O Ministério Público do Pará arquivou inquérito sobre contas do Projeto Saúde Alegria depois de examinar minuciosamente, ao longo de três anos, equipamentos contábeis e cerca de oito mil documentos administrativos. Em 2019, a polícia civil do estado prendeu quatro brigadistas da ONG que tentavam conter um incêndio na floresta.
Caetano Scannavino mora na Amazônia há 35 anos. Ele coordena a ONG Projeto Saúde e Alegria (PSA), situada em Santarém, no Pará. Desde 1987, a PSA se dedica a apoiar com ações sociais comunidades vulneráveis. São atividades voltadas para educação, saúde e saneamento, economia florestal e cultura.
Em 10 de agosto de 2019, Caetano estava em Brasília, cumprindo agenda de atividades relacionadas ao trabalho ambiental, quando soube, inesperadamente, que o escritório da Ong tinha sido invadido por policiais civis, que retiraram do local documentos, computadores e arquivos. “Quero deixar claro que não sabemos até agora do que estamos sendo acusados”, disse, em entrevista coletiva naquela manhã.
Ao mesmo tempo, o brigadista Gustavo Fernandes, que trabalhava na Ong, foi preso junto a outros três brigadistas, acusados de atearem fogo em florestas em Alter do Chão, que fica em Santarém. A suposição era de que os brigadistas teriam ateado fogo para filmar e conseguir recursos para Ongs que atuam no Pará. “Eles filmaram o início de uma queimada, mas só estavam eles. De repente esse fogo perdeu o controle. Ali não tinha como começar um incêndio se não fosse por eles”, disse o delegado da Polícia Civil, José Humberto Melo Júnior, à época.
Desde então, a PSA passou a ser investigada em inquérito da Polícia Civil, como sendo suspeita de atear fogo na Amazônia. Esse inquérito visou a procura de documentos falsos, irregularidades contábeis, análises de notas fiscais, tudo referente às atividades feitas entre 2017 e 2019, mas durante as apreensões, dados de dez anos da instituição foram coletados. Mais de 8 mil documentos também foram apreendidos, além de computadores, tablets e notebooks com dados de acesso a contas bancárias, extratos e contratos de trabalho.
Posteriormente, se descobriu que o fogo foi feito em ação organizada por fazendeiros do Pará, em episódio que ficou conhecido como “Dia do Fogo”. Eles queimaram várias regiões, numa manifestação para demonstrar apoio às políticas ambientais do governo do presidente Jair Bolsonaro.
O “Dia do Fogo” ocorreu entre os dias 10 e 11 de agosto de 2019. De acordo com o Inpe, 1.457 focos de calor no estado foram detectados naqueles dias, um aumento de 1.923% comparado ao mesmo período do ano anterior.
Ainda assim, a investigação que visava procurar ilícitos em documentos da PSA continuou. Preocupada, a ONG contratou uma empresa para também fazer auditoria das suas documentações. O medo era de que algo pudesse ser deturpado durante o processo.
“Quando a gente recebeu aquela chegada de policiais fortemente armados, sem saber o que estava acontecendo, pensamos que surgir uma fake news daquela investigação não seria difícil, principalmente quando se apreende praticamente dez anos de documentação. Então, até que ponto poderíamos confiar na justiça? Até que ponto isso poderia ser uma manobra?”, contou Scannavino.
Mesmo receosos, a PSA decidiu inverter o medo e transformar a investigação em uma contranarrativa. Seguros de seus trabalhos, eles contrataram uma empresa para fazer auditoria dos mesmos documentos apreendidos pela Polícia Civil. Dessa forma, ter um respaldo e também provar a lisura das atividades e contratos estabelecidos. “A gente até falava ‘queremos ser investigados’, quanto mais polícia era melhor. Nós pedimos que a sociedade cobrasse uma investigação correta”, disse Scannavino.
O processo só realmente teve fim nesta quarta-feira, 3, quando o Ministério Público do Estado do Pará divulgou, em Diário Oficial, o arquivamento do caso. “Concluímos que as provas juntadas nos autos não indicam a confirmação da hipótese de falsidade documental das contas, não havendo, portanto, qualquer indício probatório necessário para ajuizamento de medida judicial ou extrajudicial, objetivando a correção ou punição dos responsáveis”, diz o documento assinado pelo promotor Túlio Chaves Novaes, da 12ª Promotoria de Justiça de Santarém.
Antes, em fevereiro de 2021, o Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) já tinha determinado o arquivamento de um inquérito que foi instaurado pela Polícia Federal de Santarém, para investigar as razões do incêndio. “As investigações contaram com diversas oitivas e perícia ambiental que articulou análise de imagens de satélite com imagens produzidas por drone, informações sobre as dinâmicas dos ventos e análise de campo. Foi constatado que o incêndio teve origem em três locais diferentes e atingiu uma área de 1,2 mil hectares, mas não foram encontrados indícios mínimos que pudessem levar à autoria do crime”, disse o MPF.
“A Polícia constatou depois de quase dois anos que não tínhamos relação alguma com o início daqueles incêndios, solicitando o arquivamento do inquérito. Agora queremos dar publicidade ao que aconteceu, como forma de defesa das ONGs. A maioria faz a coisa certa. Você pode até discordar, porque estamos em uma democracia, mas entre discordar e acusar de corrupção tem um abismo”, enfatizou Scannavino.
Prisão do brigadista
O brigadista Gustavo Fernandes, que trabalhou até fevereiro de 2020 na PSA, foi preso acusado de ter sido um dos responsáveis por atear fogo na floresta naquele dia. Ele e os brigadistas João Romano, Daniel Gutierrez e Marcelo Cwerver ficaram presos por três dias, em novembro de 2019 e o processo que investiga a participação deles ainda está em andamento na justiça.
Nascido em uma família religiosa, Gustavo sempre esteve envolvido em ações sociais e dedica-se, principalmente, às causas ambientais. Nunca tinha sido acusado de nenhum crime até aquele momento em que precisou passar dias como presidiário por um suposto crime contra a floresta que ele protegia.
“O presídio de Santarém estava em intervenção militar há uns 7 meses e vimos vários presos que estavam com a pele amarela de não ver o sol por tanto tempo. Lembro de ter chorado muito só de pensar em quantas pessoas estavam ali naquele presídio, mas que eram inocentes como nós e não tinham a mesma rede de apoio que a gente”, conta Gustavo.
Os dias em que passou preso foram os piores e ele precisou aprender a lidar com a falta de estrutura, atenção e com o descaso do sistema penitenciário. “Na primeira noite dormimos em um local que era reservado como escola, mas só tinha mesmo um quadro negro e um banheiro bem precário. Lembro que atrás das grades, em um anexo do mesmo espaço, havia uma montanha com milhares de ventiladores quebrados, tamanha a precariedade do local. Logo após o jantar, os presos de uma cela começaram a jogar bilhetes escritos em folhas do que parecia ser bíblia, pedindo emprego, pedindo que a gente ajudasse a família deles lá fora”, relata.
O processo que investiga a ação dos brigadistas está parado na Justiça Estadual, esperando uma posição da corregedoria. Em maio de 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que o caso é de competência da Justiça Federal, mas os autos enviados não foram aceitos por estarem em formato errado, o que fez com que o processo fosse devolvido para a Justiça Estadual.
“Não é para fracos”
De forma positivista, Scannavino acredita que as tentativas de desmoralizar o trabalho da PSA mostram que eles estão fazendo um trabalho sério de combate ao desmatamento e em defesa da população amazônica. “As ONGs não estão batendo em quem está cumprindo a lei, elas estão batendo principalmente em quem não cumpre a lei. Se não estivesse incomodando, não existiriam ameaças, porque ninguém quer bater em cachorro morto. Então isso indica que estamos no caminho certo”, diz.
Scanavino não defende uma polarização de briga entre fazendeiros e ONGs. “Ser ativista ambiental morando na Amazônia não é algo para fracos. Uma coisa é estar em São Paulo e Brasília combatendo madeireiros e grileiros, outra coisa é estar aqui no Tapajós. A questão aqui não é fomentar uma briga entre ONGs versus agronegócio, mas se é para polarizar, que seja entre as pessoas que querem fazer a coisa certa versus quem está vivendo da ilegalidade”, disse.