Levantamento liderado por Inpe e Fiocruz, em parceria com a InfoAmazonia, foi realizado com base em imagens de satélite da terra indígena e analisa o impacto da mudança do território nos rios e comunidades, incluindo garimpo, degradação e desmatamento. Mais de 62% da população Yanomami vive em áreas sob influência da ação de invasores.
Um levantamento inédito revela a preocupante distribuição dos danos provocados pelas invasões e pelo garimpo nos rios e aldeias da Terra Indígena Yanomami, em Roraima. Os resultados mostram que 59% dos rios habitados, ou seja, que abrigam comunidades próximas, apresentam fortes indícios de contaminação.
A análise foi conduzida pelo grupo de trabalho (GT) Geo-Yanomami, composto por pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Universidade Veiga de Almeida (UVA), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal do Amazonas (UFAM), entre outros, em parceria exclusiva com a InfoAmazonia. Usou-se de técnicas de geoprocessamento: Segundo o Instituto de Pesquisas e Estudos Florestais, o geoprocessamento trata das diversas técnicas empregadas na coleta, armazenamento, processamento, análise e representação de dados com expressão espacial, isto é, possíveis de serem referenciados geograficamente (georreferenciados). e sensoriamento remoto: O sensoriamento remoto é a técnica de obtenção de informações acerca de um objeto, área ou fenômeno localizado na Terra, sem que haja contato físico com o mesmo. , que permitem um monitoramento contínuo e à distância – a metodologia não contempla coleta de amostras dos rios ou das pessoas in loco. Os cientistas optaram por utilizar o limite de atuação do governo federal na saúde indígena, o Distrito Sanitário Especial indígena (DSEI), para entender quais são as áreas mais impactadas pela atuação de garimpeiros desde 2015.
Maurício Ye’kwana, diretor da Hutukara Associação Yanomami, teve acesso ao levantamento e afirma que, embora já houvesse invasão garimpeira antes da Covid-19, foi durante a pandemia e o governo Bolsonaro que a situação se acentuou: “a fiscalização parou, e o garimpo aumentou bastante”. Ele explica, então, a importância dos especialistas para entender a real situação do território:
“Para os indígenas, o rio que é poluído é o que está com cor barrenta. Ele já está contaminado. A gente não tem como medir se tem mercúrio, se tem derramamento de combustível. A gente não sabe. Para isso, a gente solicita para o pessoal especialista, principalmente a Fiocruz, para fazer análise. Mas vendo tudo, a gente sabe que está contaminado”.
Como investigamos a situação dos rios da Terra Indígena Yanomami?
A parceria com pesquisadores ocorreu para investigar três fatores relevantes sobre a situação atual da Terra Indígena Yanomami: os rios, o território e as comunidades.
O levantamento utilizou os alertas do Deter sobre mudanças no uso do solo, dados da malha hidrográfica e informações sobre populações indígenas. Foram identificadas pistas de pouso e evidências de contaminação dos rios por meio de mudanças visuais. A qualidade da água também foi observada visualmente, revelando o impacto do garimpo através da cor dos rios. Confira mais detalhes nesta página.
Ação do garimpo nos rios habitados
Os pesquisadores analisaram três fatores bastante relevantes para a sobrevivência dos indígenas: os rios, o território e as aldeias. Eles levaram em consideração a rede hidrológica, que abrange cerca de 25.000 km dentro do Distrito Sanitário Especial indígena (DSEI). Desses rios, aproximadamente 1.900 km possuem comunidades indígenas a uma distância de até 1 km de suas margens.
Assim, foi possível entender quais eram os rios habitados e, então, começar a entender quais eram os fatores de interação com a realidade dos indígenas. A pergunta inicial foi: como está o território ao redor dos rios habitados e das aldeias?
Para responder, os autores contaram com os dados do Deter: Ferramenta do governo federal que gera alertas rápidos para evidências de alteração da cobertura florestal na Amazônia e no Cerrado., sistema do (Inpe) que faz um levantamento rápido com alertas de evidências de alteração da cobertura florestal. Eles identificaram quais eram os rios com área de exposição aos alertas e, assim, chegou-se ao seguinte dado: 59% dos rios usualmente habitados pelos Yanomami estão atualmente sob efeito do garimpo e invasões, com alta probabilidade de contaminação por mercúrio, impactando a biodiversidade e a vida Yanomami.
Diego Xavier, doutor em saúde pública pela Fiocruz e um dos responsáveis pelo estudo, afirma que “esta é uma estimativa conservadora”. Além de possíveis imprecisões nos dados e falta de estudos específicos sobre as etnias que compõem o povo e a Terra Indígena Yanomami, ele aponta outro fator: os indígenas circulam bastante pelo território para realizar atividades de caça, pesca, agricultura e visitas a rituais intercomunitários. Em outras palavras, os 1.900 km de rios habitados analisados consideram apenas a localização fixa das aldeias, mas o problema provavelmente é ainda maior, já que com a circulação pelo território há interação dos indígenas em outros rios potencialmente afetados por garimpeiros e invasores.
Nathália Saldanha, antropóloga e doutora em Informação e Comunicação em saúde pela Fiocruz, explica que “a base da vida dessas populações indígenas está na floresta e nos rios, influenciando a sua relação com o espaço, com o alimento, na comunidade e entre comunidades. Por isso, o rio e a floresta se tornam elementos centrais na organização social dos indígenas. Eles ficam em movimento pendular de aproximação e afastamento dos postos de contato permanente e para isso fazem uso de segundas residências, onde se movem até o rio e voltando para o interior das florestas”, explica.
Saldanha salienta que esse deslocamento pelo território entre rios, aldeias e florestas mais densas ocorre “pela busca da caça, dos peixes, e outros alimentos que fazem parte da sua base alimentar. Quando existe a presença de invasores e garimpeiros na área, as populações indígenas se afugentam e tentam ir o mais longe possível”.
Carlo Zacquini, missionário católico do Instituto Missionário da Consolata, dedicou décadas à luta pelos direitos Yanomami durante a ditadura militar e vivenciou de perto a catástrofe que foi a invasão garimpeira nos anos 1980. “Os Yanomami não têm para onde correr. Tem que comer o que tem. Com o garimpo, os peixes diminuíram drasticamente na área. Isso não tanto pelo mercúrio, e mais pela lama que é injetada no rio, por essas bombas que desmancham as terras nos barrancos, e isso tira o oxigênio. Os Yanomami dizem que os peixes passam boiando em cima da água”.
A dimensão da destruição é tão grande que Zacquini, diz que encontra dificuldade em comparar o que está acontecendo atualmente no território Yanomami com o que testemunhou há quarenta anos. Segundo ele: “Continuamos falando sobre garimpeiros, mas acho que isso está errado, porque são grandes empresas, máquinas caras e o número de aviões e helicópteros que circulam lá é impressionante. Mesmo após a destruição de dezenas de aviões e helicópteros, o garimpo continua”.
Vida coletiva em risco
Embora a conclusão de que “mais da metade dos rios habitados são afetados pelo garimpo e por invasores” já seja alarmante, a análise foi complementada considerando as “áreas de vivência” de cada comunidade indígena no DSEI Yanomami — os pesquisadores se concentraram em calcular a porcentagem das aldeias em situação de risco e determinar a proporção da população que está sujeita à influência dos problemas do território.
Assim, foi estabelecida uma área de 5 km (área de vivência direta) em torno de cada comunidade, levando em conta os locais de circulação dos Yanomami. Ao mesmo tempo, também foi criada uma outra área de até 1 km ao redor dos locais identificados via Deter como tendo alterações na cobertura florestal, incluindo garimpo, desmatamento e queimadas.
A sobreposição entre áreas de vivência e problemas relacionados aos invasores mostrou que cerca de 62% da população Yanomami vive em áreas de risco.
O significado desses dados para a vida coletiva Yanomami “é o extermínio progressivo desse povo”, afirma Nathália Saldanha. A antropóloga explica que a contaminação dos rios afeta todos os aspectos da vida dos indígenas: alimentar, sanitário, demográfico, social e inclusive cosmológico. “A presença de um maquinário pesado das dragas, dos tratores e outras máquinas utilizadas pelo garimpo, afugenta os animais de caça. Além de poluir as terras e os rios. É um povo que vive da caça”, afirma.
Maurício Ye’kwana conta que “a área da comunidade foi degradada, o igarapé foi destruído, a caça foi destruída, e o Yanomami começa a pedir comida pro garimpeiro. Começa a dispersão e a mudança de convivência da comunidade: entra drogas, bebidas alcoólicas”.
O líder indígena explica que, devido à falta de alimentos nas comunidades mais afetadas pelo garimpo, elas se veem obrigadas a migrar: “Eles vão para outras regiões, o que gera conflito. Eles não têm mais onde caçar, então procuram outras fontes de sustento em diferentes áreas”. Ye’kwana destaca, ainda, que a distribuição de armas pelos garimpeiros torna esses conflitos mais violentos: “As outras comunidades sentem que estão sendo roubadas, mas essas pessoas estão apenas tentando suprir suas necessidades”.
“Não existiam conflitos dentro das comunidades. Então, o garimpeiro chega e diz que a Funai não é amiga, mas sim que o amigo é o garimpeiro. Ele promete roupas, munições, remédios. E isso vai alterando o pensamento dos indígenas”, completa.
No mais recente relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), foi constatado que indígenas representam 38% dos assassinatos em áreas rurais do Brasil em 2022. A CPT ressalta a concentração da violência contra a população Yanomami: “Em 2022, dos 113 registros obtidos, 103 foram em Terra Indígena Yanomami, e destes, 91 eram crianças, representando 80,5% dos casos”.
Além da violência, os efeitos na saúde são muitos. Junto com os casos de desnutrição severa, há a explosão de casos de malária devido às poças d’água paradas e produzidas pelo próprio garimpo, verminoses e a contaminação por mercúrio. “O mercúrio fica naquela água, e contamina, além dos rios, os alimentos e os peixes”, explica Saldanha. A presença de garimpeiros também tem aumentado os casos de violência sexual contra mulheres indígenas, estupros e surtos de Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs).
Pistas de pouso e invasão garimpeira
Em janeiro deste ano, o governo federal começou uma série de ações contra o garimpo dentro da Terra Indígena Yanomami. À época, o Ministério da Saúde afirmou que aproximadamente 570 crianças indígenas haviam perdido a vida devido à contaminação por mercúrio, desnutrição e fome. Em resposta, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) viajou a Roraima e determinou a retirada definitiva dos garimpeiros.
Apesar disso, Maurício Ye’kwana alerta para possibilidade de mais violência, pois, para ele, quem está resistindo são facções do crime organizado, fortemente armadas, e enfrentando as forças policiais: “facções criminosas tomaram conta do garimpo, e começaram a cobrar dos garimpeiros e até dos indígenas para poder passar. Acima da comunidade Uaicás, no rio Uraricoera. A polícia instalou uma base, uma corrente de aço, mas o garimpo passa ali, e corta a corrente. A quantidade de policiais não é suficiente, e as facções criminosas sabem que as forças policiais não têm força suficiente para eles”.
De acordo com estimativa da Hutukara Associação Yanomami (HAY), antes das ações do governo federal, existiam cerca de 20 mil garimpeiros atuando ilegalmente dentro do território. Para Diego Xavier, da Fiocruz, um dos elementos centrais para entender essa degradação do território Yanomami é a facilitação do acesso geográfico. “Aumentou muito. Os garimpeiros tomaram as pistas que já tinham e construíram novas. E a fiscalização não travou. Começaram a invadir o espaço nos quais os indígenas viviam, e foram expulsando-os”.
Maurício Ye’kwana detalha essa falta de controle das pistas de pouso na terra indígena. “Nas regiões em que as pistas de pouso foram tomadas, principalmente pelo garimpeiro, foi devido à ameaça contra os profissionais de saúde que estão presentes lá. A SESAI não oferece as mesmas coisas que os garimpeiros oferecem”, disse referindo-se à distribuição de bens, roupas e comida pelos garimpeiros.
“Aqueles que estão mais armados, mais poderosos e têm mais força são os que têm tomado as pistas e começam a usá-las. Na região de Homoxi, por exemplo, foi assim. Voos constantes, um após o outro”.
O levantamento do GT Geo-Yanomami identificou, manualmente, uma a uma, as pistas de pouso, tendo como referência as imagens de satélite do sistema Planet feitas em dezembro de 2022. Elas apresentam características como um formato em linha reta e solo exposto e, algumas delas, possuem cabeceiras e construções de apoio.
Jefferson Santos, doutor em Epidemiologia e Saúde Pública pela Fiocruz, e coordenador do Laboratório de Inteligência Geográfica em Ambiente e Saúde (Ligas) da Universidade Veiga de Almeida, é o responsável por esta parte da análise e mapeou 188 pistas de pouso no território.
Na sequência, o pesquisador cruzou a localização com a dos rios. Ele identificou que, dentre as 188 pistas de pouso, 138 (73%) possuem um rio próximo muito impactado.
7 a cada 10 pistas de pouso estão próximas a rio muito impactado
Na Amazônia, Santos explica que, fora das áreas metropolitanas, a conexão se dá principalmente por meio dos rios e de aviões de pequeno porte. “Devido à natureza ilícita dessa atividade [o garimpo], que envolve grande quantidade de pessoas e recursos como ouro e dinheiro, as pistas de pouso são utilizadas como meio eficiente para entrada e saída rápida de recursos, indivíduos e valores, facilitando as operações de garimpo e dificultando a fiscalização”.
Ele contrasta a facilidade que os aviões oferecem para o garimpo com a lentidão do transporte fluvial, e ressalta que os rios “não possuem a mesma abrangência capilar que as pistas de pouso podem oferecer. A abertura de uma pista é relativamente simples e, uma vez estabelecida, as aeronaves podem chegar rapidamente a praticamente qualquer área. Dessa forma, elas têm o potencial de acelerar a exploração e expandir a atividade garimpeira para áreas previamente inacessíveis”, completa o pesquisador.
Principais rios contaminados
Uma outra parte do levantamento, mais regional, apresenta a amplitude do impacto gerado pela invasão garimpeira no território indígena.
Considerando-se apenas os rios com grande volume de água - classificados como de quarta ou quinta ordem, no termo técnico - 63% das aldeias Yanomami localizadas têm como corpo hídrico mais próximo um rio impactado. A análise da qualidade d’água foi realizada a partir de interpretação visual de imagens de satélite do sistema Planet e da empresa Esri, com uma avaliação da mudança de cor em 2015 e 2022.
63% das aldeias estão próximas de um rio muito impactado
Segundo Jefferson Santos, são rios “com grande material particulado, gerando mudança de cor e de parâmetros de qualidade, tal como a oxigenação”. A partir da avaliação da mudança de cor, foi possível avaliar o impacto do garimpo na contaminação por material particulado nos principais corpos hídricos da terra Yanomami.
Essa análise visual constatou que a maioria das aldeias está próxima a rios muito impactados e, principalmente, de grande porte. “As aldeias, dificilmente vão estar muito distantes de um rio de maior ordem. Mercadorias chegam por esses rios maiores”, explica Santos.
Um desses rios de grande porte e muito impactado pelo garimpo é o Rio Mucajaí, que cruza a região central e leste do território Yanomami. As consequências da atividade garimpeira são tão relevantes, que o rio teve o seu curso alterado, o que foi objeto de uma macabra comemoração dos garimpeiros, conforme vídeo que circulou nas redes sociais.
Segundo Diego Xavier, uma ação tão drástica como a vista no vídeo, que muda definitivamente um curso d’água, pode acarretar “até na morte do rio”. O pesquisador explica: “o depósito de mercúrio se infiltra em aquíferos subterrâneos. Há também perda de biodiversidade e de um microecossistema em volta: alguns animais, que tinham o ambiente regulado, são afetados com o desvio desse rio, a perda de volume d'água e o assoreamento”. Gera-se um impacto para toda a bacia, já que o próprio Mucajaí: “é um importante tributário do rio Branco que por sua vez deságua no rio Negro que contribui com a vazão do rio Amazonas. Nesse sentido, a análise aqui apresentada muito provavelmente também apresenta uma estimativa conservadora da dimensão dos impactos ocorridos”.
A contaminação se espalha além da terra indígena
Todos os rios da Terra Indígena Yanomami têm suas águas fluindo para o rio Branco, que fornece água para Boa Vista, ou para o rio Negro, que atravessa diversos territórios indígenas e, por sua vez, abastece a cidade de Manaus. Os efeitos do mercúrio na saúde de populações urbanas, mesmo que relativamente distantes das áreas primeiramente impactadas pela atividade garimpeira, têm sido objeto de outros estudos da Fiocruz que apontam para uma contaminação das cidades conectadas de alguma forma aos rios explorados pelo garimpo, como Boa Vista (RR) e Santarém (PA).
Esta reportagem faz parte do projeto PlenaMata, e foi produzida como parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.