Com mais de 40 anos como advogado indigenista, Paulo Machado Guimarães, que assessorou o movimento indígena durante a Constituinte de 88, comenta sobre as relações entre a ditadura militar e a tese do marco temporal usada pelos inimigos dos direitos indígenas.
No Dia dos Povos Indígenas deste ano, durante a abertura do Fórum Nacional do Poder Judiciário, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, anunciou para 7 de junho a retomada do julgamento do recurso extraordinário com repercussão geral do chamado marco temporal, que discute se data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) deve ser adotada como referência, ou marco temporal, para a definição da ocupação tradicional da terra por indígenas.
Nos últimos anos, o que se convencionou chamar de tese do marco temporal tem sido usado como argumento em favor de interesses ruralistas e atores anti-indígenas em geral contra a demarcação de terras indígenas no Brasil.
Há 42 anos, o advogado Paulo Machado Guimarães acompanha e assessora juridicamente a luta do movimento indígena pelo reconhecimento dos seus direitos, especialmente, os territoriais. Com colaborações em diferentes entidades indígenas e indigenistas, Guimarães acompanhou a Assembleia Nacional Constituinte (1987/1988), assessorando o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e lideranças do movimento indígena.
Hoje, associado ao Centro de Trabalho Indigenista (CTI), a experiência de longa data de Guimarães o permite alertar: ˜Não existe, na história do conhecimento jurídico nacional qualquer formulação semelhante a esta tese que tem sido conhecida como marco temporal˜.
Para evitar a repetição de argumentos mirabolantes como o marco temporal em embates jurídicos no futuro, o advogado entende que Comissão Nacional da Verdade Indígena (CNVI) seria ˜o caminho mais seguro para que formulações equivocadas e danosas como esta tese do marco temporal˜, não prosperem.
Leia a entrevista na íntegra a seguir:
Como o senhor entende a relação entre a tese do marco temporal e a ditadura militar?
Paulo Machado Guimarães – Na ditadura militar, apesar do disposto no Artigo 186 da Constituição de 1967 e no Artigo 198 da Constituição de 1969, a tensão decorrente do direito dos indígenas à posse permanente da terra que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos ou riquezas naturais nelas existentes foi uma constante, em razão da concepção predominante entre o setor militar hegemônico, contrário aos direitos e interesses indígenas.
Apesar da determinação legal prevista na Lei nº 5731, de 05/12/1967 (que criou a FUNAI) e posteriormente na Lei nº 6001, de 19/12/1973 (do Estatuto do Índio), para que fosse garantida a “posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nela existentes”, os textos constitucionais e legais em vigor seguiam a perspectiva em vigor no Código Civil de 1916, segundo o qual: “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País”. A rigor, percebe-se que no início do século passado, com o Decreto nº 9.214, de 15 de dezembro de 1911, a perspectiva incorporativista já estava normatizada, apesar de impor o dever de proteção à “posse dos territórios ocupados por índios”. Esta perspectiva institucional, que foi o fundamento da limitação da capacidade civil dos indígenas, reflete a concepção da relação do Estado brasileiro em relação aos povos indígenas nos períodos colonial e republicano.
Não apenas nos atos normativos, mas, fundamentalmente, mostra na prática a tensão decorrente do conflito de interesses entre o direito dos indígenas às terras que ocupam e a vontade dos setores não-indígenas e hegemônicos na economia e na organização dos governos colonial e republicano, em se apropriar das riquezas naturais existentes nas terras ocupadas pelos povos indígenas.
Os governos militares, na ditadura militar, não obstante as normas constitucionais e legais em vigor, conduziram a administração da FUNAI, como órgão tutor, de forma abusiva, tratando os indígenas não como relativamente incapazes, mas como absolutamente incapazes. Diversos atos administrativos destinados a delimitar, demarcar e proteger as terras ocupadas pelos indígenas foram praticados mediante fraude, reduzindo ilegalmente os limites das terras indígenas.
Embora a tese do marco temporal, nos termos formulados pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Carlos Brito, em seu voto como Relator da Petição nº 3388, que tratou da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, não tenha sido formulada em qualquer outro momento histórico, a questão que aproxima este tema de toda a história política, administrativa e jurídica relacionada às terras indígenas, vem a ser a disputa entre os que querem limitar, ou reduzir os espaços territoriais dos povos indígenas e estes que necessitam dos adequados espaços territoriais, para que se estabeleçam e se desenvolvam como expressões sócio-política-étnica e cultural específicos e diferenciados entre si e das sociedades que os envolvem.
No caso Xokleng, a construção da barragem no rio Itajaí, iniciada durante a ditadura militar, ignorou a existência dos indígenas e alagou grande parte de seu território. Essa foi uma prática comum na ditadura?
Sim. Esta foi, conforme exposto na resposta à primeira indagação, uma prática comum na ditadura. Mas é necessário considerar que, antes mesmo do golpe militar, em 1964, em diversos governos estaduais, foram emitidos títulos imobiliários incidentes em áreas ocupadas por comunidades indígenas, que eram, antes ou depois, expulsas de suas terras, ou exterminadas, em efetiva prática de genocídio. Diversos povos indígenas, em todas as regiões do país sofreram com a voracidade, a ganância e a violência dos invasores, apoiados por governos estaduais e por gestões dos governos centrais.
A história do povo Pataxó Hã Hã Hãe, na Bahia, cuja nulidade dos títulos imobiliários incidentes nos limites da então denominada Reserva Indígena Caramuru/Catarina Paraguasu, foi declarado pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Ação Cível Originária nº 312, é um dos mais graves e significativos exemplos de como a ação combinada e articulada entre os interesses econômicos na região sul da Bahia, o poder político no estado da Bahia e a ação do então Serviço de Proteção aos Índios (SPI) agiram para expulsar os povos de identidade étnica conhecida como Pataxó Hã Hã Hãe, com efetivo propósito de levar a extinção dos grupos étnicos existentes naquela região. Mas não contavam com a resistência e a resiliência dos Pataxó Hã Hã Hãe, como a rigor, não contam com a atual resistência, coragem e resiliência dos Kaiowá Guarani, no Mato Grosso do Sul.
Talvez, no período da ditadura militar, a diferença tenha sido a concentração no governo federal, das práticas administrativas contrárias aos direitos e interesses dos povos indígenas, resultando, por exemplo, em nefasta prática de emissão, pela Funai, de certidões negativas de presença indígena em determinadas áreas de terra. Com base nestes atos administrativos, que sempre foram nulos, vários títulos imobiliários foram ilegalmente emitidos em terras indígenas.
Como o senhor observa este embate hoje?
Após mais de 34 anos de vigência da Constituição Federal de 1988, as forças políticas e econômicas contrárias aos direitos e interesses indígenas continuam a não reconhecer o direito dos Povos Indígenas às terras que ocupam, conforme seus usos, costumes, crenças e tradições. Esses aspectos são essenciais para que os Povos Indígenas tenham garantidos os espaços territoriais necessários à sua existência enquanto grupos sociais étnicos e culturalmente específicos e diferenciados da sociedade brasileira majoritária. Os direitos indígenas sobre as terras que ocupam ou tradicionalmente ocupam devem ser analisados de acordo com as normas vigentes na época em que os fatos ocorreram. Antes da Constituição de 1988, havia outras constituições em vigor, cada uma com seu marco temporal específico. Portanto, se um povo ou comunidade indígena não estava na posse da terra em 05/10/1988, é necessário verificar o que ocorreu antes dessa data, considerando as normas vigentes na época. A ideia de que os indígenas só terão direito às terras que tradicionalmente ocupam se as estivessem ocupando em 05/10/1988 é contrária ao Artigo 231: Artigo 6 – não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé da Constituição, que reconhece aos indígenas seus direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
“Antes da Constituição de 1988, havia outras constituições em vigor, cada uma com seu marco temporal específico. Portanto, se um povo ou comunidade indígena não estava na posse da terra em 05/10/1988, é necessário verificar o que ocorreu antes dessa data”
As terras indígenas podem ser compreendidas como um processo de compensação à política indigenista do período da ditadura?
Os direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam são reconhecidos na Constituição Federal de 1988 como resultado do reconhecimento da diversidade étnica e cultural existente no Brasil. A opção dos Constituintes originários de 1988 representou uma mudança política e ideológica que rompeu com as concepções incorporativistas e integracionistas que imperaram no período da ditadura militar e em todo o período anterior da República. No entanto, os interesses políticos e econômicos contrários à atual concepção constitucional continuam a desafiar a proteção dos direitos indígenas. Essa tensão decorrente do conflito de interesses está em curso e só pode ser superada com a derrota das forças hegemônicas no país. Não se pode entender as terras indígenas como uma compensação pela política indigenista do período da ditadura, mas sim como um reconhecimento dos direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, que devem ser protegidos independentemente do contexto político em que foram conquistados.
O historiador Gabriel Fonteles fala sobre as certidões negativas que, criadas em 1968, passaram a ser expedidas pela Funai durante a ditadura, negando a presença de povos indígenas em áreas requeridas por grupos empresariais e fazendeiros. Como o senhor avalia esta questão dentro do debate do marco temporal?
Conforme me foi possível mencionar na questão anterior, esta ilícita prática administrativa é tipificada como crime de falsidade ideológica, além de prevaricação, podendo também evidenciar o crime de advocacia administrativa. Sem o devido processo legal, sem o contraditório e sem amplo direito de defesa, a União, como ente da Federação da República Federativa do Brasil, por intermédio de um de seus agentes políticos e, ou, públicos, não pode afirmar, declarar, ou certificar, que uma terra não é tradicionalmente ocupada por um povo e, ou, uma comunidade indígena. Somente é possível concluir que uma terra não é tradicionalmente ocupada por indígenas, num processo administrativo destinado à declaração e demarcação de uma terra indígena, no qual seja comprovado, documentalmente, com testemunhas e mediante perícia antropológica, expressa num laudo antropológico e etno-histórico, que determinada terra não é tradicionalmente ocupada por indígenas, porque a comunidade ou o povo indígena não mais existe, ou caso a comunidade ou o povo indígena produzam prova própria da vontade de seus integrantes declarando desinteresse, sem qualquer ameaça ou coação, em exercer seu direito originário sobre a terra que até então tradicionalmente ocupavam. Práticas ilícitas como já se verificou, com a emissão de certidões negativas de ocupação de terra indígena, como a tese do marco temporal, são expressões de interesses destinados a restringir a ocupação dos povos indígenas e suas comunidades, às terras que tradicionalmente ocupam.
Como o capítulo indígena da Comissão Nacional da Verdade de 2014 pode colaborar para derrotar a tese do marco temporal?
O resgate e a divulgação da história envolvendo os fatos que atingiram, como afetam os povos indígenas, como a rigor todas as comunidades tradicionais, como os trabalhadores e as trabalhadoras do campo e da cidade, com a revelação das práticas ilícitas e nefastas que a história brasileira relacionada aos povos indígenas revela, bem como as práticas de resistência e defesa dos direitos dos povos indígenas é o caminho mais seguro para que formulações equivocadas e danosas como esta tese do marco temporal, ancorando os direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, à prova de sua presença e posse permanente, em 5 de outubro de 1988, não prosperem.
Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.