Eleito deputado federal por São Paulo, ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro continua atacando o fundo e sugerindo irregularidades que nunca foram comprovadas sobre envolvimento com ONGs e aparelhamento pela esquerda.

Era maio de 2019 quando o recém-empossado Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles convocou uma entrevista coletiva para dizer, sem apresentar provas ou detalhes, que havia encontrado irregularidades nos contratos com ONGs com o Fundo Amazônia, criado em 2008 para financiar ações de prevenção e combate ao desmatamento. 

Ele também questionou os resultados no combate ao desmatamento de projetos financiados pelo Fundo. Naquele mesmo ano, o governo de Jair Bolsonaro (PL) despachou o fundo, à época de R$ 3.4 bilhões, para o congelador. Quatro anos depois e com quase 60% de aumento no desmatamento na Amazônia, o Supremo Tribunal Federal condenou o governo por congelar o Fundo e o obrigou a reativá-lo. 

Marcelo Camargo / Agência Brasil
Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro entre janeiro de 2019 a junho de 2021, eleito deputado federal por São Paulo nas eleições de 2022. Na imagem, o então ministro concede uma coletiva de imprensa após a Cúpula de Líderes sobre o Clima, em abril de 2021.

A três dias do segundo turno das eleições presidenciais de 2022, Salles, agora eleito deputado federal por São Paulo, retomou a campanha de desinformação contra o Fundo ao comentar a decisão do STF. A entrevista foi dada ao canal do YouTube da  Jovem Pan News, que tem quase 7 milhões de inscritos e em novembro foi desmonetizado pelo YouTube por divulgar desinformação nas eleições. 

“Nós propusemos a criação de um novo conselho, com uma governança melhor. Quem não permitiu a criação desse conselho nos novos moldes foi a Noruega, que não admitia qualquer alteração na regra do conselho anterior. Não pode o Brasil se curvar à vontade de um país estrangeiro”, disse no Jovem Pan News. Nos comentários, internautas agradeceram Salles por “esclarecer a situação” e pelas “análises educadas e competentes”. A questão é que Salles não contou a verdade sobre esse novo conselho.

Ele culpou a Noruega pela paralisação do Fundo quando, na verdade, partiu do governo federal, durante a gestão de  Salles como ministro, o decreto que levou ao abandono do Fundo pelo Brasil. O governo Bolsonaro  extinguiu, em junho de 2019, os dois conselhos que auxiliam na gestão do Fundo, o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA), formado pelos governos federal e estaduais e sociedade civil, que estabelecia diretrizes e critérios para investir os recursos do Fundo Amazônia; e o Comitê Técnico, composto por profissionais do Ministério do Meio Ambiente (MMA). 

Como fazemos o monitoramento:

O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.

Auditoria da Controladoria Geral da União, concluída em junho de 2022, revelou que Salles, então à frente do Ministério do Meio Ambiente, não apresentou uma proposta de recriação dos conselhos do Fundo Amazônia até o prazo legal estabelecido. “O Ministério poderia ter optado por recriar os Comitês sem alterações na sua governança, para posteriormente iniciar o processo de discussão sobre mudanças desejadas. Ao contrário, o Ministério optou por manter a extinção, sem apresentar qualquer proposta à Casa Civil, mesmo conhecendo os riscos apontados pelo BNDES”, conclui a CGU. 

Em relação às irregularidades que Salles dizia ter achado em contratos com ONGs citadas na abertura desta reportagem, a auditoria aponta que não foi possível identificar a metodologia usada na análise nem provas de malfeitos. “Há muitas informações incompletas sem conclusões evidenciadas sobre a efetiva identificação das fragilidades”, aponta a CGU.

Na prática, o fim dos conselhos inviabilizou a análise e a aprovação de novos projetos. “Dada a conjuntura atual, a Noruega não possui fundamento jurídico e técnico para realizar a contribuição anual do Fundo Amazônia planejada para este ano”, afirmou, em nota, a embaixada da Noruega, principal doadora, no Brasil. 

Ainda assim, em 2022 Salles continua atacando a governança do fundo. Diz que quem toca os recursos é um “bando de esquerdistas” do BNDES, “um bando de gente ligado a ONG”. 

“Essa turma aprovava um monte de projeto e aprovava os relatórios desses projetos de um jeito completamente mambembe”, diz ele ao programa Pingo nos Is, da Jovem Pan, no dia 28 de outubro, citando novamente supostas irregularidades sem dar detalhes ou provas. Ele chega a dizer que em 2008, quando o fundo foi criado, os governos dos estados da Amazônia eram “todos de esquerda”, sendo que, entre os nove governadores da época, apenas dois eram do PT e um do PDT.

O preço da desinformação

O resultado da campanha de desinformação de Salles sobre o Fundo Amazônia foi que houve uma paralisação total de suas operações desde 2019. Desde que Bolsonaro assumiu o poder, nenhum centavo foi liberado, e 56 projetos que estavam na fila para aprovação ficaram sem resposta ao longo de quatro anos. Apenas os que estavam na carteira do fundo antes disso continuaram recebendo os recursos.

Mesmo com dinheiro em caixa, o fundo deixou de investir bilhões de reais em projetos de combate ao desmatamento —mais precisamente, R$ 3,67 bilhões, segundo os números oficiais do BNDES referentes ao balanço encerrado em 31 de dezembro de 2021, o mais recente disponível ao público.

“Foi uma decisão política. Não houve falta de conhecimento. O governo Bolsonaro nunca teve nenhuma intenção de implantar nenhum plano de preservação ambiental. A visão que esse grupo tem sobre a floresta é a mesma que existia no Brasil desde o período colonial. A de exploração, em vez da manutenção do funcionamento dos ecossistemas naturais”, afirma Pedro Côrtes, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo.

Ele também afirma que o discurso criado por Bolsonaro e Salles contra o Fundo Amazônia não se sustenta. Uma das teses bolsonaristas é a de que o dinheiro era usado, por exemplo, para beneficiar ONGs estrangeiras na Amazônia. Outra é que os governos estrangeiros estavam querendo interferir na soberania da Amazônia brasileira. “O Fundo, desde o começo, tem sistemas de auditorias regulares. E todo ele é gerido pelo próprio BNDES”, explica Côrtes. 

As regras do Fundo da Amazônia são claras. Existe não apenas uma auditoria contábil, externa ao próprio banco brasileiro que administra o fundo, como uma outra feita para checar se o dinheiro recebido realmente cumpre com os seus objetivos. Ou seja, se ele está sendo usado em projetos, no mundo real, que colaboram de forma eficiente em reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Os projetos precisam concordar com as regras tanto do próprio fundo como com as metas estabelecidas pelo governo do Brasil.

Luiz Inácio Lula da Silva em visita à COP27, no Egito.

Os resultados do Fundo Amazônia

O Fundo Amazônia foi criado no dia primeiro de agosto de 2008, no segundo mandato de Luiz Inácio Lula da Silva, depois de ter sido negociado em 2007, na Conferência do Clima de Bali. Até 2020, 102 projetos foram apoiados e o desembolso foi de R$ 1,4 bilhão. 

Dos R$ 3,4 bilhões recebidos em doação até então, 93,8% vieram da Noruega, 5,7% da Alemanha e 0,5% da Petrobras. Do valor total, 61% foi destinado a projetos do próprio governo, ao contrário do que afirma Salles desde 2019. ONGs brasileiras receberam 38% e programas internacionais 1%.  

A transparência, afirma Côrtes, faz parte do DNA do Fundo Amazônia. No site do fundo, seus relatórios e as atas de todas as reuniões do COFA e do CTFA desde 2008 estão abertos para consulta e oferecem informações para quem quer acompanhar os processos de liberação de recursos. A gestão do mecanismo também engloba o acompanhamento sistemático dos projetos que estão sendo financiados. 

Um dos componentes atrelados ao fundo, por exemplo, é o “fomento às atividades produtivas sustentáveis”. No fim de 2021, o apoio a essas iniciativas representava 27% do valor da carteira de projetos do Fundo Amazônia, ou seja, R$ 479 milhões, segundo o Relatório de Atividades do Fundo de 2021

Segundo o mesmo documento, um dos objetivos do Fundo Amazônia é promover uma economia florestal de base sustentável valorizando produtos madeireiros e não madeireiros e serviços ambientais da floresta para criar uma alternativa econômica que viabilize a conservação da vegetação nativa. 

O conjunto de projetos apoiados nesse eixo abrange, por exemplo, atividades extrativistas, de beneficiamento (industrialização) de produtos extrativistas e da agricultura familiar, de segurança alimentar (produção de alimentos para consumo próprio), de artesanato e de turismo de base comunitária. 

Entre os produtos apoiados estão a borracha (látex), sementes, artesanato, farinha de mandioca, cacau, castanha-do-brasil, turismo, madeira, mel, resina, sabonetes, óleos, babaçu e açaí. 

Valdemir Cunha / Greenpeace
Um sagui-de-Manicoré (Mico manicorensis) encontrado em uma floresta próxima ao Rio Manicoré, no sul do Amazonas, na Amazônia. Até 2020, o Fundo Amazônia apoiou 102 projetos e o desembolso foi de R$ 1,4 bilhão.

Além do “fomento às atividades produtivas sustentáveis”, os outros pilares do fundo são “monitoramento e controle”, “ordenamento territorial” e o de “ciência, inovação e instrumentos econômicos”.

Dentro desses conjuntos de projetos, existem vários já finalizados, com resultados de eficiência auferidos pela gestão do fundo, como também mostra o relatório de atividades. Entre eles, por exemplo, o feito com comunidades tradicionais, pequenos agricultores, quilombolas e indígenas no interior do Pará, na região de influência da estrada BR-163 no Baixo Amazonas. São comunidades que estão organizadas, tentando minimizar os impactos da pavimentação ainda inacabada da estrada no cotidiano delas. A via, apesar de ser um importante eixo de transporte rodoviário para a região, também vem gerando aumento do desmatamento e de outros impactos socioambientais na região.  

Quem é Ricardo Salles

Formado em Direito pelo Mackenzie, Ricardo Salles é filiado ao Partido Liberal. Em janeiro de 2023, assume o mandato de deputado federal por São Paulo. Foi ministro do Meio Ambiente entre 2019 e 2021, no governo Bolsonaro. Antes disso, ocupou o cargo de secretário do Meio Ambiente de São Paulo entre 2016 e 2017. 

Em 2006, fundou o Movimento Endireita Brasil, grupo que defende o liberalismo econômico. Em março de 2021, uma decisão do TJ-SP reverteu a condenação por improbidade administrativa de Salles, que havia sido proferida em Primeira Instância. A decisão saiu após o placar de 4 a 1 a favor de Salles. Os desembargadores anularam a sentença de 2018. O político era acusado de modificar mapas elaborados pela USP em um plano de manejo estadual para a várzea do Tietê feito pela Fundação Florestal em 2016.


Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.

A autorização para republicação do conteúdo se dá mediante publicação na íntegra, o Mentira Tem Preço não se responsabiliza por alterações no conteúdo feitas por terceiros.

Fala - Histórias para não esquecer
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