Para cumprir decisão judicial que apontou necessidade de proteção da Terra Indígena Ituna-Itatá, órgão renova portaria de restrição de uso mas com prazo bem inferior ao pedido pelos procuradores federais; entidades de proteção alertam que prazo dado pelo governo federal não é suficiente para conclusão dos estudos para demarcação.

Depois de afirmar não ter elementos para renovar a restrição de uso para identificação de povos isolados na Terra Indígena Ituna-Itatá, Pará, contrariando inclusive estudos da própria área técnica, a Fundação Nacional do Índio (Funai) voltou atrás e decidiu pela prorrogação da portaria de proteção do território por mais seis meses. Nesse período, o órgão deveria concluir estudos multidisciplinares de natureza etno-histórica, antropológica, ambiental e cartográfica para dar prosseguimento ao processo de reconhecimento da terra indígena. No entanto, segundo fontes consultadas pelo InfoAmazonia, o prazo é insuficiente e coloca ainda mais pressão sobre o território que já é um dos mais desmatados da Amazônia.

A renovação da portaria de restrição, que proíbe a entrada de pessoas não autorizadas na terra indígena, foi publicada nesta terça-feira, 1º de fevereiro, após decisão da Justiça Federal do Pará, que acolheu pedido do Ministério Público Federal (MPF). A recomendação dos procuradores do MPF está baseada em laudo técnico, produzido a partir da expedição realizada entre agosto e setembro do ano passado, que coletou vestígios dos isolados em Ituna-Itatá. O prazo para uma nova restrição de três anos pedido pelo Ministério Público e as organizações de proteção aos povos isolados foi ignorado pela Funai.

Nos próximos dias, a presidência do órgão deve nomear um novo grupo de trabalho (GT) para realização dos estudos multidisciplinares, conforme estabelece o decreto 1.775/1996. “Com a decisão judicial, em tese, a Funai tem que criar um grupo de trabalho, nomeado pelo presidente da Fundação, para realizar os estudos nesse prazo de seis meses”, explica a advogada Carolina Santana, do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI).

“Essa não é a primeira renovação da portaria de restrição de uso com a justificativa de que os estudos seriam finalizados em seis meses. A gente sabe que é quase impossível concluir os estudos nesse prazo, porque há dificuldades de campo, de acessar o espaço. Isso já era difícil em governos que apoiavam a demarcação de terras indígenas, imagina agora, em um governo que já deixou claro que não iria fazer  demarcação”, afirma a advogada.

A gente sabe que é quase impossível concluir os estudos nesse prazo, porque há dificuldades de campo, de acessar o espaço. Isso já era difícil em governos que apoiavam a demarcação de terras indígenas, imagina agora, em um governo que já deixou claro que não iria fazer  demarcação.

Carolina Santana, advogada do Observatório dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas Isolados e de Recente Contato (OPI)

Carolina Santana se refere à renovação da restrição de uso na Terra Indígena Piripkura, no Mato Grosso, onde também há registros de isolados. A restrição de uso na área ocupada pelos piripkuras foi renovada em setembro do ano passado, com o mesmo prazo de seis meses, e posterior criação do GT para realização dos estudos. Na época, os nomes escolhidos pela Funai acabaram questionados na Justiça e o MPF do Mato Grosso identificou ligações estreitas entre membros do GT e grupos “notoriamente ligados a setores diretamente interessados na exploração de terras indígenas”. Segundo o MPF, um dos integrantes do grupo de estudos, o agrônomo Evandro Marcos Biesdorf, atualmente Coordenador Geral de Geoprocessamento da FUNAI​​, teria elaborado projeto para redução da área de Ituna-Itatá.

Constantemente pressionada por grupos políticos e econômicos com interesses na área interditada de Ituna-Itatá, a Funai chegou a emitir nota ignorando os achados relatados na nota técnica.

Um dos que pressionou a Fundação foi o senador Zequinha Marinho (PL-PA), que insiste em afirmar que não há isolados na região. Marinho teria tido inclusive acesso ao relatório da equipe técnica com informações privilegiadas sobre os isolados, o que poderia inclusive colocar os indígenas em risco, já que Zequinha é defensor declarado de empresários como Jassonio Costa Leite, apontado como um dos principais grileiros de Ituna-Itatá.

“É importante lembrar que a primeira vez que a restrição de uso foi decretada em 2011, ela fazia parte das condicionantes do projeto da usina de Belo Monte. O descumprimento ou alteração disso, ao meu ver, seria um descumprimento das condicionantes”, observa a advogada Carolina Santana.

Indefinição sobre futuro dos isolados

Além das terras indígenas Ituna-Itatá e Piripkura, outras áreas com a presença de índios isolados tiveram ou terão seus prazos expirados na gestão Bolsonaro, como a Terra Indígena Jacareúba/Katawixi, no Amazonas, que desde dezembro aguarda renovação da restrição de uso, e a terra Piriti, em Roraima, que teve renovação publicada, também por seis meses, mas ainda aguarda escolha do GT.

Essa é a primeira vez que o governo adota prazos tão curtos para estudos nessas áreas, antes fixado normalmente entre dois e três anos, dependendo do grau de complexidade dos estudos. Ao fim do período de restrição, explica o indigenista Leonardo Lenin Santos, coordenador da OPI, o governo deveria iniciar o processo de regularização fundiária da terra para homologação da terra. Mas não há nenhuma indicação de que isso vai ocorrer, gerando ainda mais dúvidas sobre novas renovações dessas portarias.

“As portarias de restrição são necessárias enquanto não se termina a conclusão do processo fundiário. A ideia é que os trabalhos de expedições tragam informações para construção desses relatórios do GT para que esse processo de restrição de uso passe para um processo de regularização fundiária. Mas em um governo que não movimentou nenhum processo de regularização de terras indígenas, eu pergunto, eles vão publicar uma portaria de delimitação de isolados?”, indaga Santos, lançando dúvidas sobre a proteção desses territórios no futuro próximo.

“Desde que foi renovada a restrição de uso na Terra Indígena Piripkura nenhuma ação de fiscalização foi realizada”, avisa Santos, apontando que a diminuição dos períodos de restrições enfraquece ainda mais os trabalhos técnicos nessas áreas.

Na Terra Indígena Ituna-Itatá, localizada entre os municípios de Altamira e Senador José Porfírio, no Pará, a grilagem já destruiu mais de 21 mil hectares para retirada de madeira e abertura de pastos. Os pedidos autodeclarados de Cadastro Ambiental Rural (CAR) demonstram os interesses sobre o território. Praticamente toda a área do território está demarcada com pedidos para exploração da área. Todos eles seguem pendentes de análises.

O MPF diz que ainda estuda a decisão da Funai em renovar a restrição por apenas seis meses, e não por três anos como indicado pelos procuradores. 

Questionada sobre quais trabalhos serão executados em Ituna-Itatá nos próximos seis meses, a Funai não se manifestou.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo do InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Tem foco na cobertura...

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2 comments

  1. Texto completo, elucidativo e triste ao mesmo tempo. Vivemos um dos piores momentos para os indígenas. O tempo dessa nefasta portaria deverá terminar em outubro, nas eleições.

  2. A prorrogação adveio de ordem judicial.
    Não instante, os estudos no local se iniciaram em 2011. Houve uma prorrogação até 2013. Mais duas vezes (2016 a 2019 e outra 2022). No local o governo do estado do Para alocou agricultores vindos da região do bacajai para cumprir condicionante da usina de Belo Monte. Nunca foi encontrado índio no local. Agricultor, crianças e muito trabalho são encontrados por lá. Não dá para confundir a questão do garimpo com os moradores locais

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