Rita Mesquita chegou a Manaus (AM) em 1985, após se formar em Ciências Biológicas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e nunca mais deixou a cidade. Passou os últimos seis anos na Coordenação de Extensão do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Ao longo de sua carreira, realizou diversas pesquisas envolvendo mudanças climáticas na Amazônia, o potencial do turismo científico-ecológico em áreas protegidas da região, as florestas secundárias em áreas degradadas, sustentabilidade ecológica e gestão ambiental. Agora, aceitou comandar a Secretaria Nacional de Biodiversidade, Florestas e Direitos Animais, que tem quatro departamentos: departamento de florestas; departamento de proteção, defesa e direitos animais; departamento de conservação e uso sustentável da biodiversidade; departamento de áreas protegidas.
Dentro destes quatro âmbitos, a equipe tem a responsabilidade de criar políticas públicas e definir estratégias que envolvam todos os biomas brasileiros. Rita possui vasta experiência em alguns desses temas. Foi coordenadora do Programa de Mestrado Profissional em Gestão de Áreas Protegidas da Amazônia, do Inpa, entre 2004 e 2008 atuou como secretária adjunta de gestão ambiental da Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável do Estado do Amazonas (SDS-AM).
Rita desenvolveu seu trabalho voltando a atenção para a gestão de áreas protegidas e também por isso as expectativas dela são altas para redução do desmatamento nesse setor. As áreas protegidas englobam as Unidades de Conservação (UCs), mosaicos e corredores ecológicos. Nestas áreas é que estão os parques, as florestas nacionais, os mosaicos florestais. Na política ambiental do país, são áreas consideradas importantes porque conseguem manter a conservação em maior nível, já que são geridas pelo Estado.
Esse cenário mudou nos últimos anos. De acordo com um estudo publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), o desmatamento em áreas protegidas cresceu 94% na Amazônia, durante a gestão de Jair Bolsonaro. Nessa entrevista, Rita fala sobre o que espera para reduzir os danos, quais locais merecem mais atenção neste momento, como a bioeconomia : conceito de economia onde as políticas públicas precisam priorizar a conservação das florestas em conjunto com os ganhos sociais e econômicos será explorada no novo governo e suas avaliações das políticas ambientais nos estados da Amazônia Legal.
Rede Cidadã InfoAmazonia – Na sua opinião, qual a importância de uma secretaria de biodiversidade, florestas e de direitos animais para o Brasil neste momento?
Rita Mesquita: É muito interessante uma secretaria que tem esses quatro departamentos e uma agenda muito positiva, porque trabalha conservação e os planos de ação de resgate de espécies ameaçadas. É um trabalho muito abrangente e, ao mesmo tempo, também concentra a atenção às áreas protegidas, que na minha visão são a melhor estratégia para a gente combater o desmatamento. A Marina Silva [ministra do meio ambiente de mudanças climáticas] defende há muitos anos a transversalidade da agenda ambiental, porque, de fato, ela passa por inúmeros ministérios e inúmeros setores da sociedade. Neste novo governo, a agenda ambiental vem forte! Hoje, existem, pelo menos, 11 ministérios que têm setores ambientais e vejo que a nossa secretaria vai ter um papel importante nesse diálogo, nessa construção conjunta de algumas políticas importantes para o Brasil.
Como você avalia as políticas de direitos dos animais, hoje, no Brasil e o que deve ser prioridade a respeito desse assunto?
Nós temos, neste departamento, uma pessoa que já tem atuação e é muito ativa nessa agenda há muitos anos, com muita experiência, a Vanessa Negrini. Essa é uma agenda que se desdobra em muitos aspectos. A gente pensa logo na questão dos animais domésticos, todo mundo pensa em castração de gato, cachorro, essas coisas. Tem isso [cuidados com animais domésticos], sim, mas, além disso, a gente tem os animais que são utilizados na pesquisas científicas, a gente tem a fauna silvestre, que é aquela dos direitos originários, temos os animais de produção e aí envolve mais os animais ligados com a questão do agronegócio, o boi, o porco, a galinha… é uma agenda bastante ampla e que toca na vida de muitas famílias, porque todo mundo tem um animal doméstico. Eu acho que a gente vai ter que construir entendimentos importantes, até porque essas agendas se conectam em questões ambientais muito importantes relacionadas com as intervenções feitas no ambiente. Por exemplo, a questão do agronegócio, que vai ter impacto sobre os animais silvestres ou pode aumentar a propensão ao desenvolvimento de algumas doenças, que podem ter impactos nos animais e, consequentemente, nas pessoas. Acho que a gente precisa, realmente, traçar uma agenda que trate toda a complexidade desse assunto.
Quais os maiores desafios para a conservação das áreas protegidas na Amazônia e qual a sua expectativa para avançar nessa frente?
Eu tenho muitas expectativas, mas também sei que vamos ter muitos desafios. Em primeiro lugar, sempre que a gente pensa em conservação, a primeira coisa que vem na cabeça é a Amazônia, mas a verdade é que nós temos outros biomas no Brasil, que estão muito ameaçados e com uma cobertura insuficiente de áreas protegidas. Nestes biomas, o desafio da conservação é muito grande e as nossas estratégias precisam ser diversificadas. Em algumas partes do Brasil, por exemplo, nós temos contado com a contribuição de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN), proprietários que fazem essa proteção, o que não é muito a prática na Amazônia, onde você, de fato tem ali, grandes áreas de conservação que muitas vezes estão gerenciadas, ocupadas ou habitadas pelas populações tradicionais, os ribeirinhos, pescadores, extrativistas, indígenas. São áreas protegidas no senso amplo, unidades de conservação e terras indígenas. Recentemente, começou a se discutir alguns conceitos novos, que eu espero que, nós, lá no ministério, ampliemos o entendimento. Um dele é o que a gente chama de Omec [Outras Medidas Efetivas de Conservação baseadas em área]. A ideia é identificar e fortalecer medidas de conservação feitas por populações tradicionais, empresários e governos. São outras formas de você assegurar um bom uso de recursos naturais sem necessariamente essa definição da jurisprudência do governo sobre as áreas. Acho que esses são conceitos importantes que a gente vai precisar trabalhar e que talvez serão muito relevantes em biomas, onde a possibilidade da gente criar grandes áreas protegidas é muito pequena. Vamos ter que pensar estrategicamente como ampliar o Sistema Nacional de Unidade de Conservação (SNUC) nos outros biomas também.
Rita, me fala um pouco sobre como você deve trabalhar o problema do desmatamento em áreas públicas não destinadas?
Hoje, o maior problema dos impactos do desmatamento e das atividades ilegais na Amazônia está localizado, principalmente, em áreas públicas não destinadas. Nessas áreas, é necessário que a gente veja uma oportunidade de apoiar novas e diversas frentes de desenvolvimento, mas um desenvolvimento que dialoga com os recursos naturais que estão ali. Certamente, a minha secretaria, vai ter um papel nessa discussão. Não só porque existem outros setores dentro do ministério que também vão tratar desse assunto, mas porque precisamos encontrar os melhores destinos para as diferentes áreas não destinadas. Isso será uma uma agenda bastante importante pra gente desenvolver com agilidade na Amazônia.
Rita, qual sua opinião sobre a bioeconomia como opção para a sustentabilidade econômica da Amazônia?
Eu penso que o Brasil precisa avançar numa discussão sobre bioeconomia qualificada em uma política nacional, porque, no momento, nós não temos essa política e isso significa que tudo virou bioeconomia. Mas eu acho que a bioeconomia vem numa visão de ser uma forma mais consciente, mais responsável, menos impactante de uso dos recursos e de formas de produção. No entanto, na ausência de uma política que qualifique isso claramente, ‘bioeconomia’ se torna um jargão que está sendo usado por muitas pessoas com significados muito diferentes. Penso, também, que esse vai ser um desafio desse governo.
E em relação à BR-319, que hoje é a região propulsora do desmatamento no estado do Amazonas. O que você vê como solução para região?
Se a gente olhar pra rodovia BR-319 apenas como um meio de transporte, ela não faz muito sentido, porque a população que mora à beira do rio Madeira tem uma hidrovia, que é uma modalidade de transporte muito mais barata e que conecta todas as cidades da região, porque elas estão localizadas às margens dos rios. Agora, quando você casa essa atividade com uma expectativa de ocupação da região, aí é diferente, aí você tá abrindo as entranhas da Amazônia. A BR-319 precisa de um plano de desenvolvimento muito claro e de integração, porque o entorno dela tem um grande mosaico de áreas protegidas, com diferentes categorias, com diferentes aptidões e é possível, sim, desenvolver uma bioeconomia local, inclusive pensar em turismo, por exemplo, já que é uma região muito bonita com uma grande estrada e que proporciona uma longa viagem. No momento, esse projeto não existe, mas podemos criar a oportunidade de discutir um plano que dialogue com as áreas protegidas que já estão ali e com os potenciais que aquela região tem. Outra coisa é a questão do desmatamento, que precisa de ações de combate, comando e controle, além do ajustamento de condutas de algumas pessoas que acabam insistindo em continuar fazendo coisas ilegais. Tudo isso precisa estar embasado na sustentabilidade, no diálogo com as comunidades e amparada em uma boa análise de potencialidades e aptidões da área.
Tem algum local, estado, área que você considera que seja urgente chegar lá com políticas públicas?
O sul do Amazonas: região considerada como uma nova fronteira do desmatamento na Amazônia, a BR-163 : Estrada que liga as cidades de Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará parte do Acre. Precisamos chegar logo a esses locais! Acho que se a gente chegar ao sul do Amazonas talvez consigamos neutralizar uma boa parte do que está hoje associado à BR-319, porque o sul [do Amazonas] é bem complexo, onde você tem pessoas muito empreendedoras. Eu não gosto de tratar todo mundo como bandido, eu acho que não é isso. Eu acho que está faltando política pública de peso para orientar as ações dessas pessoas, nós precisamos fortalecer órgãos de extensão rural, a assistência, precisamos descentralizar uma parte do processo de legalização de licenciamento. O cidadão precisa sentir que ele conseguiu chegar a alguma instância de governo e que ele conseguiu assim exercer a sua cidadania. ‘Eu queria uma licença e encontrei uma porta aberta, achei uma pessoa lá que recebeu meu pedido, me orientou e está em tramitação’. O que acontece com as questões amazônicas é que tudo está muito longe [das pessoas] e existe uma grande centralização [de serviços públicos], geralmente nas capitais. O cidadão que tá naquela periferia, lá na ponta, se sente distante dessas políticas, ele se sente não atendido. Então eu acho que essas são discussões reais que nós precisamos.
Rita, a sua trajetória tem trabalhos ambientais voltados para educação. Será possível ter alguma iniciativa parecida dentro da secretaria?
Olha eu espero que a gente tenha sim, até porque uma parte muito grande das estratégias voltadas para o assunto exigem a participação da sociedade, que acredito ser um princípio que temos que adotar para tudo. Essa participação pressupõe uma participação qualificada e essa participação qualificada se constrói na capacitação, na formação do cidadão. Uma das missões que nós vamos ter na minha secretaria é recuperar alguns conselhos, onde a participação social sempre foi muito forte e que numa gestão [de Jair Bolsonaro] recente isso foi muito limitado.
O Brasil tem a meta de zerar o desmatamento do Brasil até 2028. Você acredita que isso é possível?
Não tenho dúvida nenhuma! Eu acho que nós vamos dar a nossa contribuição, porque não vamos ficar até 2028 [o mandato acaba em 2026]. Eu espero que seja uma contribuição significativa para que essa meta possa ser atingida lá na frente. O Brasil já mostrou a sua capacidade de governança sobre isso, nós temos competência técnica, nós temos as ferramentas, nós sabemos como fazer. Eu acredito que chegamos na situação que chegamos, agora, porque não houve a vontade de fazer. Quando você tem um governo que coloca como um dos seus compromissos a vontade de fazer, aí eu acredito que vamos conseguir.
Há poucos anos, o Amazonas era um dos estados que não figurava entre os que mais desmatam, mas no último ano, em alguns meses, ele passou o Mato Grosso, e alcançou o segundo lugar no ranking. Que fatores impulsionam essa mudança?
Eu quero começar fazendo uma análise de vizinhança antes de qualquer coisa, porque a vizinhança ajuda a entender um pouco o que tá acontecendo aqui. É claro que no lugar onde você já cortou toda a floresta que você poderia ter cortado, chega uma hora que taxas de desmatamento caem, mas não é porque você parou de cortar, é porque não tem mais floresta para cortar, como é o caso do Mato Grosso. Ao mesmo tempo, no contexto atual do Pará, o [governador] Helder Barbalho vem se posicionando, assumindo compromissos e o protagonismo que manda uma mensagem muito clara: ‘olha nós vamos apertar aqui, não venham desmatar ilegalmente’, uma agenda muito clara. No caso do Amazonas, eu avalio que este governo [estadual] não tem um plano para o seu patrimônio natural, sobre o que é que vamos fazer com a nossa maior riqueza, que é a floresta. Se você não tem um plano, o plano de qualquer um serve, e o plano de qualquer um que tá entrando aqui, é esse processo desordenado, perverso de perda do patrimônio natural em grandes extensões.
Rita, muitas vezes os governos estaduais passam essa responsabilidade de preservação dos territórios para o governo federal. Como você observa essa receptividade dos governos estaduais e a possibilidade do diálogo com eles?
Se você olhar hoje onde estão os grandes pontos de terras não destinadas, você vai observar que a grande concentração dessas áreas está com os estados. Não é o governo federal que vai destinar, são os estados que têm que destinar. E se o estado não tem um plano claro, ele vai destinar para qualquer coisa e essa qualquer coisa significa abrir frentes para o desmatamento. Essa ausência de uma política [pública] está deixando todas essas regiões muito vulneráveis e o que a gente pode esperar disso é só uma coisa: desmatamento. É muito importante trabalhar junto com os estados para que a gente possa construir um plano nacional e ali ter uma visão mais integrada de como nós vamos manter a Amazônia de pé. A Amazônia vale mais em pé do que derrubada. Os estados também têm uma responsabilidade enorme de guarda e uma boa parte desse patrimônio está em terras estaduais. Eles [os estados] precisam ser chamados às suas responsabilidades e esse diálogo precisa ser aberto. Espero que a gente consiga fazer isso.
Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia. A reportagem de Jullie Pereira foi realizada em parceria com Report4theworld, iniciativa da Groundtruth.