As comunidades quilombolas da Amazônia Legal passam por intensas lutas envolvendo a busca pela titulação de seus territórios. Em contrapartida, as famílias quilombolas desenvolvem um trabalho do uso da terra para agricultura e extrativismo que, dentro da Amazônia, causa um verdadeiro impacto na preservação da floresta. 

Partindo dessa relação, a reportagem investigou o quanto dos territórios quilombolas são preservados e por quais motivos a titulação se torna um instrumento de proteção da floresta na Amazônia.

A reportagem Quilombolas formam escudos de preservação da floresta na Amazônia Legal foi possível após o Laboratório de Geojornalismo da InfoAmazonia e envolveu uma equipe interdisciplinar de cientistas, jornalistas e profissionais da área de visualização de dados. 

Foram utilizados dados de desmatamento entre 1985 e 2021, registrados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que também deu apoio à reportagem com consultoria científica. Também foram utilizados dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), obtidos via Lei de Acesso à Informação (LAI). 

Após cruzar esses dados, a InfoAmazonia mostrou que 99% da área de floresta dentro dos territórios quilombolas estão preservados. Enquanto isso, ao redor dos quilombos, existem manchas severas de desmatamento que esbarram nos territórios, que formam escudos de proteção da floresta e, consequentemente, das comunidades que resistem ao avanço da destruição. 

Como investigamos

Primeiro, a reportagem fez uma busca pelos dados geoespaciais destes quilombos, ou seja, as localizações exatas deles na Amazônia Legal. Isso exigiu uma busca por arquivos nos institutos de terras, no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e no Acervo Fundiário do Incra. Os dados abertos dos órgãos não disponibilizavam facilmente as informações, com exceção do Instituto de Terra do Pará (Interpa). 

No caso do Acervo Fundiário do Incra, os dados em formato shapefile (arquivo que guarda coordenadas geográficas) estavam divididos por estado, porém, a primeira informação do órgão, via assessoria de imprensa, era de que os dados dos arquivos mostravam apenas terras quilombolas em processo de titulação, ou seja, não existiam as informações geográficas das terras tituladas. 

Via LAI, a reportagem solicitou ao órgão as coordenadas geográficas dos quilombos titulados, uma série histórica desde 1995 aos dias atuais de 2023. Em resposta, o Instituto direcionou o acesso para o Acervo Fundiário do Incra, como forma de obtenção dos arquivos em SHP. 

Além de não disponibilizar os dados solicitados e encaminhar para um site onde a informação está desatualizada,  o Incra afirmou que:o cruzamento de dados, que envolve o processamento de informações, não é função do agente público, na prestação de serviços e informações à sociedade”.

Os arquivos em formato shapefile atualizados, eram fundamentais para esta reportagem, pois somente com eles seria possível fazer os cruzamentos possíveis e identificar tanto os quilombos titulados, em processo de titulação,  assim como medir o percentual de preservação dentro e fora desses territórios. 

Após recorrer da resposta do órgão,  o Incra enviou um arquivo no formato CSV, com a série histórica dos territórios titulados e em processo de titulação. Dessa forma, a reportagem cruzou os dados do acervo fundiário e da planilha obtida via LAI, e descobriu quais terras do acervo já estavam tituladas e quais ainda estavam em processo de titulação.

Pedidos e respostas de LAI

PedidoResposta
Com fundamento na Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso a Informações Públicas) venho requerer o acesso, em até 20 dias corridos (artigo 11, parágrafo 1o da Lei 12.527/11), aos seguintes dados:

Ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), faço as seguintes solicitações:

– O arquivo Shapefile (SHP) dos territórios quilombolas titulados pelo Incra na Amazônia Legal.
– Os dados devem compreender o período de 1995 aos dias atuais de 2023.
– Atrelado ao arquivo Shapefile (SHP), deverá vir os seguintes atributos que descrevem as feições geográficas, em formato de tabela, com as seguintes informações: Ano da titulação, UF, Município, Nome da terra quilombola titulada, Coordenadas geográficas da terra quilombola.
– Os dados acima solicitados devem ser fornecidos em formato aberto, tais como CSV, SHP, JSON) quando disponíveis, conforme estabelece o artigo 11, parágrafo 5o da lei 12.527/2011.
– Favor encaminhar junto a resposta o dicionário de dados do sistema.

Na eventualidade de as informações solicitadas não serem fornecidas, requeiro que seja apontada a razão da negativa bem como, se for o caso, eventual grau de classificação de sigilo (ultrassecreto, secreto ou reservado), tudo nos termos do artigo 24, parágrafo 1o da Lei 12.527/2011.

Se algum dos dados solicitados conter informações pessoais sigilosas, solicito que sejam tarjadas ou removidas. E caso este órgão não seja o verdadeiro responsável pelas informações demandas, favor encaminhar o requerimento à autoridade responsável.

Na eventualidade de as informações solicitadas não serem fornecidas, requeiro que seja apontada a razão da negativa bem como, se for o caso, eventual grau de classificação de sigilo (ultrassecreto, secreto ou reservado), tudo nos termos do artigo 24, parágrafo 1o da Lei 12.527/2011.

Desde logo agradeço pela atenção e peço deferimento.
Prezada Senhora, O Serviço de Informação ao Cidadão – SIC/Incra – agradece seu contato.

Em atenção à solicitação registrada na Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação (Fala.Br), informamos que foi submetida à Diretoria de Governança Fundiária, que informou que:

Supõe-se que o fornecimento do(s) arquivo (s) .SHP correspondem ao fornecimento das coordenadas geográficas dos Territórios Quilombolas (TQs). Além disso, “um” arquivo Shape (SHP) compreende na verdade, no mínimo, três arquivos. Sendo os dois mais importantes: o próprio arquivo .SHP, que inclui a informação geométrica dos TQs e; o arquivo .DBF, que pode ser convertido para .CSV ou planilha Excel.

Porém, o cruzamento de dados, que envolve o processamento de informações, não é função do agente público, na prestação de serviços e informações à sociedade.

Segue alguns exemplos de informações, que foram solicitadas, que podem ser obtidas pelo cruzamento/processamento com outras fontes de dados públicos (como a base de dados dos municípios do IBGE (Malha Territorial), por exemplo): (a) Municípios de localização dos TQs e/ou; qualquer outra divisão Política/Administrativa (como a Amazônia Legal). Dessa forma, o requerente deverá acessar o Acervo fundiário do Incra, no seguinte endereço:

https://certificacao.incra.gov.br/csv_shp/export_s hp.py, onde terá acesso ao arquivo .SHP, com todos os Territórios Quilombolas disponíveis. Por fim, comunicamos que a insatisfação com a resposta pode ser objeto de recurso, no prazo de 10 dias, de acordo com o artigo 15 e seguintes da Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI); 21 e seguintes do Decreto 7.724/2012 que a regulamenta. Atenciosamente, Serviço de Informação ao Cidadão – SIC/INCRA. O SIC/Incra está buscando melhorar os atendimentos aos pedidos de acesso à informação. Para que possamos alcançar esse objetivo é muito importante conhecer a sua opinião.

Assim, convidamos você a responder à pesquisa de satisfação disponível na Plataforma Fala.BR.
Recorro da resposta do órgão, pois a informação enviada no dia 27/03/2023, não foi efetivamente fornecida. Como requerente, solicitei em arquivo shapefile todos os territórios quilombolas titulados dentro da Amazônia Legal e não apenas os que estão disponíveis no Acervo Fundiário, visto que a base do Acervo Fundiário está defasada.
No Acervo Fundiário estão disponíveis os arquivos em SHP dos territórios quilombolas em processo de titulação, o pedido de LAI solicita os território quilombolas titulados.

Em sua resposta, o estimado órgão diz
Porém, o cruzamento de dados, que envolve o processamento de informações, não é função do agente público, na prestação de serviços e informações à sociedade.

Ressalto que, diferente do que o órgão alega, não há necessidade de um cruzamento adicional de informações, pois o órgão já faz esse cruzamento de dados em seus arquivos em shapefile. De acordo com o Decreto No 4.887, de 20 de novembro de 2003, o Incra é responsável pelos “procedimentos administrativos para a identificação, o reconhecimento, a delimitação, a demarcação e a titulação da propriedade definitiva das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos”, logo possuem as informações geográficas de cada um dos quilombos que já titulou.

Além disso, a Lei No 12.527, de 18 de novembro de 2011, que regula o acesso a informações classifica como “informação” dados, processados ou não, que podem ser utilizados para produção e transmissão de conhecimento, contidos em qualquer meio, suporte ou formato.

Considerando os argumentos expostos acima, recorro da resposta do órgão, com base no artigo 15 e seguintes da Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI); 21 e seguintes do Decreto 7.724/2012 que a regulamenta.
Desde logo agradeço pela atenção e peço deferimento.
Prezado(a) Senhor(a), Em atenção ao recurso registrado na Plataforma Integrada de Ouvidoria e Acesso à Informação (Fala.BR), consultamos a Diretoria de Governança Fundiária, que disponibilizou planilha com as informações solicitadas, que segue em anexo. Informou ainda que:

i) disponibilizamos neste processo a planilha com todos os Territórios Quilombolas (TQ ́s) titulados pelo INCRA desde o início dessa ação institucional até o presente momento, para que o solicitante tenha acesso aos dados de territórios titulados pelo INCRA; e através da planilha poder localizar na base do Acervo Fundiário os territórios titulados; ii) com relação aos dados cartográficos, a base cartográfica disponível e gerenciada no INCRA-Sede ( Acervo Fundiário) realmente ainda não está atualizada e contendo todos os Territórios Quilombolas titulados pelo INCRA, sendo que, neste momento, para que o solicitante tenha acesso à informação completa será necessário que o mesmo entre em contato com as Superintendências Regionais do INCRA das UF ́s da Amazônia Legal e solicitar os dados cartográficos que faltam, ou seja, os territórios quilombolas que ainda não estão na base; Ademais, importante informar que alguns territórios titulados ainda na década de 1990 não possuem arquivo shapefile, tendo em vista que na época em que foram produzidos os mapas ainda não se utilizava na autarquia agrária softwares que utilizam esse formato shapefile. iii) essa atualização da base cartográfica dos Territórios Quilombolas que o INCRA executa o processo de regularização fundiária, sejam os titulados ou ainda não titulados, está prevista para que ocorra neste ano (2023). Mas por hora, tendo em vista os dados/mapas não estarem consolidados, entende-se que a instituição não tem a obrigatoriedade de fornecer dados que não tenha consolidado, conforme inciso III do Art.13 do Decreto no 7.724/2012. Art. 13. Não serão atendidos pedidos de acesso à informação: (…) III – que exijam trabalhos adicionais de análise, interpretação ou consolidação de dados e informações, ou serviço de produção ou tratamento de dados que não seja de competência do órgão ou entidade. iv) cabe registrar também que a ação de titulação de Territórios Quilombolas não é feita exclusivamente pelo INCRA, assim para ter acesso aos dados de todos os Territórios Quilombolas da Amazônia Legal, o solicitante deverá procurar também os demais órgãos públicos que realizam a ação de titulação, a exemplo dos órgãos estaduais de terras, uma vez que em seu recurso diz ” todos os territórios quilombolas titulados dentro da Amazônia Legal”; Conforme sugerido pela Diretoria de Governança Fundiária, este SIC encaminhou despacho às Superintendências Regionais do INCRA que fazem parte da Amazônia Legal solicitando complementação da resposta. Desse modo, informamos da necessidade de prazo adicional de 10 dias úteis para complementar a resposta, e que assim que as unidades disponibilizarem as respostas encaminharemos para o e-mail [email protected]. Certos de vossa compreensão, informamos que enviaremos a complementação da solicitação para o seu e-mail cadastrado no Fala.BR. Por fim, comunicamos que a insatisfação com a resposta pode ser objeto de recurso, no prazo de 10 dias, de acordo com o artigo 15 e seguintes da Lei 12.527/2011 (Lei de Acesso à Informação – LAI); 21 e seguintes do Decreto 7.724/2012 que a regulamenta.

Atenciosamente, Serviço de Informação ao Cidadão – SIC/Incra Atenciosamente, Serviço de Informação ao Cidadão – SIC/Incra.

Com esse primeiro cruzamento feito, a reportagem contabilizou 148 territórios quilombolas titulados na Amazônia Legal e 144 deles tinham shapefile. Com os arquivos certos, foi possível cruzar as informações com os dados de desmatamento monitorados pelo Inpe, entre 1985 e 2021. Essa era a série mais recente até aquele momento. A reportagem calculou o quanto de desmatamento havia dentro de cada quilombo e depois a área de floresta preservada de cada um deles. 

Para essa análise de dados espaciais, a reportagem utilizou a ferramenta de geoprocessamento e de código livre, o QGIS.

Esse resultado mostrou que 99% desses territórios estão preservados. Isso significa que os quilombolas têm importante papel na preservação da floresta na Amazônia e que os territórios, sendo titulados, podem colaborar com a manutenção da floresta.

Mapa: Jullie Pereira / InfoAmazonia
Mapa feito pela reportagem mostra a presença dos quilombos e as taxas de desmatamento.

Base de dados utilizadas

FonteBase originalBase analisada
Acervo fundiáriohttps://certificacao.incra.gov.br/csv_shp/export_shp.pyhttps://drive.google.com/drive/folders/1TAhJ38GkKN8ThGPNUjEikNNcriYX6Htq?usp=sharing
Inpehttp://terrabrasilis.dpi.inpe.br/downloads/https://drive.google.com/drive/folders/1XZ0F34H5q_PpptkKsnh7R4aHOwqEs1v0?usp=share_link
Lei de Acesso à Informação – Incrahttps://drive.google.com/drive/folders/19_quB5_PXtEq1dQFbrckA7JlR3OtDQ8c?usp=share_linkhttps://docs.google.com/spreadsheets/d/1jqQwS2VEGJ1wVSgFESSqcNhTujZEtNw4/edit?usp=share_link&ouid=104964342642136909996&rtpof=true&sd=true

Fontes e cientistas consultados

Diante dos achados da análise, a reportagem passou a investigar quais seriam as causas dos desmatamentos dentro desses territórios. Com a consultoria do Luís Maurano, tecnologista sênior, responsável pelos monitoramentos de desmatamento do Inpe, tivemos a primeira avaliação de que os registros dentro do território indicavam o uso da terra para roçado e subsistência, típico das comunidades quilombolas em todo o país. 

Com isso, a reportagem passou a investigar in loco, com quilombolas que estavam nos territórios da Amazônia Legal. A reportagem entrevistou quilombolas do Amapá, Pará e Maranhão. A cada entrevista, era confirmada a avaliação de Luís Maurano.

Investigar  de que forma esses quilombos se formaram na Amazônia Legal, também foi uma prioridade neste material. Para isso, conversamos com a pesquisadora e historiadora Patrícia Melo, referência em estudos sobre a população negra amazônida. Em  entrevista,  explicoude que forma eles chegaram à Amazônia e por que sua vivência foi desmerecida por narrativas hegemônicas brancas. 

Os quilombolas entrevistados também sugerem medidas a serem tomadas pelo governo federal, para que os títulos sejam concedidos de maneira menos burocrática e que a população negra da Amazônia tenha mais espaços de discussão. 

Identidade

Apenas dois entrevistados não eram da Amazônia, o consultor Luís Maurano e a consultora Lubia Vinhas. A reportagem deu prioridade para as fontes que vivem nos territórios, considerando igualdade regional, racial e de gênero, com a presença de três fontes femininas, três fontes masculinas e com maioria negra.

NomeInstituiçãoLattesRedes
Luís MauranoInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)http://lattes.cnpq.br/8242319727045776
Lubia VinhasInstituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe)http://lattes.cnpq.br/6187040703676041https://twitter.com/VinhasLubia
Patrícia MeloUniversidade Federal do Amazonas (Ufam)http://lattes.cnpq.br/6775629541151867https://twitter.com/melopatriciam
José Carlos Guerreiro GalizaCoordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq)https://www.facebook.com/zecarlosgaliza/
Célia PintoCoordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq)http://lattes.cnpq.br/5419538978141221
Daniel Ramoshttp://lattes.cnpq.br/0293447211659104https://www.instagram.com/danielramosbarbosaa/

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Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia, e é parte do Laboratório InfoAmazonia de Geojornalismo, realizado com o apoio do Instituto Serrapilheira, para promover e difundir o conhecimento científico e análise de dados geográficos na produção jornalística.

Sobre o autor

Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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1 comment

  1. Sempre bom saber que o jornalismo investigativo em bases de dados se preocupa com metodologias transparentes. Parabéns pelo trabalho!

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