Eram 16h da tarde de uma quinta-feira quando Regina Sateré-Mawé saiu de casa para ir à feira comprar almoço. Depois de passar o dia produzindo artesanato, atendendo a imprensa e contribuindo em articulações do movimento indígena, ainda não tinha dado tempo de comer. De fato, ela só conseguiu se alimentar duas horas depois, quando atendeu à reportagem da Rede Cidadã InfoAmazonia, pois estava envolvida na organização da Pré-Marcha das Mulheres Indígenas, evento preliminar à programação anual da agenda indígena no Brasil. Essa é a rotina de Regina, mulher, mãe, artesã e uma das lideranças indígenas de maior expressão da Amazônia, que comemora o momento atual das mulheres indígenas “É uma visibilidade que temos juntamente com outras mulheres, as negras, as donas de casas, as mulheres ribeirinhas”, avaliou Regina, que é uma das milhares de indígenas que vivem em contexto urbano em Manaus.
A família de Regina fez história no movimento indígena com a criação de uma das associações de mulheres indígenas mais importantes do Amazonas, que, historicamente, produzem artesanato como reprodução da sua cultura e para sustento. A Associação das Mulheres Sateré-Mawé (Amism) foi fundada em 1992 pela mãe da Regina, Tereza Ferreira da Silva, que morreu em 2013. Atualmente, a organização tem mais de 50 mulheres associadas em mais de 30 aldeias.
Historicamente, o território do povo Sateré-Mawé se estendia do rio Madeira, no Amazonas, ao rio Tapajós, no Pará. Mas, hoje, oficialmente, este território são Terras Indígenas localizadas entre as regiões do médio e baixo rio Amazonas. A família de Regina, tem origem na Terra Indígena (TI) Andirá-Marau, que abrange seis municípios entre os estados do Amazonas e do Pará. É de lá que vem a matéria-prima utilizada na fabricação de colares, brincos, anéis, cestos, braceleiras e todo tipo de adereço comercializado pela Amism.
Foi a produção de artesanato e máscaras que garantiu a subsistência das famílias chefiadas por mulheres da Amism durante a pandemia. Mas, antes da Covid-19 chegar, a situação da associação já era crítica, o que desmotivou Regina e quase a levou a desistir, mas ela foi motivada por outra mulher da família a continuar: sua filha do meio, Samela Sateré-Mawé. Sem saber o que estava por vir, a jovem tomou a frente da Amism e se converteu na guardiã do legado da família. “Ela vestiu a camisa da avó e disse assim: ‘eu não vou deixar [a Amism acabar], porque isso foi uma conquista da minha avó. Então eu vou levar o legado dela e eu vou levar para a frente’”, contou Regina. Com a confecção de máscaras com grafismos do povo Sateré-Mawé, a associação alcançou pessoas de todo o mundo.
Hoje, Samela é comunicadora e ativista socioambiental com projeção internacional e representa o movimento criado pela sueca Greta Thunberg, o Fridays for Future Brasil.
Todos esses avanços foram alcançados com muita resistência, durante o governo anti-ambiental e anti-indígena, de Jair Bolsonaro (PL), que ignorou os povos indígenas e a Amazônia. Agora, o futuro que se projeta é bastante diferente, inclusive com a participação direta de lideranças indígenas, como Sônia Guajajara (PSOL) e Joênia Wapichana (Rede), tomando posse em cargos onde mulheres indígenas nunca foram vistas. Nesta entrevista, Regina, que é coordenadora da Amism e conselheira fiscal da Associação dos Povos Indígenas do Amazonas (Apiam), conta como foi sua trajetória, de que forma observa a presença das mulheres indígenas no novo governo e o que considera necessário para mudar o cenário de descaso com indígenas em contexto urbano.
InfoAmazonia – Me conta como foi sua vivência dentro da sua aldeia e como ocorreu sua mudança para chegar aqui em Manaus?
Regina – A minha avó veio pra cá na década de 1970 e a minha mãe veio também, muito novinha. Depois, ela casou e voltou para a aldeia, porque foi lá onde ela nasceu e se criou, então era lá que os filhos iriam nascer e ficar. Morei na aldeia até meus 12 anos, depois fomos para outros lugares. Minhas raízes são de duas regiões da terra, que é ali para Barreirinha e também Parintins. Meu pai é de Maués, mas é ribeirinho. Foram 12 anos muito bons. Eu falo a minha língua, tenho meus costumes, minhas tradições. Então foi bom porque eu sei de onde eu vim, sei quais são minhas raízes e qual o meu povo. Nunca deixamos o contato com os parentes de lá. Depois que minha mãe criou a associação isso melhorou mais ainda.
Quais são os maiores desafios que o seu povo que está dentro da TI enfrenta hoje?
A maior pandemia que eu digo que está dentro da nossa aldeia é a bebida alcoólica e as drogas. Eu fui pra lá mês passado e vi a necessidade de fazer um projeto para trabalhar com jovens. Um projeto que envolva esses jovens nem que seja no artesanato, no esporte, no lazer, no que quiserem. A gente precisa correr atrás, porque eu vejo que eles estão muito envolvidos com essas coisas [álcool e drogas], talvez porque não tem nenhuma outra atividade.
Os jovens têm contato com o álcool e as drogas quando vão com parentes à sede do município, para receber auxílio, para receber aposentadoria. Se for um velho não vem sozinho, vem com neto, se for com uma filha vem com um monte de menino. É difícil, né? Então nós temos que ver uma maneira de criar políticas públicas para evitar esse contato. Você está vendo que tem pouca gente aqui [na sede da associação] e é justamente por isso. Só quando temos uma demanda de atividades muito alta é que convidamos as mulheres da aldeia para virem à cidade, fora isso, elas só vêm quando precisam resolver demandas de documentação e saúde. Não incentivamos esse tipo de deslocamento para evitar expor quem mora nos territórios ao contato com situações que podem gerar problemas.
A Amism teve muita visibilidade durante a pandemia, não só com a venda de máscaras, mas, também, com manifestações de pedidos de atenção aos povos indígenas que estão na cidade. Me fala um pouco sobre esse momento?
Antes da pandemia essa casa não era assim, estava tudo caído, tudo feio, nós estávamos dormindo e nos embrulhando com plástico, porque quando chovia molhava tudo. Aí com a pandemia e a venda de máscaras conseguimos ter visibilidade. Os jornalistas perguntavam ‘mas e o poder público não veio aqui ajudar vocês?’. Eles sabem que estamos aqui, eles cobram luz, água, IPTU. Eles sabem, mas não ligam para os indígenas da cidade. Nessa época, foi preciso muitas mobilizações, mas o governo e a prefeitura não fizeram muita coisa. As mudanças aconteceram por essa visibilidade que tivemos com as vendas.
O que vocês reivindicam enquanto indígenas que vivem em Manaus?
Nós lutamos por uma saúde diferenciada e uma educação diferenciada. As pessoas falam ‘ah, porque os índios têm privilégios!’. Não é fácil pra gente! Os jovens concorrem como qualquer outro, fazem prova como qualquer um. Eu vejo que aqui na cidade nada foi feito para nós, povos indígenas. Não temos um espaço para apresentar nossos artesanatos, não temos um centro de convivência dos povos indígenas que seja nosso de verdade. Precisamos ter professores indígenas, uma sala de aula para ensinar nossa língua materna para os nossos filhos que nascem aqui. Manaus é uma cidade que é um ‘malocão’ (lugar que abriga famílias indígenas), onde se concentram muitos povos que saíram das aldeias e nós não temos um espaço nosso, nós estamos invisíveis! Em todo bairro de Manaus nós temos indígenas, mas estamos invisíveis. Hoje a minha luta é essa.
No Amazonas, assim como em alguns outros estados, existem órgãos estaduais que representam a população indígena. No Amazonas, temos a Fundação Estadual do Índio (FEI). A senhora acha que a atuação do órgão tem beneficiado os indígenas no Amazonas?
A Fundação Estadual do Índio foi criada para trabalhar para os povos indígenas, mas não é isso que acontece. O governo criou esse espaço, mas tudo tem que ser feito do jeito que ele quer, ele não deu ferramentas para o povo trabalhar. O que eu ouço falar é que só existe dinheiro para quem está trabalhando lá dentro, puxando, assinando e carimbando papel. Enquanto isso, o povo do interior, das comunidades, está precisando de assistência, mas as pessoas não têm recursos e nem condições, assim, ficam com os pés e as mãos atadas e não podem mudar a realidade delas.
É o mesmo que acontece com a Funai. A Funai também está sucateada, não tem nada lá, a única coisa que estão fazendo é dando cesta básica. Os indígenas precisam de poder para fazer alguma coisa.
Regina, sei que você esteve recentemente na pré-marcha das mulheres, um evento feito para planejar a agenda de outras ações que serão feitas este ano como a III Marcha das Mulheres Indígenas, o Março das Originárias e o Acampamento Terra Livre (ATL). Como foi o encontro e o que a marcha representa para vocês?
Esses encontros são momentos de muita emoção, porque é uma conquista nossa, é uma conquista do movimento, é uma conquista das mulheres. É o momento em que nós, mulheres, fazemos nossos rituais juntas. Neste ano, fizemos rituais de cura da terra com as mulheres e as nossas candidatas que foram eleitas, foi muito emocionante. Eu participei dessa conjuntura das mulheres pajé, me senti muito importante. Eu só tenho mesmo a agradecer ao nosso grande deus Tupana, que esteve conosco e agora temos o reconhecimento de uma luta nossa. Estamos trabalhando, agora, para levar mais mulheres em abril, somando forças pra gente tomar os espaços que sempre foram nossos.
Regina, agora, os povos indígenas do Brasil vivem outro momento, de visibilidade e alcance em setores políticos importantes, assumindo papéis em ministérios, fundações e secretarias, principalmente mulheres. Como você analisa esse momento da história?
Pra mim, é motivo de alegria e comemoração! É uma visibilidade que temos juntamente com outras mulheres, as negras, as donas de casas, as ribeirinhas. Foi a nossa união que fez isso! Não foram só duas mulheres, foram todas as mulheres que abraçaram a causa e que amam nosso movimento de mulheres que conquistaram isso. Quem sabe agora não conseguimos minimizar um pouco essa roubalheira que anda lá nos poderes públicos. A mulher sabe o que falta em casa, ela sabe o que outras mulheres sentem, ela sabe onde o sapato aperta. Eu tô muito otimista.
Regina, gostaria que você me falasse um pouco da sua filha, a Samela Sateré. Ela é uma dessas lideranças que alcançou com luta seu espaço e hoje estampa capas de revistas falando sobre a vivência do seu povo.
Eu já estava desistindo, estava jogando a toalha. Eu disse para a minha filha ‘isso não dá para mim, a sua avó era guerreira, ela era uma pessoa que enfrentava e não queria saber se iria apanhar, se haveria prisão. Eu não tenho essa carne e essa associação está caindo’. Aí ela disse: ‘mamãe, eu vou terminar meus estudos e nós vamos conseguir reerguer a associação. Eu só quero que a senhora me apoie’. Eu vejo que a Samela vestiu a camisa da avó. Ela tomou a frente mesmo e eu tenho muito orgulho disso. Eu falo sempre para ela que agora é a vez deles. No tempo da minha avó era tempo do arco e da flecha e hoje em dia é da caneta, porque brigamos por dentro das leis. Eu fico preocupada com as redes sociais, mas é uma preocupação normal. As redes sociais são ferramentas que ela achou para denunciar e promover coisas boas também.
Olhando para trás, a respeito da sua trajetória, a pandemia e as expectativas que estamos vivendo neste momento, o que a senhora espera do futuro?
Só quero que Deus me dê muita saúde, sabedoria para nós continuarmos. Eu quero ajudar as pessoas, as mulheres, e eu quero voltar a fazer o projeto para as mulheres na aldeia. Quero trabalhar com plantas medicinais. Elas já pediram e estamos vendo como ajudar a fazer esse resgate das ervas medicinais, porque vimos que nessa pandemia foi necessário. Na nossa aldeia muitas plantas não estão mais sendo usadas e precisamos resgatar essa cultura. Além do artesanato e disso, nós queremos que a associação continue a andar e que seja mais ativa, como já foi um dia.
Esta reportagem faz parte do projeto Rede Cidadã InfoAmazonia, iniciativa para criar e distribuir conteúdos socioambientais produzidos na Amazônia.
Excelente entrevista! Os povos originários têm que ser vistos, ouvidos e atendidos.