Perfis bolsonaristas nas redes sociais trabalharam durante horas no Twitter para introduzir link com visão conspiratória militar sobre indígenas após visita de Lula aos Yanomami em Roraima.
Um artigo negacionista foi o link mais compartilhado no Twitter por bolsonaristas após o presidente Lula visitar as terras Yanomami para prestar solidariedade à etnia que vive uma crise humanitária . O texto foi originalmente publicado por Roberto Gama e Silva, um militar que morreu há dez anos, num jornal que deixou de circular, o Tribuna da Imprensa (leia mais abaixo).
A viagem de Lula até Roraima, estado onde está localizada a terra indígena, ocorreu um dia após o Ministério da Saúde declarar Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional na sexta-feira, 20, para conter a crise sanitária e humanitária. A tragédia tem raízes na invasão de garimpeiros no território. Os resíduos gerados pelo garimpo poluem as águas onde o povo pesca, degradam o solo onde podem coletar alimentos e põem em fuga os animais que poderiam ser caçados para comer. O garimpo traz, ainda, doenças infecciosas, como a malária, e a fome.
Como fazemos o monitoramento:
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pela InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
Inicialmente, como detectou o projeto Mentira Tem Preço, os bolsonaristas manifestaram confusão sobre o tema nos aplicativos de mensagens. Enquanto circulavam as fotos de indígenas desnutridos e em sofrimento, os bolsonaristas não tinham um discurso pronto para rebatê-las. Após a visita do novo governo a Roraima, porém, o texto negacionista do tal militar que já nem estava mais vivo foi resgatado no Twitter e compartilhado no mínimo quase 4 mil vezes por perfis que buscavam acusar Lula, “a esquerda”, “os venezuelanos”, “os indígenas” e “as ONGs” de criarem um factoide para prejudicar a imagem do governo Bolsonaro.
A forma como o link compartilhado chegou no Twitter mostra como funciona a mecânica bolsonarista nas redes para insinuar argumentos no debate público. O pico de multiplicação do link se concentrou na tarde de domingo (22) e, com menor intensidade, durante a segunda-feira (23). Desde terça (24), já havia sites jornalísticos resenhando o conteúdo do artigo.
Veja abaixo linha do tempo com o caminho da disseminação do artigo negacionista:
O Google Trends mostra a evolução das buscas pelo título do livro nos últimos sete dias:
A história do artigo negacionista baseado em um livro
O link compartilhado foi publicado pelo Ecoamazônia, site da Fundação para o Ecodesenvolvimento da Amazônia, que reproduz na íntegra artigos veiculados em diversas publicações, sob a observação de que o conteúdo é de responsabilidade de seus autores.
Mas, no final, quem é o militar que escreveu o artigo negacionista?
O artigo reproduzido pelo Ecoamazônia é de Roberto Gama e Silva (1932-2013), almirante reformado e candidato a vice-presidente de Enéas Carneiro em 1994. O texto foi publicado originalmente em 2012 no site do jornal “Tribuna da Imprensa”, cuja versão impressa deixou de circular em 2008. Gama e Silva nega a existência do povo Yanomami em seu artigo e, ainda segundo ele, a etnia teria sido criada por ONGs internacionais visando desmembrar o território brasileiro. Ele diz nunca ter ouvido a palavra “yanomami” durante a ditadura militar, quando trabalhou na região.
Por sua vez, o texto de Gama e Silva se baseia no livro “A Farsa Ianomâmi”, publicado em 1995 pelo coronel gaúcho Carlos Alberto Lima Menna Barreto – “de família ilustre”, observa Gama e Silva –, em reação à demarcação das terras Yanomami ocorrida em 1992. Na editora Biblioteca do Exército Brasileiro, ligada ao Ministério da Defesa, a obra está fora de catálogo. O texto de Gama e Silva chega a sugerir o uso da Lei de Segurança Nacional contra os servidores públicos que aprovaram a demarcação das terras para os Yanomami por “tentar submeter o território nacional, ou parte dele, ao domínio ou à soberania de outro país” – outra tese da extrema direita brasileira compartilhada nas redes – e por “tentar desmembrar parte do território nacional para constituir país independente”.
Além do link para o artigo, a capa do livro “A Farsa Ianomâmi” – com o desenho de um homem louro ocultado por trás de uma máscara indígena – também circulou no Twitter. No entanto, é muito difícil estimar o número de compartilhamentos quando o arquivo tem diversas versões e assume nomes diversos a cada vez em que é compartilhado.
Do livro à prática de governo
João Pedro Garcez, historiador, estudou a narrativa do livro em seu mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ele considera que a obra colocou os Yanomami no centro da visão conspiratória dos militares sobre os povos indígenas que já constava de manuais da Escola do Comando Maior do Exército. Pela peculiaridade dos Yanomami, que detêm o maior território indígena do país e vivem em uma região de fronteira, os militares passaram a ver a demarcação como uma ameaça à soberania nacional.
Durante a fase de pesquisas para sua dissertação, Garcez encontrou um post de Eduardo Bolsonaro no Facebook, em 2012, recomendando o mesmo artigo compartilhado no Twitter nesta semana. O post saiu do ar, no entanto. Em relação ao livro, o historiador identificou um outro leitor: o “guru” bolsonarista Olavo de Carvalho, que citava a obra para embasar sua acusação de que os ambientalistas seriam a nova roupagem do comunismo derrotado em 1989.
“O que me parece é que o governo de Bolsonaro colocou em prática o que se apresentava como tese no livro”, diz Garcez, lembrando que a doutrina militar vê os indígenas apenas como massa de manobra para interesses estrangeiros. No jornal “Diário do Nordeste”, o jornalista Lira Neto recuperou tudo o que Bolsonaro disse sobre os Yanomami em 30 anos de carreira parlamentar e todos os discursos que viu eram no sentido de extinguir a reserva.
“Nessa lógica, faria todo sentido, em um governo militar, deixá-los [indígenas Yanomamis] sem nenhum amparo, apoiando, inclusive, o garimpo ilegal (e todas suas consequências) em suas terras. O próprio livro do Menna Barreto é claro em destacar como eles [militares] vêem o garimpo de forma positiva, como uma força civilizadora para aquelas terras e pessoas”, diz Garcez.
‘Ianomamização’
Curiosamente, em sua obra, Menna Barreto atribui a “ianomamização” dos indígenas à fotógrafa suíça Cláudia Andujar, radicada no Brasil desde 1955. Na década de 1970, ela produziu ensaios fotográficos na floresta, revelando os Yanomami ao mundo e co-fundando a Comissão pela Criação do Parque Yanomami. Suas imagens foram o elemento central da edição histórica da revista “Realidade” sobre a Amazônia, em 1971.
Na época, os Yanomami eram considerados pela ditadura militar um empecilho à ocupação da Amazônia. Davi Kopenawa, que segue em atividade até hoje, foi o principal interlocutor de Andujar para compreender o pensamento Yanomami. Em 2019, as imagens de Andujar retratando a luta do povo indígena foram expostas pelo Instituto Moreira Salles.
O historiador André Gobi, que pesquisa na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a percepção pública da História na imprensa, observa que o artigo mais compartilhado pelos bolsonaristas em reação à solidariedade aos Yanomami apresenta todas as características do discurso negacionista.
“O negacionismo é sempre direcionado a grupos específicos, historicamente marginalizados”, diz. “No caso da questão Yanomami, existe a negação da crise, existe o grupo marginalizado (indígena), existe a criação das conspirações e dos inimigos (esquerda, estrangeiros), existe a tentativa de chancelar intelectualmente (o livro do militar ilustre) e a questão do relato (se não vi, não existe).”
O debate no Twitter e a análise da InfoAmazonia
Para que um argumento extrapole as redes fechadas criadas em aplicativos de mensagens para chegar ao debate público, é preciso que ele invada outras redes frequentadas pela população geral e dê a impressão de que “todo mundo está falando disso”. O objetivo é fazer com que o conteúdo seja descoberto por quem não havia sido exposto ao argumento.
Para isso, quanto mais engajamento, melhor. No Twitter, isso vem na forma de curtidas, respostas e retuítes. Até respostas negativas ajudam: cada vez em que há uma crítica direta a algo, o algoritmo do Twitter mostra a interação aos seguidores do usuário. Por isso, quem caça o engajamento tenta pegar carona em postagens muito compartilhadas de contas com muitos seguidores. Mas, para dar a impressão de popularidade ao assunto, essa “campanha” não pode ser tocada por apenas uma conta.
A maneira como o artigo negacionista se espalhou pelo Twitter é um bom exemplo de como o mecanismo funciona. Para não atrair denúncias de comportamento robótico, nenhuma conta multiplicadora chegou a tuitar mais de oito vezes e nenhuma conta alvo chegou a receber o link mais de três vezes.
A InfoAmazonia chegou aos links multiplicados na bolha bolsonarista a partir da análise do comportamento das interações coletadas em 635 mil tuítes que citavam a palavra “Yanomami” em todas as suas grafias na semana de 17 a 24 de janeiro.
No agregado das redes, as interações repetiram o padrão da “Bolhanaro”, com perfis bolsonaristas conversando sobre o assunto numa bolha à parte de todo o restante do debate, usando fontes próprias e interagindo com outros grupos apenas em situações de confronto.
A reportagem captou 3.110 perfis participando da onda, com 3.757 tuítes. São captados apenas os perfis abertos. Deles, os que mais multiplicaram os links além dos mencionados acima foram @iveteguedes1 (3.115 seguidores), @Oilas (533 seguidores), @Pudines_PF (482 seguidores). Todos postaram o link oito vezes, geralmente em resposta a perfis maiores que postaram reportagens sobre a penúria dos Yanomami.
Os perfis que mais receberam o link como resposta foram @alfapobre (30,6 mil seguidores), o do ministro @FlavioDino (979,9 mil seguidores) e o do senador @randolfeap (932,7 mil seguidores), além da jornalista @miriamleitao (3,1 milhões).
Análises do projeto Mentira Tem Preço também detectaram confusão entre os bolsonaristas nos aplicativos de mensagens. Após a visita de Lula, eles começaram a compartilhar notícias de sites bolsonaristas denunciando “farsa da esquerda” na acusação de que o governo anterior abandonou os Yanomami e declarações da ex-ministra Damares Alves dizendo que não houve omissão do governo.
Postagens da Funai foram recuperadas informando sobre os atendimentos às comunidades.
No YouTube, o Mentira Tem Preço detectou pouca atividade. O principal resultado foi um vídeo do deputado bolsonarista Gustavo Gayer, de Goiás, investigado pelo TSE. Ele acusa “o PT e a esquerda” de criar narrativas de miséria para ganhar poder.
Essa reportagem foi produzida em colaboração com o projeto PlenaMata, em parceria com a Sala de Democracia Digital da FGV ECMI. E faz parte do projeto Mentira Tem Preço, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.
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