Em entrevista, o historiador Gabriel Fonteles fala das certidões negativas que, criadas em 1968, passaram a ser expedidas pela Funai durante a Ditadura negando a presença de povos indígenas em áreas requeridas por grupos empresariais e fazendeiros

A ditadura civil-militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985 promoveu uma forma de ocupação territorial sem precedentes da Amazônia. Enquanto os militares esquartejaram a floresta com rodovias cruzando-a de Oeste a Leste (Transamazônica), de Sul a Norte (Cuiabá-Santarém), ou mesmo concentrados na parte mais ao Norte (Perimetral Norte), projetos de barragem de rios para construção de hidrelétricas eram esboçados, e uma não menos perniciosa política de designação de terras ocorria. 

Em todos esses os casos, sob a paranóia militar de que a Amazônia precisava ser integrada ao território nacional sob o risco de tornar-se uma nação independente, ou mesmo passar a compor outras nações, as medidas de colonização incentivadas pelos militares foram feitas ignorando-se a presença das populações que ali viviam. Há milênios, como os povos indígenas. Há séculos, como as populações quilombolas. Ou há décadas e décadas a fio, como as populações ribeirinhas.

Ao contrário do que foi promovido pela propaganda oficial dos militares, a distribuição de terras na Amazônia seguiu um modelo de concentração, favorecendo grandes grupos empresariais e fazendeiros – além de confusas e desorganizadas distribuições de pequenas glebas para produtores rurais de outras regiões do país que ainda enfrentam situações de insegurança jurídica quanto a propriedade de suas terras.

Nessa entrevista, o historiador e doutorando da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Gabriel Fonteles reflete sobre a sua pesquisa em andamento acerca das    certidões negativas. São documentos expedidos pela Fundação Nacional do Índio (Funai) durante este violento e caótico processo de colonização da Amazônia arquitetado pelos militares, que tinha como objetivo assegurar a inexistência de comunidades indígenas nas áreas destinadas a projetos financiados pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam). Corrupção, falta de capacidade do órgão e visões políticas sobre identidade indígena embebidas de racismo e exoticidade tornam este expediente uma verdadeira ferramenta burocrática para o esbulho de territórios indígenas, criando situações de insegurança jurídica que perduram até hoje. 

Este procedimento burocrático da Funai que culmina no esbulho de territórios indígenas foi, na visão do historiador, atualizado durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), com a instrução normativa 9 de 2020, que facilitava empreitadas econômicas em territórios indígenas não demarcados a despeito dos interesses dessas populações.

Confira a entrevista a seguir

O que são as certidões negativas de presença de indígenas emitidas pela Funai durante a Ditadura Militar?
Gabriel Fonteles – A partir de 1968, uma portaria da Funai, de número 60 [regulamenta a expedição] desses documentos para poder declarar que naquele determinado território, que a pessoa ou a empresa está interessada não tem presença indígena. Seja aldeamento indígena ou indígenas andando por ali, perambulando. Essa portaria não é muito clara a esse respeito. A gente consegue encontrar uma justificativa de pedidos de certidões negativas falando que como não tem aldeamento, só tem indígenas passando por ali, mas aí não tem problema.

Arquivo Armazém memória
Portaria número 60 da Funai, de 12 de setembro de 1968, na qual se estabelece a atribuição para assinatura das certidões negativas ao Diretor de Departamento do Patrimônio da Funai. Fonte: Armazém Memória. Arquivo trabalhado pelos pesquisadores Elias Bigio e Gabriel Fonteles.


 Nessa época, tem alguns processos de pedido de certidão negativa, e a partir de 1969 se torna enxurrada. Eu encontrei duas listas que foram feitas pela própria Funai a respeito dessas certidões negativas. A primeira lista cobre o período de 1970 a 1977, e constam mais de 700 emissões de certidões negativas. Isso só nos anos setenta. Eu ainda estou esperando a Funai me mandar a lista que vai de 1983 a 1989. Podemos estimar que são mais de mil documentos falando que não têm indígenas no território.

Arquivo Armazém Memória
Documento no qual a Funai afirma que não existe aldeamento, mas “pode haver incursão de índios’ e, mesmo assim, emite a certidão negativa (mais a frente no processo). Fonte: Armazém Memória. Documento encontrado pelo pesquisador Gabriel Fonteles.

E é até curioso, porque o documento da certidão negativa, era só uma página, curto, ele contém as coordenadas geográficas da região. Mas fala que o possuidor dessa certidão negativa, caso ele encontre algum indígena na região, ele tem que avisar a Funai.

Isso quer dizer que um fazendeiro que obteve uma terra com uma certidão negativa de presença de povos indígenas, mas que depois encontra a presença de povos indígenas, teria que avisar a Funai?
Pronto! E nenhum fazendeiro que tem uma certidão negativa que encontre um povo indígena vai avisar a Funai que encontrou indígenas circulando na terra, que agora vou chamar assim, na terra dele.

Por outro lado, o que a gente encontra, e eu tenho feito esse levantamento agora, são reportagens da imprensa falando dos conflitos [gerados por essas certidões negativas]. Porque, de um lado, o fazendeiro aparece falando que tem uma certidão negativa aqui, e os indígenas falam: “não, essa certidão negativa está equivocada”. Os Xavante, por exemplo, sofrem demais com isso.

DNIT/Divulgação
Ponte sobre o Rio Araguaia ligando Goiás ao Mato Grosso pela BR-080

Você poderia explicar melhor como essas certidões estão sendo emitidas em um momento específico da história do Brasil, em que a ditadura militar promovia a ocupação desenfreada da Amazônia, ignorando a existência dos indígenas que ali viviam?
 Em linha de princípio, e essa é a justificativa que a portaria número 60 dá, é que é para garantir o interesse dos povos indígenas; garantindo que não haja ocupação ilegal. Então eu vou lá verificar se tem presença indígena. E se não tem, tudo certo. Então parece que é justamente para garantir os territórios indígenas. 

Só que a gente tem que lembrar que isso está acontecendo na ditadura militar. Isso está acontecendo durante a expansão, a colonização para a Amazônia. Que é uma política de Estado. [Cujos lemas eram]: “terra sem homens para homens sem terra”. Esse momento. E além da política do regime militar, a gente tem que lembrar que, justamente por ser um regime fechado, ele é altamente corrupto. 

Então tem muitas denúncias. Tem uma CPI que acontece em 1977, a CPI do Índio. Ela trata muito da questão das certidões negativas. Então o que que você tem? Você tem uma política francamente aberta de colonização da Amazônia. Você tem a corrupção, que está acontecendo, com alguns funcionários da Funai que são processados por receber para liberar as certidões negativas.

E você tem um terceiro elemento, que é a própria imperícia da Funai. Tanto o SPI quanto a Funai,  eles não têm muito recurso pra fazer nada. Então você tem uma imperícia, e aí tem certidões negativas que as coordenadas geográficas, por exemplo, se quer incidem sobre a terra que elas deveriam incidir.

E o resultado final dessa política caótica seria a tomada dos territórios indígenas?
As certidões negativas produzem uma insegurança jurídica para os povos indígenas.  Os casos de corrupção envolvem dois presidentes da Funai: General Bandeira de Mello e o General Ismarth Araújo também. São dois militares, dois presidentes da Funai que utilizam em favor próprio a emissão das certidões negativas. 

As certidões negativas começam a ser emitidas porque a Sudam fala que só vai financiar projetos de colonização agrícolas na Amazônia se tiver certeza de que não vão ter indígenas nessa região. E é então que a Funai oficializa essa burocracia e faz a própria norma.

Só que aí tem um documento que é uma conversa, é uma troca de ofícios entre um grupo de trabalho, de avaliação de projetos da Sudam e a Funai. Isso acontece em 1968. E aí esse GT da Sudam faz a seguinte pergunta para Funai: “é pensamento dessa instituição recolher todos os silvícolas para esses parques pré-delimitados?”.

E aí a presidência da Funai responde o seguinte: “sim, os parques destinam-se a concentrar os índios de vastas regiões, liberando da sua presença terras para a política de penetração e ocupação do território”. Então, quer dizer, isso não é público. Mas está escrito que a intenção é justamente tirar os indígenas. É o primeiro presidente da Funai falando isso, em outubro de 1968.

Arquivo Armazém Memória
Troca de ofício entre Sudam e Funai, em 1968, acerca da liberação de terras para projetos de colonização ao concentrar indígenas em territórios específicos. Fonte: Armazém Memória. Documento encontrado pelo pesquisador Gabriel Fonteles.

Ou seja, um mês depois da publicação da portaria número 60 da Funai?
Exatamente. Certidão negativa e tirar indígena do meio para poder colocar projetos de colonização financiados pela Sudam, está casado.

Outro ponto que eu queria entender com você sobre as emissões de certidões negativas diz respeito a um aspecto identitário. Quem definia quem era indígena ou não?
A Funai diz: “nesse território aqui não tem indígenas”. Mas às vezes são indígenas, e a Funai, o Estado brasileiro, não os reconhece como indígenas.  Tem um documento que é muito curioso, que eu encontrei. Todas as certidões fazem parte de um processo. A Funai recebe uma carta do demandante, do requerente e então ela [a autarquia] faz uma certa pesquisa, que é também confusa, e depois  defere ou indefere o pedido. No geral os pedidos são deferidos.

E eu pude reparar que a Funai, de um modo um pouco informal, tenta evitar que as terras que estão sendo requeridas sejam imediatamente vizinhas de territórios indígenas. Geralmente nos processos fala assim “está quarenta quilômetros da terra indígena tal, está a cinquenta quilômetros, está a sessenta quilômetros… então não tem problema”. Eles tem um pouco dessa preocupação. Mas tem um processo por exemplo que eu encontrei, no Pará, em que dezenove indígenas estão na margem oposta [ao local requerido para certidão negativa], e então estaria muito perto. E tem uma página, que está escrita de punho, não datilografado, e consta que esses dezenove indivíduos que estão ali, que eles não são mais indígena, porque eles não falam sequer a língua original. E quem assina?  Não é um antropólogo, é o desenhista da Funai. O responsável por fazer os mapas da Funai. É impressionante você tem a Funai negando a identidade indígena.

Arquivo: Armazém Memória
Documento em que o desenhista da Funai nega a identidade de indígenas para permitir avanço de projetos de colonização do território. Fonte: Armazém Memória. Documento encontrado pelo pesquisador Gabriel Fonteles.

E essas certidões negativas de presença de povos indígenas emitidas no passado seguem influenciando, moldando a vida desses povos?
A Instrução Normativa 9 da Funai, de 2020, vai permitir a ocupação, trabalhos agrícolas e agropecuários em territórios indígenas . A Funai vai dizer que tudo isso pode acontecer, essa exploração, em territórios que não foram ainda homologados. Você tem um processo administrativo gigantesco,  até você ter a homologação de determinada terra, um  processo que demora muitos anos.

Placa com entidades vinculadas ao projeto de independência indígena Agro Xavante Credit: Lucas Owa Credit: Lucas Owa

Então em 2020, a Funai fala que não tem problema os fazendeiros, posseiros, podem trabalhar nessas terras desde que elas não sejam homologadas. Ou seja, você tem um processo de disputa [pela demarcação] tremendo, por anos e que de repente é simplesmente interrompido. 

 Repare que essa nota, essa instrução normativa de número 9, de 2020, ela repete a lógica das certidões negativas, que é a Funai trabalhando como espécie de chancelador burocrático do que vou chamar de esbulho do território indígena. Porque se lá nos anos 1970 e 1980, você solta uma certidão negativa para um fazendeiro falar “olha, a Funai falou que não têm indígena aqui, então se ela já falou, os indígenas são invasores”,  agora e em 2020 vai ter uma espécie de continuidade desse papel da Funai.

Isso esbarra na questão da justiça de transição: ao invés de proteger os interesses indígenas, a Funai atua, na verdade, favorecendo, burocraticamente, o esbulho.


Esta reportagem faz parte da série ‘Memória Interétnica’, com conteúdos que retomam casos de violações contra indígenas documentados por Centro de Referência Virtual Indígena e Cartografia de Ataques contra Indígenas, conectando-os aos temas da atualidade. O projeto é uma realização do Instituto de Políticas Relacionais em parceria com o Armazém Memória e tem apoio da Embaixada Real da Noruega em Brasília.

Sobre o autor
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Fábio Zuker

Jornalista multimídia, antropólogo e ensaísta. É pós-doutorando do Brazil Lab, da Universidade de Princeton (EUA). Como jornalista, é colaborador da InfoAmazonia e de O Joio e o Trigo, já escreveu...

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1 comment

  1. Parabéns pela matéria. Extremamente importante este resgate de documentos e fatos que estão na base das invasões dos territórios originários dos povos. Sobretudo neste momento em que o STF retoma o processo RE 1.017.365, em confronto a tese do indigenato X marco temporal, estas informações comprovam o quanto um marco com base em 1988 seria um crime. Parabéns aos caros Fonteles e Bigio!!!

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