que interessam a vigilância”, detalha a sanitarista. 

Os resultados sobre o aumento de risco de linfoma não-Hodgkin chamam particularmente a atenção, na opinião da sanitarista. “Este é um tipo de câncer com origem nas células do sistema linfático e que se espalha no corpo. Como o sistema linfático faz parte do sistema imunológico, já se pode deduzir o tamanho do problema. Antes ele era uma ocorrência que se dava em pessoas mais velhas, mas a revelação de uma prevalência alta em crianças e adolescentes indica que o componente ambiental é um importante fator”, conclui. 

Pesquisas do Núcleo de Estudos Ambientais e de Saúde do Trabalhador (Neast) da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT) já apontaram a associação entre câncer infantojuvenil e agrotóxicos. Um dos estudos, conduzido pela enfermeira Mariana Soares e publicado no livro “Os desastres sócio-sanitários-ambientais do agronegócio” (2022), apresentou uma correlação positiva no período de 2008 até 2017 entre o uso médio de agrotóxicos em litros e a média de óbitos e internações por câncer infantojuvenil em 138 municípios. Os casos de câncer, como a leucemia, cresceram 145% no mesmo período no norte do estado, que concentra a produção de soja conforme o levantamento da pesquisadora. No ano passado, a UFMT publicou outro estudo, feito a partir de questionários aplicados a residentes de municípios mato-grossenses, em que 71,8% dos entrevistados disse utilizar agrotóxicos de uso doméstico. Esse estudo apontou uma alta subnotificação de intoxicações agudas, problemas respiratórios, transtornos psicológicos, doenças renais e cânceres associados à exposição ambiental nos municípios de maior produção agrícola. 

Em 2019, o Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso (MPT-MT) e o Ministério Público Federal ajuizaram uma ação coletiva contra a Aprosoja, que representa 30 mil produtores do estado, para impedir o uso do glifosato nas lavouras. “Na medida que se sabe que o glifosato é provavelmente cancerígeno, o empregador não pode submeter o trabalhador a esse produto. É a mesma lógica do amianto, da precaução”, diz procurador do trabalho Bruno Choary Cunha de Lima, coordenador do Fórum Mato-grossense de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, ao qual o Neast da UFMT também faz parte. A rotina de fiscalização sobre condições de trabalho nas fazendas gerou uma série de inquéritos e termos de ajustamento de conduta (TAC) sobre a falta de cumprimento das notas de segurança contidas na NR 31 e em leis federais. “Em geral, as empresas pagam as multas e seguem cumprindo apenas parcialmente as regras, o que gera novas fiscalizações, num esforço permanente”, diz Cunha de Lima. 

O procurador observa que as normas visam prevenir as intoxicações agudas, mas são insuficientes para controlar o efeito crônico. “A exposição por intoxicação crônica é mais perigosa porque o nexo com a exposição é mais cinzento. Por isso, dependemos dessas análises epidemiológicas que nos permitem discutir esse impacto na sociedade e no judiciário”, diz o procurador, referindo-se ao levantamento da InfoAmazonia, que contou com a consultoria técnica de Tatiane Moraes, pesquisadora colaboradora da  Fiocruz. “Essas análises são ainda mais relevantes quando vemos que os mais afetados são crianças, sem outros fatores de risco para desenvolver doenças graves como linfoma e leucemia”.

Existe a ideia do ‘com causa’ no direito, ou seja, ainda que os agrotóxicos não tenham sido a única causa, eles foram determinantes para aumentar o risco.

Bruno Choary Cunha de Lima, procurador MPT-MT

Os cruzamentos de base epidemiológica, que estimam o risco de plantações de soja, ajudam, segundo Lima, nas ações individuais e coletivas contra os agrotóxicos, que ainda são incipientes no Brasil. “Existe a ideia do ‘com causa’ no direito, ou seja, ainda que os agrotóxicos não tenham sido a única causa, eles foram determinantes para aumentar o risco. Nos EUA, existem centenas de milhares de ações e condenações contra o glisofato por causa do câncer em trabalhadores. Quando essas ações começarem a surgir aqui, talvez a sociedade reaja de forma mais contundente”, completa o procurador. 

Leis municipais e estaduais mais restritivas, como a do Ceará que proibiu a pulverização aérea dos pesticidas, ajudam a forçar mais restrição. “Os estados e municípios também podem ser responsabilizados nestas ações de indenização e precisam agir. Mudanças como a do Ceará forçam alterações ao nível nacional”, observa o procurador. 

Antes da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, uma das comissões da Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei que institui a Política Nacional de Redução dos Agrotóxicos, o PNaRA. O PL, no entanto, ficou parado durante os anos de governo Bolsonaro, quando o PL 6299, conhecido como Pacote do Veneno, ganhou impulso no Congresso. “O PNaRA precisa ser defendido por toda a sociedade agora”, defende Valdeir de Souza, do MST de Mato Grosso.

A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) iniciou um estudo para reunir as pesquisas brasileiras sobre o impacto dos agrotóxicos na saúde reprodutiva e identificar se os sistemas de informação estão habilitados a fornecer dados que possibilitem uma análise ampla da situação. “Estamos também preocupados com o modelo de vigilância epidemiológico de agravos decorrentes desses agentes químicos que fica limitado às intoxicações agudas e, assim mesmo, de modo ainda muito subnotificado”, detalha Lia Giraldo. 

O projeto também avaliará por que é ainda tão difícil convencer autoridades públicas dos riscos dos agrotóxicos à saúde. “Estamos analisando a guerra cognitiva para ocultar situações de risco, distorcendo os conhecimentos científicos e construindo narrativas que mantêm essa situação de perigo sem que as autoridades tomem as decisões corretas e sem que a sociedade se dê conta de como adoece e morre sua população”, diz a sanitarista. 


Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.

Sobre o autor

Sílvia Lisboa

Jornalista. Sócia-fundadora da Fronteira, estúdio especializado em reportagens. Colabora com InfoAmazonia, Diálogo Chino, Joio e o Trigo, Veja Saúde e Matinal.

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