Cicatrizes de incêndios e queimadas na Amazônia Legal foram registradas em mais de 62 milhões de hectares (Mha) em uma década, revela análise da InfoAmazonia em parceria com LASA, da UFRJ. Fogo é mais presente em áreas para agropecuária e na derrubada de florestas primárias; menos de 1% é causado por fenômenos naturais. Na região, 15 milhões de pessoas ficam expostas a efeitos nocivos da fumaça durante a temporada de queimadas.

O rastro do fogo na Amazônia pelas lentes de satélite


Todos os dias, as imagens de satélite do sensor VIIRS, da NASA, são capturadas e processadas através de um sistema de deep learning

Toda a análise espacial foi realizada na ferramenta de geoprocessamento e de código livre, QGIS, onde cruzamos dados das camadas de cicatriz do fogo, em formato raster, com polígonos e linhas, como terras indígenas específicas e unidades de conservação específicas, o entorno de rodovias, de áreas públicas e outros.
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Primeiro, tiram a madeira nobre, que é o chamado corte seletivo. Depois, toda a floresta que parece não ter valor econômico imediato vai ao chão, e em seguida queima. A fumaça, que se alastra pelo céu, chega nas terras indígenas, nas comunidades ribeirinhas e nas cidades, denunciando mais uma temporada de fogo na Amazônia.

Os meses entre agosto e outubro são os mais críticos. Neste período da estação seca na região, o fogo cumpre com mais uma etapa no ciclo de desmatamento que consome a maior floresta tropical do mundo.

Nos últimos 10 anos, entre 2012 e 2022, a destruição causada por incêndios e queimadas na Amazônia Legal devastou mais de 62 milhões de hectares (Mha), uma área equivalente ao tamanho da França (55,1 milhões de ha) e da Irlanda (7 milhões ha) juntas. 


Os dados são do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA), do Departamento de Meteorologia da UFRJ, que analisa imagens de satélite do sensor VIIRS, da NASA, e calcula diariamente as cicatrizes de fogo causadas por incêndios ou queimadas. As informações estão disponíveis no sistema ALARMES, com dados por categorias fundiárias como terras indígenas, bioma, unidades de conservação entre outras áreas de interesse.

Com apoio da equipe do LASA, o Laboratório de Geojornalismo da InfoAmazonia analisou as camadas de cicatrizes de fogo para entender onde e como a Amazônia queima. 

Metade da área queimada na Amazônia Legal em uma década (33 milhões de ha) foi registrada em apenas 39 dos 494 municípios com cicatrizes de fogo processadas pelo LASA. 

O ALARMES opera desde 2020 como uma demanda direta do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo-IBAMA) e auxilia nas ações de combate e monitoramento do fogo nos biomas Amazônia, Cerrado e Pantanal.

A maior parte do fogo registrado pelo LASA nesses 10 anos está concentrado no chamado arco do desmatamento, onde a devastação avança em direção aos blocos mais preservados de floresta. As cidades mais castigadas nesse período são São Félix do Xingu e Altamira, no Pará, e Porto Velho, em Rondônia. Juntos, os três municípios acumulam mais de 10% das cicatrizes de fogo registradas na Amazônia na última década. Os mesmos municípios estão entre os que mais têm cabeças de gado e os que mais emitem gases do efeito estufa.

Área de floresta pública não destinada, uma cicatriz de fogo totalmente carbonizada em Rondônia. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

O desmatamento e atividades agrícolas são os principais fatores para a ocorrência de fogo na Amazônia, tendo mais influência do que eventos de seca extrema, apontam pesquisadores do LASA em artigo publicado recentemente na revista científica Nature

Na maior parte da área incendiada da Amazônia, segundo constatou nossa reportagem, a floresta virou pasto para criação de gado ou lavoura para produção de soja.

“O papel desempenhado pelo desmatamento resultante da forte pressão antropogênica que a região experimentou nas últimas décadas levou a mudanças no uso da terra, associadas à conversão de florestas em agricultura e pastagem, exploração seletiva de madeira e fragmentação florestal”, explica Renata Libonati, coordenadora do LASA e consultora científica da reportagem. 

Em 99% dos casos, segundo Libonati, o fogo na Amazônia é gerado por ação humana, seja através de queimadas para manejo agropecuário, autorizadas ou não, e que eventualmente saem de controle e provocam incêndios florestais, seja pelo próprio desmatamento ilegal, que queima a madeira seca para limpar a área. A pesquisadora destaca que nem todo fogo é ilegal, e todos deixam cicatriz.

Na Amazônia, a maior parte do fogo é por causa do desmatamento e por uso de técnicas relacionadas à agricultura e pastagem.

Renata Libonati, coordenadora do LASA

“Na Amazônia, a maior parte do fogo é por causa do desmatamento e por uso de técnicas relacionadas à agricultura e pastagem. Nos dois casos, o fogo pode se alastrar e causar incêndios florestais”, aponta Libonati. Segundo a pesquisadora, os eventos naturais são responsáveis por menos de 1% das causas de fogo no bioma. 

Além dos danos ao meio ambiente, nos meses da temporada de queimadas, a fumaça vinda da floresta deixa mais de 15 milhões de amazônidas (63% da população) expostos à  poluição do ar acima dos níveis máximos recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é o que revela estudo “Poluição do ar por queimadas florestais como risco ambiental para milhões de habitantes da Amazônia brasileira: um indicador de exposição para a saúde humana” (leia mais abaixo).

Um outro estudo publicado pela GeoHealth em 2021, estima que o avanço do desmatamento desde 2012 tornou as regiões mais áridas e provocou um crescimento de 39% na quantidade de incêndios florestais durante a estação seca amazônica, gerando uma maior exposição da população à poluição atmosférica. O aumento dessa exposição, segundo a pesquisa, resultou em 3.400 mortes adicionais em 2019 na região.

Fogo abre caminho para fronteira agrícola

Essa nova fronteira agrícola, que se move à base de desmatamento e fogo, alterou radicalmente a paisagem em áreas do sul do Amazonas, leste do Acre e noroeste de Rondônia, nos municípios que formam o projeto de fortalecimento do agronegócio conhecido pelo acrônimo AMACRO

Nos últimos quatro anos, de 2019 a 2022, a média de áreas queimadas nessa região foi de 1,6 Mha por ano, um aumento de 110% em comparação com a média do período histórico da série de 2012 a 2018 (798 mil ha). No governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), em toda a Amazônia, a média de área consumida pelo fogo aumentou 24%, quando comparado com o período anterior de 2015 a 2018.

Cicatriz de fogo em Rondônia, em setembro de 2022. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Para o professor Luis Fernando Novoa, da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que também analisou os dados do LASA a pedido da reportagem, “é clara a responsabilidade da ausência de políticas de Estado nos últimos anos”.  Segundo Novoa, esta ausência ocorreu por meio de uma série de fatores: “seja de ordem discursiva, simbólica e da propaganda oficial ou por conta de medidas administrativas, como a não tramitação de multas, desmontes administrativos e bloqueios regulatórios.

Evolução das cicatrizes de fogo na AMACRO

Em Lábrea, que já é o quarto município mais desmatado da Amazônia segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), o monitoramento do LASA mostra que a área queimada mais que quadruplicou na última década, passando de 59 mil ha em 2012 para 256 mil ha queimados em 2022.

Ao analisarmos as áreas de cicatrizes de fogo do LASA em comparação com os dados de ocupação do solo do MapBiomas, fica evidente a correspondência entre  as queimadas e os locais onde a floresta foi convertida para projetos agropecuários.

Vale destacar que o monitoramento do LASA contabiliza o avanço da cicatriz do fogo diariamente. Caso no ano seguinte volte a ocorrer fogo na mesma região, o monitoramento contabiliza novamente a área. O método é diferente, por exemplo, da medição do desmatamento oficial realizado pelo INPE, que calcula a área de perda de florestas primárias apenas uma vez.

Portanto, a área total queimada computada pelo LASA ao longo de 10 anos para determinadas regiões pode ser bem superior ao tamanho de floresta primária desmatada, já que uma mesma área pode ser queimada várias vezes, seja por incêndios florestais ou por queimadas em áreas agrícolas.

Área na região da AMACRO durante queimada. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

As cicatrizes do fogo também mostraram avanço sobre a floresta nas rodovias BR-230, a Transamazônica, no eixo entre norte do Mato Grosso e o sul do Amazonas, e na área de influência da BR-319, projeto abandonado na década de 1990 que ganhou força na última gestão federal, com a promessa de se reconstruir o asfalto entre Porto Velho e Manaus. Situação semelhante também ao que ocorre nos municípios do Pará às margens da BR-163, como Altamira e Novo Progresso.

“É importante fazer a conexão entre o desmatamento e a incidência direta de projetos de infraestrutura em parceria com o governo federal, como a usina de Belo Monte, as hidrelétricas do rio Madeira e o projeto da BR-319”, afirma Novoa, destacando ainda que a coincidência dos desmatamentos e queimadas no eixo da BR-163 pode aumentar ainda mais com o projeto da ferrovia Ferrogrão.

Na AMACRO, segundo levantamento do Greenpeace com dados do LASA, estima-se que 8% da região queimou pelo menos uma vez na última década. Além disso, 65% dos registros de cicatrizes causadas por fogo anualmente estão concentradas numa faixa de até 10 quilômetros de rodovias estaduais e federais.

Um estudo publicado por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) aponta que a reconstrução da BR-319 poderá aumentar o desmatamento em 1.200% até o ano de 2100 e provocar um colapso ambiental sem precedentes. 

Pelo menos 69 terras indígenas e 41 unidades de conservação estão na área de influência da rodovia.

Os registros do LASA mostram as marcas do fogo na invasão da TI Ituna-Itatá, onde houve pressão para a não renovação da portaria de proteção dos indígenas isolados. Fonte: LASA/Planet Labs. Inc

Incêndios em terras públicas

Um dos fatores que denuncia a intenção criminosa por trás dos incêndios e queimadas na Amazônia é a concentração de área devastada em florestas públicas não destinadas, áreas que não têm finalidade específica como as Unidades de Conservação e as Terras Indígenas.

Em setembro de 2022, a InfoAmazonia sobrevoou o maior desmatamento da Amazônia registrado pelo INPE. A área desmatada no estado de Rondônia, nas glebas Jacundá e Rio Preto, também foi a terra pública mais queimada naquele ano, segundo apontam os cálculos de áreas das cicatrizes mapeadas pelo LASA.

“Está comprovado por diversas pesquisas e pelos próprios órgãos públicos que é nas terras públicas não destinadas que se concentram o desmatamento e as queimadas. É nítida a falta de boa-fé de quem patrocina esse desmatamento, que não é fruto de necessidade urgente de plantar para comer ou para garantir subsistência. É uma especulação que se faz com desmatamento em área mais facilmente grilada”, explica Novoa.

Diferentes estágios da degradação onde foi registrado maior desmatamento da Amazônia em 2022. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Para Rômulo Batista, porta-voz do Greenpeace Brasil, organização que atuou junto com o LASA para a implantação do sistema de alertas para a Amazônia, o Brasil não dispõe de estrutura adequada para o combate e a prevenção de queimadas e incêndios florestais. 

“Até hoje a legislação de manejo integrado do fogo não foi aprovada; temos o programa PREVFOGO que faz um trabalho muito importante, porém o efetivo é aquém do necessário”, avalia. 

Segundo Batista, faltam ações de prevenção e de educação ambiental para o manejo do fogo, especialmente para pequenos proprietários: “é muito mais eficiente do que apagar o fogo, especialmente em uma região tão grande como a Amazônia. Além disso, é importante investigar e punir as pessoas e empresas que causam os incêndios e queimadas ilegais, para coibir a continuidade da prática desse delito ambiental”, completa o porta-voz do Greenpeace.

Já o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (IBAMA) informou à reportagem que para 2023 reforçou o número de brigadistas para 2.101, aumento de 17,51% em relação ao ano passado, sendo que 57% das brigadas são compostas por indígenas e quilombolas. 

O órgão também afirmou que houve crescimento nos autos de infração, e nos embargos de áreas cresceram e nas apreensões em relação ao governo anterior. O monitoramento da qualidade do ar foi inserido no novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm) e disponibilizará recursos do Fundo Amazônia para a construção de uma rede aprimorada de monitoramento da qualidade do ar na região.

Cercados pelo fogo

Historicamente, terras indígenas e unidades de conservação representam uma resistência significativa para conter o avanço do desmatamento na floresta amazônica. No entanto, a expansão desenfreada dessa destruição transformou esses territórios em ilhas verdes cercadas por fazendas e lavouras.

O monitoramento do LASA identificou ao longo da série histórica, de 2012 a 2022, 14 milhões de hectares de cicatrizes de fogo, metade em terras indígenas (7 Mha) e metade em unidades de conservação (7 Mha) .

Territórios que não apareciam nas listas de desmatamento tiveram grandes áreas devastadas em curto espaço de tempo, como ocorreu na Terra Indígena Ituna-Itatá, no Pará, onde há registro de povos isolados. Só em 2019, segundo os dados do LASA, foram mais de 10 mil hectares incendiados na TI. Nesse mesmo ano, Ituna-Itatá foi a terra indígena mais desmatada na Amazônia, conforme dados oficiais de desmatamento do INPE, com 11 mil ha de florestas primárias devastadas.

A TI Ituna-Itatá não está homologada e a pressão dos invasores aumentou nos últimos anos com a expectativa de que o então governo de Jair Bolsonaro não renovaria a portaria de proteção do território para garantir os estudos de demarcação, o que só ocorreu após decisão judicial.

As imagens de satélite mostram como as cicatrizes do fogo avançaram especificamente neste território nos últimos anos, revelando que os invasores evitaram as terras indígenas do entorno, que estão demarcadas e homologadas.

Os registros do LASA mostram as marcas do fogo na invasão da TI Ituna-Itatá, onde houve pressão para a não renovação da portaria de proteção dos indígenas isolados. Fonte: LASA/Planet Labs. Inc

Na Terra Indígena Karipuna, que foi a TI a mais desmatada na área de influência da BR-319 no ano passado, as cicatrizes de fogo no monitoramento anual aumentaram 40 vezes na última década. O reduto do povo Karipuna, que tinha desmatamento praticamente zero em 2012, se tornou uma das terras indígenas mais invadidas da Amazônia nos últimos anos.

A floresta que resiste de pé garante a subsistência da população indígena cercada. No entorno, quase toda a mata nativa amazônica foi desmatada e queimada.

É o que ocorre também em outras terras indígenas no norte de Rondônia, como nas TIs Uru-Eu-Wau-Wau e Karitiana.

Fogo na Terra Indígena Karipuna registrado em setembro de 2022. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Já entre as unidades de conservação, a APA Triunfo do Xingu, no Pará, foi a mais castigada pelo fogo. Se somado, o tamanho da área incendiada dentro da zona de preservação nesses 10 anos foi 1,6 Mha, o que equivale a todo seu território. Nos registros de satélite é possível identificar que várias áreas pegaram fogo mais de uma vez.

Os dados do INPE mostram que, desde que foi criada em 2006, a recordista em áreas com fogo, a APA Triunfo do Xingu, já perdeu 35% de suas florestas primárias. A principal atividade nas áreas desmatadas da UC é a criação de gado.

15 milhões de pessoas expostas à poluição do ar 

Os efeitos das queimadas na Amazônia tornam o ar da região prejudicial à saúde de 15 milhões de pessoas em metade dos dias do ano, segundo aponta estudo publicado em julho deste ano por pesquisadores da Universidade do Estado do Mato Grosso (Unemat), da Fundação Oswaldo Cruz do Piauí, da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e da Universidade de São Paulo (USP).

A pesquisa mapeou a qualidade do ar para Amazônia e Pantanal de 2010 a 2019, com dados de material particulado do satélite do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas em Médio Prazo (ECMWF). O estudo analisou apenas o material particulado fino (PM2,5), poluente mais comumente estudado em termos de efeitos à saúde. 

Nos meses de agosto a outubro, período de maior registro de incêndios e queimadas na Amazônia, a poluição do ar chega a ser cinco vezes maior que os níveis máximos recomendados pelaa OMS, que atualmente é de 15 microgramas por m³. Nesse período, em alguns municípios, o ar pode ficar poluído até 100% dos dias por até 3 meses. A exposição nos níveis máximos, que chegam a atingir 1.000 microgramas por m³, seria o equivalente a fumar 40 cigarros a cada hora de exposição.

“Nós usamos um indicador que é específico para medir os impactos na saúde humana e mostra que, na região amazônica, as pessoas ficam mais tempo expostas a níveis acima do máximo indicado pela OMS”, explica Beatriz Oliveira, pesquisadora da Fiocruz  e uma das autoras da pesquisa.

Porto Velho, Rondônia, uma das três cidades com mais cicatrizes de fogo registradas

Esta reportagem é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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