Registros oficiais dão conta de que os primeiros contatos com o povo Guajajara, ou Tenetehara, foram feitos há 400 anos na região onde fica o rio Pindaré, um dos principais do estado do Maranhão, na Amazônia maranhense. Hoje, o território dos Guajajara está distribuído em 11 Terras Indígenas (TIs), situadas em nove municípios do estado. Esses territórios foram mantidos à custa de muita luta e resistência em diversos episódios, o mais famoso ficou conhecida como a revolta de Alto Alegre, quando os indígenas expulsaram freis capuchinhos que, com o apoio do Estado, tinham um projeto de catequese e suposta civilização dos Guajajara. 

Naquele ano de 1901, quando Campos Sales exercia o mandato de 4º presidente do Brasil, centenas de indígenas e não indígenas morreram no conflito. “O povo Guajajara queria legitimamente reconquistar o direito à posse da terra de Alto Alegre, o que desencadeou o conflito, fazendo com que os Guajajara liderassem muitas aldeias dispersas na região de Barra do Corda e de outros lugares para que combatessem, unidas, uma causa comum [a expulsão dos não-indígenas]”, explicou à reportagem da Rede Cidadã InfoAmazonia,  antropóloga Maria Aparecida Corrêa Custódio, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), autora do artigo “Missão capuchinha e resistência Tentehar: releituras do conflito de Alto Alegre”, que conta toda a história da revolta.

Depois disso, os Guajajara ainda enfrentaram diversos invasores, especialmente os madeireiros, que, até hoje, são os protagonistas de conflitos graves e frequentes.

De acordo com o antropólogo e médico especialista em Saúde Indígena István Van Deursen Varga, a instalação de madeireiras na região, a partir de 1950, veio com uma grande intensificação do movimento migratório de trabalhadores rurais do Nordeste ao Maranhão. Após a década de 1970, István conta que madeireiros promoveram uma rápida devastação da floresta amazônica em sua então fronteira oriental: o Oeste e Sudoeste do Maranhão.

A partir de então, a presença dos madeireiros se consolidou e, somado ao descaso do poder público, desde 2010, os relatos de invasões e ataques contra os Guajajara aumentaram.

Há uma onda de assassinatos de lideranças indígenas em andamento no Maranhão, com fortes indícios de que esteja sendo promovida por madeireiros ilegais. Mais de 50 Guajajara foram vitimados nos últimos 20 anos

István Van Deursen Varga

A TI Arariboia é a mais afetada pela violência que atinge o povo Guajajara. No dia 23 de fevereiro, Jones Canaré Guajajara, 22 anos, foi baleado por homens armados na aldeia Toarizinho. Até o momento, ele segue hospitalizado. No dia 9 de janeiro, Benedito Guajajara, de 18 anos, e Júnior Guajajara, de 16, também foram baleados na TI. De acordo com informações do Conselho Indigenista Missionário do Maranhão (Cimi-MA), os dois já saíram do hospital e estão se recuperando em casa. 

No dia 31, Raimundo Ribeiro da Silva, 57 anos, servidor da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), também foi morto a tiros em uma emboscada na TI Arariboia. Ele era casado com Marta Guajajara, prima de Laércio Guajajara, um dos sobreviventes da emboscada que resultou na morte de Paulo Paulino Guajajara, em novembro de 2019, também dentro da TI Arariboia. No dia 25 de janeiro, José Inácio Guajajara foi assassinado na TI Cana Brava e no dia 28, Valdemar Guajajara foi morto na TI Arariboia.

Divulgação / Cimi
Janildo Oliveira Guajajara foi morto a tiros em setembro de 2022

Em setembro de 2022,  o indígena Janildo Oliveira Guajajara foi alvejado, em um ataque que deixou um jovem de 14 anos ferido. No mesmo dia, Jael Carlos Miranda Guajajara sofreu um atropelamento e morreu. No dia 11 de setembro, apenas uma semana depois, Antônio Cafeteiro Sousa Silva Guajajara foi morto a tiros no mesmo território.

Impunidade

Desde que sobreviveu ao atentado que matou Paulo Paulino, Laércio Guajajara vive escondido e teme pela sua segurança. Em rara manifestação, ele conversou com a Rede Cidadã InfoAmazonia e avaliou que operações policiais não serão suficientes para frear a violência no território. 

“Aqui, uma operação não vai resolver. Precisa ter fiscalização permanente, se não tiver isso, não vai mudar em nada. Quando uma operação acaba, os invasores, todos, retornam. Tem invasores de todos os lugares, até de outros estados, todos em busca de madeira. Eles matam dentro da aldeia, estamos sem segurança nenhuma. Nós mesmos temos que nos defender se quisermos viver mais”, disse Laércio. Segundo ele, a principal razão das mortes é a cobiça pelas riquezas do território. 

Eles matam dentro da aldeia, estamos sem segurança nenhuma. Nós mesmos temos que nos defender se quisermos viver mais

Laércio Guajajara

Na avaliação da advogada Kari Guajajara, assessora jurídica da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), é necessário ter ações estratégicas para conter esses crimes. “Nós temos repetido, diariamente, que não se trata de um problema pontual, mas estrutural! E a gente corre um sério risco de continuar observando cada vez mais esses dados [de assassinatos] crescerem. As últimas décadas na TI Araiboia foram marcadas por diversos assassinatos sem que a gente conseguisse que medidas efetivas, preventivas e até repressivas fossem adotadas de forma adequada, a ponto de enfrentar essa realidade”, explicou. 

As últimas décadas na TI Araiboia foram marcadas por diversos assassinatos sem que a gente conseguisse que medidas efetivas, preventivas e até repressivas fossem adotadas de forma adequada, a ponto de enfrentar essa realidade

Kari Guajajara

Os autores dos crimes registrados nos últimos anos na TI Arariboia não foram presos ou responsabilizados de alguma forma. O caso de Paulo Paulino, por exemplo, ainda não foi julgado, apesar da repercussão internacional. As mortes de Janildo Gujajara e Jael Guajajara, no ano passado, também não foram esclarecidas.

Patrick Raynaud / Apib
Paulo Paulino foi assassinado em 2019 e o julgamento dos acusados ainda não ocorreu

Kari analisa que essa situação de impunidade ocorre por causa do racismo estrutural, que corrompe os sistemas judiciais e de segurança. “A gente percebe que essa problemática [do racismo] está enraizada, também, no Judiciário e na própria polícia”, disse. “Existe um pensamento colonialista acerca das questões dos povos indígenas. Todo esse processo de omissão que ocorreu nos últimos anos não é isolado da falta de uma atuação de enfrentamento direto a esses casos. Nós estamos falando de um processo de investigação adequado, da divisão de competência e da descaracterização étnica de muitos indígenas que são assassinados e, às vezes, nem são considerados”, explicou Kari.

Foi essa falta de segurança e os números de casos de violência que passaram sem explicações que fizeram o povo Guajajara a criar seu próprio grupo de proteção, os Guardiões da Floresta, em 2013. Assim, os  Guajajara fazem eles próprios a fiscalização do território e, até, a expulsão de madeireiros, o que coloca em risco as suas vidas. Muitas lideranças que sofreram ataques, como Paulo Paulino, Laércio Guajajara, Auro Guajajra, Janildo Guajajara, fazem ou fizeram parte do Guardiões da Floresta. Pela lei, esse trabalho é de responsabilidade da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Instituto Nacional do Meio Ambiente (Ibama) e da Polícia Federal. 

“A gente observa que quem faz a defesa de direitos coletivos ou mesmo pelo simples fato de existir enquanto Guajajara já é um ponto para que terceiros estejam interessados em praticar violência contra nosso povo. A gente tem um cenário que é muito claro e específico por trás da maior parte dessas violências, que é a invasão madereira”, afirmou Kari Guajajara. 

A antropóloga Maria Custódia vê na resistência do povo Guajajara o mesmo objetivo que, em 1901, eles tiveram para expulsar os freis capuchinhos. “Naquele momento de liderar a articulação das aldeias para iniciar uma rebelião na colônia de Alto Alegre, e depois em toda a redondeza, os Guajajara criaram uma espécie de Guardiões da Floresta das terras e da cultura indígena, como ocorre, hoje, na Terra Arariboia”, disse a antropóloga.

Ela destaca que a luta contra as invasões é, também, pela manutenção da sobrevivência e qualidade de vida dos indígenas. “Hoje o povo Guajajara precisa lutar para preservar seu território contra a exploração dos madeireiros e, daí, novos conflitos se instalam trazendo implicações mais graves, como a terrível violência, o acirramento da detonação do meio ambiente e, com isso, a redução das possibilidades de cultivo agrícola, pesca e caça“, acrescentou Maria Custódia.

Exploração ilegal e ações policiais

A Terra Indígena Arariboia fica situada dentro dos municípios de Amarante do Maranhão, Arame, Bom Jesus das Selvas, Buriticupu, Grajaú e Santa Luzia. Ela foi demarcada em 1990 e, atualmente, abriga mais de cinco mil indígenas do povo Guajajara e do povo isolado Awá Guajá. 

De acordo com os dados de 2022 do Relatório Violência Contra Povos Indígenas, as invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio somaram 20 registros no Maranhão. Destes, seis casos foram contra aldeias do povo Guajajara e quatro dentro da TI Arariboia. Até os Awá – Guajá registraram um caso de violência.

Com apenas uma busca na internet, é possível verificar que são vários os registros de operações feitas pela Polícia Federal nos últimos anos no território Guajajara, mas que não conseguem expulsar os invasores e se repetem frequentemente. Algumas delas envolvem a investigação direta de madeireiros e serrarias. 

Divulgação / Polícia Federal
Operação da PF na TI Arariboia

Em agosto de 2021, por exemplo, a Polícia Federal iniciou a Operação Anhangá, de combate à extração ilegal de madeira na TI Arariboia, e apontou diversos pontos de extração de madeira, serrarias, moveleiras e residências que invasores estariam usando. Em maio de 2022, a Polícia Federal e o Ibama fizeram a Operação Nemestrino, que teve como alvo pontos desmatados dentro da TI Arariboia onde existiam serrarias e movelarias clandestinas. Neste mês, após os assassinatos na TI, foi deflagrada a Operação Eunômia, que apreendeu armas de fogo, motosserras, 303 m³ de madeira serrada e, ainda, destruiu duas serrarias ilegais. 

O jornalista e ativista de direitos humanos, Emílio Azevedo, da Agência Tambor, que faz cobertura socioambiental na região, explica que os invasores atuam de diferentes maneiras dentro do território. “Eles são brutos e bem articulados. Muitos estão ligados à estrutura de poder, tendo acesso a diferentes níveis do serviço público, nos três poderes constituídos. Infelizmente, o racismo está na origem de muitos problemas e muitas violências ocorridas e vividas em nosso país, começando pela desigualdade. No Maranhão não é diferente”, avaliou.

Em fevereiro deste ano, a Agência Tambor publicou uma entrevista com Luís Antônio Pedrosa, presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Maranhão. Nela, Luís afirma que as investigações dos conflitos ocorrem de maneira lenta e que isso se dá por falta de incentivo dentro dos órgãos responsáveis. “Quando se trata da questão indígena tudo se agrava. Há um racismo estrutural muito grande, porque as instituições elas funcionam de maneira que essas demandas não ingressam no balcão de atendimento desses gestores. As pessoas ficam jogando a responsabilidade para as outras unidades de competência da federação”, disse.

O outro lado

Sobre as mortes ocorridas em janeiro, a Polícia Civil do Maranhão disse à Rede Cidadã InfoAmazonia que no dia 3 de fevereiro, prendeu um homem suspeito de participação no assassinato de Valdemar Marciano Guajajara. A PC deu detalhes e nem informações sobre as investigações dos outros assassinatos.

Em 10 de fevereiro, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) organizou uma reunião interinstitucional com a presença do Governo do Maranhão, Ministério Público Federal, organizações indígenas e Polícia Civil. A advogada Kari Guajajara participou da reunião e faz a mesma análise do Laércio.

Ações pontuais isoladas já não dão conta  de enfrentar a realidade. Nunca deram e, agora, mais do que nunca, a situação é gritante, demonstrando que nenhuma ação pontual vai conseguir resolver a problemática ali e, muito menos, preservar a vida desses povos

Kari Guajajara

A ministra Sônia Guajajara foi procurada, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.  No Twitter, a ministra, que nasceu na TI Arariboia, afirmou que faria uma audiência pública para investigar os casos e que procuraria punir os responsáveis. “Vamos convocar uma audiência pública no município para exigir a investigação e esclarecimento sobre a motivação destes crimes, além da devida punição dos culpados. Esses crimes devem ser apurados e os autores devem ser responsabilizados para romper o ciclo de violência contra nós indígenas”, tuitou.

Reprodução / Twitter/@GuajajaraSonia
Sonia Guajajara, primeira mulher indígena ministra do Brasil

O Governo do Maranhão informou, em nota, que tem realizado ações para garantir a vida dos povos indígenas e citou a “Força-tarefa de Proteção à Vida Indígena”, o “Programa de proteção Defensores” e o programa “Maranhão Verde Eixo Indígena”. “O Governo do Estado tem realizado ações para promoção e garantia da vida dos povos indígenas. Um dos instrumentos é o Estatuto Estadual dos Povos Indígenas que tem, entre suas finalidades, auxiliar os povos indígenas e o Governo Federal na proteção das terras”, disse em nota enviada à reportagem. 


Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia. A reportagem de Jullie Pereira foi realizada em parceria com Report4theworld, iniciativa da Groundtruth.

Sobre o autor
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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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