Desmatamento em áreas protegidas da Amazônia cresceu 94% em quatro anos do governo Bolsonaro, impulsionado por projetos de infraestrutura e expansão do agronegócio, revela estudo inédito do ISA; fim dessa devastação passa por mais transparência em grandes empreendimentos
A partir de janeiro de 2023, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá que adotar nova postura frente a grandes projetos de infraestrutura e da expansão do agronegócio se quiser reverter o cenário de desmatamento na Amazônia, principalmente nos territórios já protegidos da floresta: Terras Indígenas, Unidades de Conservação e Territórios Quilombolas. Posicionamento esse que terá que reverter os estragos deixados pela atual gestão e rever os rumos tomados de gestões passadas do PT.
O alerta é do engenheiro agrônomo Antonio Oviedo, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA). Na nota técnica A Geografia do Desmatamento na Amazônia Legal, divulgada esta semana, pesquisadores do ISA apontam que o governo de Jair Bolsonaro (PL) representou “o maior retrocesso na proteção das áreas protegidas [na Amazônia] do século”.
Nos últimos quatro anos (2022-2019), o desmatamento nessas áreas cresceu 94%, se comparado com os quatro anos anteriores (2015-2018), boa parte em regiões “pressionadas pela abertura de estradas, grilagem de terras e implementação de obras de infraestrutura”, aponta a nota técnica.
Nas terras indígenas, “a omissão generalizada do Estado e o estímulo à ilegalidade ambiental resultaram em um aumento de 157% no desmatamento em quatro anos”, indica o documento.
Oviedo aponta como mais pressionadas as áreas de grilagem de terra para expansão agropecuária e as próximas de obras de infraestrutura. “Quando se abre uma nova estrada, ou uma nova rodovia, sabemos que o desmatamento vai ocorrer num raio de 5 a 10 km”, alerta.
Dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia por Satélites (PRODES) de 2022 mostram que 18,5% do desmatamento total na Amazônia legal ocorreu em áreas que estão sob proteção legal do Estado. Uma destruição que representa mais de 123 milhões de árvores derrubadas (214.131,07 hectares), segundo análise do ISA.
No caso das terras indígenas, 85% do desmatamento está concentrado em 20 territórios, de um total de 329 terras indígenas na Amazônia. Nas unidades de conservação federais, apenas nove, de 107 analisadas, concentram esse mesmo índice de desmatamento.
Megaprojetos
Entre os projetos com potencial impacto em territórios protegidos estão a Ferrogrão, ferrovia que prevê a ligação entre Sinop (MT) e Itaituba (PA) para escoamento de grãos pelo chamado Arco Norte; e a reconstrução da rodovia BR-319, entre Porto Velho (RO) e Manaus (AM), uma obra projetada na ditadura militar desengavetada pela gestão Bolsonaro à toque de caixa.
O projeto da Ferrogrão está paralisado no Supremo Tribunal Federal (STF) por uma liminar que questiona alterações nos limites do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará. A versão preliminar do estudo ambiental (EIA-Rima) apontou 40 impactos socioambientais negativos, como ameaças a áreas protegidas legalmente e riscos de contaminação dos recursos hídricos na região.
Já na área de influência de reconstrução da BR-319, estão 41 unidades de conservação e 69 territórios tradicionais onde vivem 18 povos indígenas. Nessa região, o desmatamento bateu recordes nos últimos anos e os planos do governo Bolsonaro para viabilizar a obra incluem a regularização fundiária de terras públicas com indícios de grilagem.
“Eu acredito que a BR-319 e a ferrovia Ferrogrão são projetos que esse governo novo terá que lidar. São obras que já têm uma certa demanda, especialmente do setor agropecuário. E o que a gente tem visto é que as grandes obras na Amazônia são feitas sem estudos de viabilidade ambiental adequados e sem o respeito à consulta prévia das populações locais”, avalia o pesquisador do ISA.
O anúncio de obras como a da BR-319, que corta o norte de Rondônia e o Amazonas, por si só, tem impulsionado a ocupação de áreas até então preservadas da Amazônia e dado início a um ciclo de destruição visto durante a ditadura militar que se repete.
Na área de influência da rodovia destacam-se, por exemplo, a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, devastada para criação de gado, e a Terra Indígena (TI) Karipuna, que registrou recorde histórico de desmatamento e queimada neste último ano.
Como parte desta política de destruição, a Resex Jaci-Paraná e o Parque Estadual (PES) de Guajará-Mirim tiveram seus territórios reduzidos para expansão agropecuária em maio de 2021. Ambos estão em uma área que compõe um corredor de proteção ambiental, junto com a TI Karipuna. A lei aprovada pela Assembleia do Estado foi considerada inconstitucional pela Justiça de Rondônia em novembro de 2021.
Indígenas isolados sob ameaça
Oviedo critica os métodos utilizados durante a atual gestão para o licenciamento de grandes obras na Amazônia: o cronograma de execução quase não respeita questões mais sensíveis que surgem com esses projetos e atropela o processo de consulta previsto em tratados internacionais e na própria legislação brasileira.
O pesquisador lembra a falta de proteção do território dos indígenas isolados no sul do Amazonas, na Terra Indígena Jacareúba-Katawixi, que está com a portaria vencida desde dezembro de 2021. A existência desse grupo foi desconsiderada no licenciamento das obras da BR-319.
“Essa terra indígena está na área de influência direta da BR-319, mas se faz vistas grossas e toca o processo de licenciamento. Esse é o modus operandi deste atual goveno”, emenda Oviedo.
O Ministério Público Federal (MPF) e lideranças indígenas apontam que o processo de consulta da obra conduzido pela Funai não ocorreu conforme prevê a Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ignorando não somente os isolados, mas diversas outras terras indígenas e comunidades tradicionais.
A defesa que a nova gestão do presidente Lula tem feito sobre a proteção da Amazônia cria a expectativa de processos mais democráticos e transparentes de discussão, espera Oviedo.
“No mínimo, se imagina um novo tom na discussão dessas grandes obras de infraestrutura. E essa mudança de postura passa pelo diálogo com as comunidades e também por um olhar diferente dos cronogramas de obra”, destaca o pesquisador.
É o que se espera para territórios com registros de povos isolados que ficaram totalmente vulneráveis na gestão Bolsonaro, como na Terra Indígena Ituna-Itatá, que tem sofrido pressão de um lobby para não reconhecer a ocupação tradicional e onde o desmatamento cresceu 303% nos quatro anos do governo Bolsonaro.
Às margens do rio Xingu, Ituna-Itatá sofreu forte ocupação de grileiros que levaram gado para o seu interior nos últimos anos. Em operação recente, a Polícia Federal apontou a existência de uma organização criminosa instalada no território, que ocupou o local na esperança de afrouxamento de sua proteção. Praticamente todo o território foi loteado com registro no autodeclarado Cadastro Ambiental Rural (CAR).
“Este resultado negativo para as áreas protegidas é fruto de um esforço persistente de desmonte das políticas de proteção ambiental e de combate ao desmatamento no governo de Jair Bolsonaro”, aponta trecho da nota técnica do ISA, que cobra maior ação dos órgãos ambientais e proteção aos povos que ocupam esses territórios com “mais transparência, participação pública e controle social”.
A entidade também cobra o cancelamento de CAR e de requerimentos para mineração em terras protegidas da Amazônia.
Evolução do desmatamento na TI Ituna-Itata, no Pará, onde grileiros abriram fazendas para criação de gado. Imagens Planet.
Apesar de não terem sido abordados no plano de governo e pouco discutidos durante a campanha eleitoral de 2022, uma nova postura política, que promete protagonismo na preservação da Amazônia, também terá que se posicionar sobre outros grandes empreendimentos como as novas hidrelétricas previstas no Rio Madeira (RO) e os grandes projetos de mineração para exploração de potássio, em Autazes (AM). Exemplos de temas delicados como estes, as obras de Belo Monte e as duas hidrelétricas no Madeira, construídas nos governos do PT, até hoje enfrentam problemas para mitigação dos impactos ambientais.
Projeto para exploração de potássio na bacia do Madeira terá impacto direto em terras indígenas na bacia do rio Madeira
Demarcação como prioridade
O Grupo de Trabalho (GT) da transição sobre a questão indígena, que trabalha para construção do prometido Ministério dos Povos Originários, elenca que a proteção dos territórios tradicionais deve ser prioridade na futura pasta.
“Primeiro passo é a demarcação daquelas terras indígenas que não têm nenhuma pendência e já poderão ser homologadas”, afirma Kerexu Yxapyry, coordenadora executiva da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).
O documento entregue ao coordenador técnico da transição, Aloizio Mercadante, pede a homologação de 13 novas terras indígenas e a revogação de uma série de medidas que têm afetado diretamente a vida dos povos indígenas.
Kerexu destaca que deverá ser priorizada a demarcação física de terras que já têm portarias reconhecidas para impedir as invasões, além de atenção especial aos povos em isolamento voluntário, ou de recente contato.
A líder destaca que, ao menos neste momento de tratativas no âmbito do GT, o diálogo facilitado com a futura gestão demonstra avanços significativos. “O que estamos fazendo aqui é uma construção coletiva, com povos de todas as regiões, de diferentes línguas, e que está verdadeiramente empenhado na construção dessas diretrizes. Um momento que realmente pode fazer a diferença”, afirma a liderança.
Após apresentar a primeira prévia do relatório do GT dos povos indígenas, a equipe de transição pediu ajustes, de ordem técnica, para a criação do novo Ministério dos Povos Indígenas, “mais especificamente sobre as funções dos cargos da nova estrutura”, segundo Kerexu.
O relatório do GT de Meio Ambiente também pediu a criação de seis novas unidades de conservação marinhas e terrestres.
Prometido por Lula, ainda em campanha, o novo ministério deve ser ocupado por uma liderança indígena. Em carta aberta, a Apib apresentou a sugestão de três nomes: Sonia Guajajara, Joenia Wapichana e Weibe Tapeba.
Até os 100 primeiros dias de governo, como medida imediata, o governo avalia a desintrusão de invasores em territórios protegidos legalmente.