Em meio ao julgamento pela acusação do assassinato de três homens, em trama urdida no contexto de oposição local aos postos de pedágio na Transamazônica e ao combate à retirada ilegal de madeira, os Tenharim Marmelos e os Jiahui lidam com problemas deixados pela Ditadura Militar

As terras indígenas, conforme a Constituição Federal promulgada em 1988, são bens da União, mas seu usufruto é exclusivo dos povos que as habitam. O direito está consolidado, inclusive, pela jurisprudência na Suprema Corte. 

No entanto, para os povos Tenharim Marmelos e Jiahui, no sul do Amazonas, desde a abertura da BR-230, a Rodovia Transamazônica, o direito ao território vem sendo, década após década, violado pela existência da estrada de terra.

São cerca de 46 quilômetros da rodovia abertos a poucos metros de distância das atuais aldeias da Terra Indígena Tenharim/Marmelos, e outros quase cinco quilômetros cruzando a Terra Indígena Diahui. 

O trecho fica entre os municípios de Humaitá e Apuí, passando por Manicoré. Desde a abertura da rodovia, em 1972, como parte do Plano de Integração Nacional (PIN), os Tenharim Marmelos e Jiahui travam uma emblemática batalha pela sua sobrevivência  na Amazônia Ocidental. 

Alguns dos moradores das aldeias precisam de escolta na Terra Indígena. Há lideranças atendidas pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH).

Estamos à mercê do problema porque a estrada passa pelas aldeias. Os indígenas estão a todo momento na rodovia e pessoas passam armados, xingam, ameaçam. O ideal é que esse trecho da rodovia seja fechado

Liderança Tenharim

“Estamos à mercê do problema porque a estrada passa pelas aldeias. Os indígenas estão a todo momento na rodovia e pessoas passam armados, xingam, ameaçam. O ideal é que esse trecho da rodovia seja fechado”, conta uma liderança Tenharim que topou falar com a reportagem do Infoamazonia sob condição de anonimato.  


Este é mais um exemplo na Amazônia das consequências da ausência de reparação aos povos que durante a Ditadura Militar (1964-1985) foram levados à antessala do extermínio pela ideia do “Brasil Grande”. 
Conforme levantamento do Mapa de Conflitos da Fiocruz, antes da Transamazônica existiam cerca de 30 mil Tenharim; hoje a população é de pouco mais de 800 (SESAI, 2022). Em 1994, o povo chegou a sua mais baixa estatística populacional: 298, conforme o antropólogo Edmundo Peggion. 

Arquivo Nacional/Ministério da justiça
Ao centro de óculos, o ditador Garrastazu Médici na cerimônia que deu início a construção da Transamazônica.


Para autoridades judiciais, o governo federal nunca realizou estudo idôneo dos impactos ambientais e sociais da Transamazônica. A começar pela atração promovida junto aos indígenas em situação de pouco contato com a sociedade envolvente, que ocorreu no intuito de apenas tirá-los e suas aldeias da frente dos tratores o mais rápido possível – política indigenista deturpada também vista na abertura de outras rodovias na Amazônia. 

Se, em tese, a existência da Transamazônica é uma ilegalidade, a estrada, na prática, nunca deixou de operar em toda sua precariedade. A concessão de um pedaço da rodovia, inclusive, foi oficializada em abril de 2022, entre o Pará e o Mato Grosso, com a previsão da construção de três praças de pedágio a serem exploradas pela vencedora do leilão, a empresa Via Brasil. 

O governo brasileiro, sobretudo a partir de 2019, promoveu um festival de concessões do tipo, em outros trechos da rodovia, garantindo pedágios como compensação às concessionárias, sempre questionado por ambientalistas. 

Em outras palavras, a rodovia foi aberta a partir de um leque de violações graves de direitos humanos e ambientais, com consequências mortíferas, e hoje em dia os esforços governamentais têm se concentrado em terminar o serviço da Ditadura sem as devidas reparações sociais e ambientais aos povos e à floresta.   

Apesar das Terras Tenharim/Marmelos e Diahui terem sido homologadas, respectivamente em 1996 com 498 mil hectares e em 2013 com 48 mil hectares, a violação que examinamos permanece tão urgente, senão mais, quanto o era na época em que a estrada simbolizava um presente desbravador rumo a um futuro prodigioso para o país. O que restou, na verdade, foram os escombros de um delírio autoritário. 

Por outro lado, essa mesma realidade indica que estes povos ainda lutam contra tal política de extermínio parcialmente exitosa. O fazem em suas terras e com duas ações judiciais contra a abertura e a manutenção da Transamazônica. Apesar da atual situação precária dos Tenharim e Jiahui, foi depois das terras homologadas que as populações superaram a redução que flertou com o desaparecimento desses povos. 

Para os Tenharim Marmelos e Jiahui, os impactos foram sentidos imediatamente após a abertura da estrada, com traçado projetado para passar por cima da principal aldeia Tenharim. Depois sofreram todas as consequências com a colonização de uma vizinhança populacional instalada de forma envolvente aos indígenas – nas franjas da ocupação urbana feita sem planejamento e promovida pela marcha colonial dos militares no sul do Amazonas. 

O Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas aponta que a “pacificação” promovida pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), e o recrutamento para o trabalho nas obras da Transamazônica, causou forte desestruturação dos grupos indígenas, que, acuados por conta das atividades de tratores e aviões no local, deixou de promover maiores deslocamentos para não abandonar os seus territórios sagrados.

No Centro de Referência Virtual Indígena do portal Armazém Memória, recortes de jornal mostram que em outubro de 1970, durante uma conferência, o antropólogo Roque de Barro Laraya, do então Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Brasília (UnB), lamenta que a experiência de outros povos indígenas não estivesse servindo de exemplo na abertura da Transamazônica.

Laraya diz que o governo militar precisava fortalecer a Funai para que, no mínimo, ela chegasse às aldeias antes das máquinas. O antropólogo também critica a atitude do governo militar ao negar o genocídio dos povos indígenas denunciado no exterior. 

“(…) fazendeiros chegaram a comprar aviões para despejar dinamites sobre os indígenas”. Para ele, não apenas o governo promovia as violações, como também entendia a Amazônia como “terra de ninguém”.


Fazendeiros chegaram a comprar aviões para despejar dinamites sobre os indígenas

Roque de Barro Laraya, antropólogo


Em outras notícias, se revela a celeridade imposta pelos militares para a conclusão da abertura da Transamazônica até 1972. A doutrina, fundida à de Segurança Nacional, pressionava a Funai a realizar a atração de povos isolados ou de pouco contato localizados no trajeto da rodovia. 

De acordo com o verificado na hemeroteca virtual do Armazém Memória, havia um conjunto de denúncias e preocupações públicas com violações e reduções populacionais drásticas, beirando o extermínio dos povos envolvidos, que hoje estão comprovadas com desdobramentos contemporâneos similares aos desse passado nada distante e influente nos dias atuais, como veremos.     


Arquitetura de uma narrativa

Um episódio trágico se tornou o resultado mais sintético das décadas de violências e impunidade vivenciadas pelos povos Tenharim e Jiahui com a passagem da Transamazônica em suas terras. Um trauma irrefutável para duas sociedades alçadas a vilãs por narrativas deturpadas criadas por seus inimigos: a acusação feita contra seis lideranças Tenharim de um triplo assassinato de não indígenas, ocorrido em 16 de dezembro de 2013, com julgamento em curso e sob segredo de Justiça. 

Os indígenas respondem em liberdade e negam a autoria das mortes. Conforme a defesa  apontou no decorrer dos anos, não há provas que ligam os acusados ao crime. Os corpos dos três homens foram localizados dentro da Terra Indígena, no dia 3 de fevereiro de 2014, após 49 dias de buscas por uma operação liderada pela Polícia Federal. Em março de 2015, a assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) apontou falhas no inquérito da PF

Enquanto os corpos ainda estavam desaparecidos, as populações de Apuí, Manicoré e Humaitá, já acusavam os indígenas e promoveram dias de caçada aos Tenharim e Jiahui. Os três pontos de compensação no trecho da Transamazônica que atravessa as terras Tenharim Marmelos e Jiahui, mas que os não indígenas tratam como pedágio, foram incendiados pela turba enfurecida. 

No município de Humaitá, a sede da Funai foi atacada e os vândalos atearam fogo em veículos do órgão indigenista. Um grupo de indígenas Tenharim, que estava na balsa, atravessando o rio Madeira rumo a Humaitá para sacar benefícios natalinos, ficaram ilhados por horas e foram retirados da embarcação por um helicóptero do Exército. 

A compensação, cobrada desde 2006, após decisão da Assembleia Tenharim, segue suspensa até os dias de hoje. Na ocasião, a paralisação da cobrança foi a única saída para os Tenharim e Jiahui impedirem mais violência dirigida a eles. 

Reprodução/Youtube
No município de Humaitá, a sede da Funai foi atacada e os vândalos atearam fogo em veículos do órgão indigenista em 2014


Toda a negociação para pacificar a região, liderada por uma comissão da Secretaria-Geral da Presidência da República, sob coordenação do comandante militar da Amazônia, general Eduardo Villas Bôas, designado pela então presidente Dilma Rousseff, teve como ponto central dissuadir os povos Tenharim e Jiahui de seguir com a compensação. 

Inicialmente os indígenas se negavam a parar com a compensação porque era uma importante fonte de renda para as aldeias e seus projetos. O general Villas Bôas insistiu com o pedido e os Tenharim e Jiahui aceitaram, inicialmente como forma de acalmar os ânimos exaltados e depois sob a promessa da comitiva governamental adotar medidas compensatórias para os povos através de políticas públicas – o que nunca ocorreu.

Sob condição de anonimato, temendo represálias locais, três indígenas Tenharim e Jiahui, que evitam dar declarações à imprensa, conversaram com a Infoamazonia. Para os indígenas ouvidos, tratar do que eles sofreram a partir da abertura da Transamazônica significa voltar aos 49 dias do desaparecimento dos não indígenas e a posterior acusação de assassinato. Se referem ao episódio como “o trauma”.

“Tinha muita insatisfação na região com nossa compensação. Chamam de pedágio, mas a gente entende que é uma compensação. Os militares passaram a Transamazônica na nossa aldeia, nas nossas terras, e nunca teve reparação. Então nos acusaram dessas mortes para alimentar o ódio na população. Destruíram os postos de compensação, nos atacaram na cidade”, diz um Tenharim.

Reprodução/Youtube
Transporte público de atendimento aos indígenas queimado em Humaitá (AM)


“Não tem usufruto exclusivo”

No entorno das terras indígenas Tenharim e Jiahui, o poder de convencimento do  desenvolvimentismo da Ditadura deu lugar a municípios e distritos mal planejados com um incremento socioeconômico mobilizado por atividades ilegais de garimpo, retirada de madeira e grilagem de terras dependentes do tráfego pela Transamazônica. 

Na medida em que o trecho de rodovia avançou feito pavio de vela pelas terras indígenas, uma rede de trânsito da população local também ganhou volume estimulada pelo crescimento dos municípios e de vilas com vocação de exploração de recursos da floresta, incluindo aí as terras indígenas. Essa rede de interesses se opunha à compensação indígena cobrada nos três pontos da rodovia porque tornava as operações mais caras.  

“Nunca tivemos usufruto exclusivo da nossa terra. Usufrui dela toda a população local, madeireiro, grileiro, garimpeiro, o 180 (leia abaixo), a economia de caminhão que vem e vai, o comércio atrás dessa gente toda. Por isso fomos atrás de uma compensação porque nunca tivemos. Não tem na lei nada que nos impede disso e só paramos depois do trauma (2013) para evitar derramamento de sangue”, conta um Tenharim.  

Episódios envolvendo o descontentamento da população local com a compensação, entre 2006 e dezembro de 2013, culminaram em manifestações dos Tenharim e Jiahui. Quase sempre na altura do Km 145, onde ficava um dos postos erguidos para a cobrança das taxas aos veículos, os indígenas costumam bloquear a Transamazônica.  

“A Transamazônica trouxe problemas, impacto na vida social, nas doenças, nas mortes, quase extinção de dois povos, Tenharim e Jiahui, estupros, mortes por armas de fogo. Invasão. A Transamazônica foi a pior coisa que existiu. Trouxe violência. Até hoje o governo brasileiro não tem uma política pública para reparar os indígenas ou prevenir e proteger a nossa vida contra a violência que ficou”, conta o indígena Tenharim.


Fábio Bispo/InfoAmazonia
Fazendas instaladas às margens de ramais ilegais abertos em direção a área da reserva de onde é retirada madeira.

O indígena explica que a situação após a Transamazônica “é de invasão atrás da madeira, loteamento. Em outra parte da Terra Indígena, garimpo, assédio pelos recursos naturais. São consequências que ficaram. Ninguém planejou política pública para proteger os Tenharim e Jiahui. Estamos à mercê. Muitas coisas ruins. O Governo brasileiro finge que não tem responsabilidade, que tá tudo tranquilo, que já passou”.

De acordo com os indígenas, o general Villas Bôas esteve na Terra Indígena, em janeiro de 2014, “acompanhado de um monte de ministérios”, para estabelecer um projeto de alternativa econômica sustentável para as terras indígenas Tenharim e Jiahui. A designação de um general por Dilma para “pacificar” uma região conflagrada pelas violações da Ditadura Militar recebeu críticas de lideranças indígenas e seus apoiadores.

Não se falou em reparação, frisaram os indígenas, mesmo com os trabalhos, em curso naquele momento, da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que tratou da questão indígena e dos impactos da abertura da Transamazônica. “Mesmo para esse projeto de alternativa econômica, até hoje não tivemos resposta. Não há uma lei que proíba pedágios, já que é assim que tratam nossa compensação, mas decidimos parar por conta própria”, explica um Tenharim ouvido pela reportagem.


Midia Ninja/cc
Em casa de farinha Tenharim, homem prepara o alimento para comunidade

Durante os sete anos de coletas nos três postos de compensação, os Tenharim e Jiahui contrataram estudos socioeconômicos, antropológicos e ambientais para avaliar os impactos da Transamazônica na vida e no território dos povos. Com base nos resultados, pediram ao MPF saídas jurídicas para conseguir a reparação pela abertura da rodovia.

“Entendemos que nós tínhamos direito. A rodovia trouxe muita pressão da sociedade para a gente. Temos um distrito e dois municípios. Enfrentamos ameaças de morte. Temos lideranças criminalizadas, sem provas nenhuma. Eu tenho trauma de falar sobre isso porque armaram pra gente pra enfraquecer o movimento da gente na região”, conta o Tenharim.

Esse enfraquecimento, para os indígenas, está simbolizado em quem a Polícia Federal decidiu acusar pelas mortes: seis lideranças importantes do povo Tenharim que acabaram presas por meses, antes de seus advogados e advogadas conseguirem o deslocamento para a Terra Indígena, e que aguardam julgamento por um crime que negam terem tido cometido.

Um processo em alegações finais

A advogada Caroline Hilgert, que integra a equipe da assessoria jurídica do Cimi,  representa dois dos indígenas acusados pelo inquérito da Polícia Federal. Outros quatro acusados pela PF são defendidos  pela Procuradoria Especializada da Funai.  Hilgert explica que o processo criminal passou pela fase de instrução e neste início de 2023, ano que marca os dez anos do episódio, está na fase de alegações finais.

“Como corre em segredo de Justiça, só é possível comentar o que já é público. Inicialmente questionamos a competência, que é Federal, mas a Justiça manteve na esfera Estadual. Mais especificamente, está no prazo da defesa apresentar as alegações finais. Depois disso, o juiz dará a sentença. Temos esperanças e trabalhado para que o desfecho seja positivo aos indígenas”.  

Os seis indígenas respondem em liberdade, mas com restrições de locomoção. Não podem sair da Terra Indígena sem autorização. A advogada lembra que as prisões dos indígenas ocorreram de forma precipitada em relação a uma investigação mais detalhada. “Houve revolta da população pelo desaparecimento dos homens. As autoridades policiais marcaram uma reunião com os indígenas e quando os indígenas chegaram foram presos”, conta.

Houve revolta da população pelo desaparecimento dos homens. As autoridades policiais marcaram uma reunião com os indígenas e quando os indígenas chegaram foram presos

Caroline Hilgert, advogado de defesa dos Tenharim

Transamazônica: reparação e não repetição

Os acontecimentos transcorridos no final de 2013 precipitaram, em janeiro de 2014, na apresentação da ação civil pública do MPF no Amazonas, com pedido de liminar, na Justiça Federal, para declarar a responsabilidade da União e Funai por violações de direitos humanos dos povos indígenas Tenharim e Jiahui, em decorrência de danos permanentes da construção da rodovia Transamazônica em seus territórios. 

Conforme lembra o procurador da República Julio José Araujo Junior, “houve uma demora de resposta dos órgãos de investigação, da PF, e foi crescendo a indignação da população e isso foi o embrião de uma ofensiva anti-indígena. O que alimentou uma narrativa de que os indígenas eram os responsáveis pelo desaparecimento”.

Ocorre que o procurador estava há pelo menos seis meses coordenando um inquérito que apontava para outro caminho: os Tenharim e Jiahui eram as vítimas. 

Márcio Isensee e Sá/cc
Madeira sendo retirada da terra indígena Tenharim

“O chamado pedágio, que os indígenas entendem como compensação, me causava preocupação. A questão para mim podia servir para criminalizá-los. Então talvez fosse necessário dissuadi-los da cobrança, mesmo que em 2007 o MPF os tenha respaldado”, explica Júnior. Uma reunião foi marcada. Em Manaus, no mês de março de 2022, os Tenharim e Jiahui estiveram com o procurador e explicaram a razão da cobrança. 

“Contaram histórias do contato violento feito pelo Estado, dos trabalhos forçados, das doenças levadas com a abertura da rodovia, das mortes, invasões, do território esbulhado. Como eu acompanhava o caso da abertura da BR-174, que afetou de forma muito parecida os Waimiri-Atroari, pensei: cabe reparação”, lembra.

Contaram histórias do contato violento feito pelo Estado, dos trabalhos forçados, das doenças levadas com a abertura da rodovia, das mortes, invasões, do território esbulhado. Como eu acompanhava o caso da abertura da BR-174, que afetou de forma muito parecida os Waimiri-Atroari, pensei: cabe reparação

Julio José Araujo Junior, procurador da República

Quando no final de dezembro de 2013 ocorreram os fatos que hoje mantêm seis indígenas no banco dos réus, o inquérito do MPF já tinha juntado um dossiê sobre a questão territorial, remontando os impactos da Transamazônica, assinado pelo antropólogo Walter Coutinho. 

“Diante dessa circunstância, a propositura da ação se tornou necessária para mostrar a história da região. Esse episódio precipita a apresentação da ação, mas o inquérito estava bem encaminhado. Ela se tornou importante para mostrar como os indígenas são vítimas e não os algozes”, declara o procurador Júlio. Para ele, todo o processo dos últimos dez anos mostra a perenidade dos impactos nos territórios gerados pelo Regime Militar.

Na ação civil pública, que corre na 3ª Vara Federal no Amazonas, o MPF pede a condenação da União e da Funai ao pagamento de indenização no valor de R$ 10 milhões cada, totalizando R$ 20 milhões, em favor dos povos Tenharim e Jiahui, a serem aplicados em políticas públicas, sob a coordenação da Funai, a partir de definição pelas próprias comunidades.

O 180: reduto anti-indígena 

Para quem chega de Humaitá, o quilômetro 180, ou só “o 180”, também chamado de Santo Antônio do Matupi, só pode ser acessado pela Terra Indígena Tenharim Marmelos. Conforme os indígenas e o inquérito do MPF, trata-se de um reduto anti-indígena localizado no município de Manicoré. Os moradores da vila, formada na década de 1990, a partir da venda de lotes de assentamento do Incra, reivindicam a emancipação política. 

“Já havia um contexto de reação a políticas públicas indigenistas que aos trancos e barrancos caminhavam na região. Tem um fortalecimento de direitos. Áreas demarcadas, Polo Base de Humaitá, presença no Poder Público. Então antes do que aconteceu em 2013 havia uma reação contra os indígenas, e o 180 é um espaço de reação feroz aos indígenas”, explica o procurador da República.

Fábio Bispo/InfoAmazonia
Fazendas instaladas às margens de ramais ilegais abertos em direção a área da reserva de onde é retirada madeira.

O que ocorreu no final de 2013, no entendimento do procurador, é que “a correlação de forças desbalanceou de um jeito absurdo”. O Estado tinha uma estrutura, mesmo que precária, e essa estrutura se tornou alvo. “Atacaram a sede da Funai, outras estruturas e queriam ir até as aldeias. São ataques muito bem dirigidos”. 

A medida para o abalo definitivo na correlação de forças, no escopo conceitual usado pelo procurador da República, pode ser verificada um ano antes, em 2012, quando os Tenharim estabeleceram alianças com os moradores do 180 – o que hoje segue sendo impensável. 

Em breve etnografia sobre o 180 publicada pela Ponto Urbe, revista do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo, as antropólogas Isabelle Brambilla Honorato e Raquel Wiggers descrevem um bloqueio da Transamazônica, na altura do 180, ocorrido em agosto de 2012, em que os Tenharim e os moradores cobram melhorias do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).  

“Foi interessante a forma como a aliança entre moradores locais e índios serviu para chamar a atenção para outras necessidades e demandas dos moradores. Geralmente índios e moradores não estão unidos em suas reivindicações e os índios são acusados de se aproveitarem da demarcação de suas terras para cobrarem pedágio, prejudicando o trânsito de pessoas e mercadorias entre Apuí e Humaitá”, narram as autoras. 

Estima-se que o 180 tenha entre 50 e 100 construções que abrigam hotéis, comércio, moradias e estruturas públicas.  Durante o bloqueio descrito na etnografia, um trecho chama a atenção. “Muito se falava dos Tenharim, que eles são “folgados”, “preguiçosos”, entre outros adjetivos absurdos sobre os indígenas. Não eram usados os mesmos argumentos e discursos para falar mal dos moradores do Matupi que faziam parte do bloqueio”, pontuam as pesquisadoras.

Diante deste cenário, o conflito do final de 2013 teve uma reação do governo federal desfavorável aos Tenharim e Jiahui. “O governo, na crise Tenharim, agiu de uma maneira anti-indígena. Havia uma estrutura de proteção, a Funai. Quando você manda o general, você intervém dessa maneira, você mostra para que lado você vai. Isso piorou muito a crise para o lado dos indígenas, que teve o seu órgão de defesa atacado duas vezes”, afirma o procurador.

Dnit condenado 

Em outra ação, com tramitação na 1ª Vara Federal do Amazonas, envolvendo a manutenção da Transamazônica, a Justiça Federal condenou do Dnit ao pagamento de indenização por danos morais coletivos no valor de R$ 10 milhões aos índios Tenharim e Jiahui, sendo R$ 5 milhões para cada povo. 

A sentença reconheceu os graves danos ambientais causados ao território e ao modo de vida tradicional das etnias por obras na rodovia Transamazônica. 

“Desde sua inauguração, em 1972, o governo federal jamais se preocupou em fazer um estudo idôneo de impacto ambiental e social da rodovia. Nunca se falou em plano de gestão de recursos hídricos. Não se delimitou as consequências para as populações tradicionais e povos indígenas que habitavam aquele ethos. Não se pensou no prejuízo para a biodiversidade e para a história e identidade da nação”, sustenta trecho da sentença.

“Encontramos forças nos nossos ancestrais, na parte espiritual. Até mesmo os mais perto da gente, avós, pais, morreram na abertura da estrada, mas eles tinham alguma sabedoria porque os pais e avós deles tinham uma fala de que o povo ia quase acabar, que inclusive vizinhos iam chegar para isso, e que precisava insistir. Então seguimos essa fala: vamos insistir, resistir pela existência do nosso povo”, conclui o Tenharim ouvido pela reportagem. 


Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.

Sobre o autor
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Renato Santana

Jornalista com mais de uma década de trabalho entre os povos indígena e cobertura de temas socioambientais e de direitos humanos. Passou pela imprensa sindical e jornais diários. Colaborou com o Brasil...

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