Reportagem do InfoAmazonia percorreu pontos do comércio ilegal de mercúrio na fronteira entre Bolívia e Brasil, onde o metal é usado ilegalmente nos garimpos da Amazônia para extração de ouro. Após a Convenção de Minamata, Bolívia se tornou o maior importador mundial de mercúrio, mas estima-se que metade seja contrabandeado para os países vizinhos, incluindo o Brasil, que zerou as importações legais da substância para uso na mineração.

A Comercial Bryan tem a típica aparência de uma loja de fronteira, com uma infinidade de opções que vão do tradicional cama, mesa e banho, a eletrônicos, perfumaria e roupas. Com o câmbio quase sempre favorável, a loja atrai brasileiros em busca de preços baixos para o município de Guayaramerín, na Amazônia boliviana. Do outro lado do rio Mamoré, Guajará-Mirim, a cidade brasileira que viveu a riqueza milionária e fugaz do ciclo da borracha no início do século passado, atualmente, lembra mais os cenários de filmes de velho-oeste. Em qualquer esquina é possível encontrar carros brasileiros abastecendo o tanque com galões de gasolina contrabandeada do país vizinho. Caminhões, carros e caminhonetes encostam ao longo da margem do rio para carregar um pouco de tudo que atravessa a fronteira, ignorando o posto da aduana da Receita Federal.


A facilidade para cruzar a fronteira em Guajará-Mirim também atende a alta demanda por mercúrio : Altamente tóxico, o metal é único em estado líquido na temperatura ambiente. Sua alta densidade é capaz de aglutinar as menores partículas de ouro, o que forma uma amálgama e facilita a extração do minério nos garimpos ilegais da Amazônia brasileira.

As vitrines não mostram, mas o comércio clandestino de mercúrio do lado boliviano está espalhado por diversos lugares, como na Bryan, que negociou mais de 100 quilos do mercúrio, por cerca  de R$ 220 mil, no intervalo de um mês em que nossa reportagem passou pela loja, entre agosto e setembro deste ano.

Vendedor boliviano comenta
que trabalha há oito anos com mercúrio

Ourivesarias : Especialistas em metais preciosos (especificamente prata e ouro), na fabricação de joias e ornamentos , lojas de produtos de beleza e casas particulares também negociam o metal do lado boliviano. Todos com uma certa discrição. “Eu vendo [mercúrio] há oito anos na fronteira. Com certeza, eu tenho o material”, nos contou um vendedor de Guayaramerín com quem trocamos mensagens.

Não é difícil contrabandear o mercúrio da Bolívia para o Brasil. O vendedor informou que consegue entregar em Porto Velho, capital de Rondônia, a 329 km da fronteira com a Bolívia. Mas pediu para fechar negócio pessoalmente em Guayaramerín, com pagamento em espécie (em reais ou bolivianos, a moeda do país). O preço:  R$ 50 mil por um cilindro de 34,5 quilos de mercúrio. Quando o procuramos novamente para esta reportagem, ele não quis nos dar entrevista.

Nossa reportagem teve fácil acesso ao mercúrio ilegal vendido na Bolívia (Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia)

O metal altamente tóxico é usado em sua forma líquida no processo de extração de ouro nos garimpos. O resíduo do mercúrio contamina o meio ambiente e afeta populações que vivem ou consomem alimentos nas regiões garimpeiras (ver abaixo), podendo causar a doença de Minamata, uma síndrome neurológica provocada pelo envenenamento por mercúrio. 

A doença foi identificada no Japão na década de 1950, na cidade de Minamata, província de Kumamoto, onde cerca de 5.000 moradores foram intoxicados, muitos ficaram com sequelas graves e mais de 900 pessoas morreram.

Fotos: Fábio Bispo/InfoAmazonia
Nas margens do Rio Mamoré, o fluxo de pessoas e mercadorias é praticamente livre entre Brasil e Bolívia

Desde a assinatura da Convenção de Minamata, em outubro de 2013, quando mais de 140 nações —incluindo a própria Bolívia— se comprometeram a reduzir o uso de mercúrio, adquirir o mercúrio legalmente no Brasil se tornou praticamente impossível – o país não produz o metal líquido. Estados Unidos e países da Europa também suspenderam exportações após o tratado, enquanto Brasil, Peru e Colômbia registraram queda expressiva nas importações. 

É nesse cenário que a Bolívia surge como principal importador mundial de mercúrio, ignorando as metas do acordo para redução do seu uso e se valendo de brechas do tratado que permitem a continuidade das importações, inclusive para o uso em pequena mineração. Em 2020, o país foi  o destino de 75% de todo o volume das importações na  América do Sul. 

Dados do Ibama, obtidos via Lei de Acesso à Informação, mostram que, pelo menos desde 2020, não há registro de importação de mercúrio para uso na mineração no Brasil. O país diminuiu as importações legais a partir de 2014, com uma redução média de cerca de 50% até que, em 2021, o Brasil zerou a importação de mercúrio. Por sua vez, a Bolívia, um dos poucos países que não restringiu as transações internacionais de mercúrio, aumentou o volume de importação do metal em mais de 2.000% desde 2013, apontam dados compilados pela Chatham House na plataforma Resource Trade Earth. Estima-se que até metade desse mercúrio seja desviado para garimpos ilegais no Peru e Brasil.

A explosão de novos garimpos na Amazônia brasileira a partir de 2013 revela que, mesmo zerando a importação legal, a demanda por uso de mercúrio para a extração de ouro tem sido atendida.

Desde a Convenção de Minamata (2013), a área ocupada pelo garimpo de ouro na Amazônia brasileira cresceu mais de 90%, segundo dados da rede MapBiomas, e passou de 79 mil hectares para 151 mil (ha) de área ocupada em 2021. No mesmo período, a área da mineração industrial de ouro cresceu cerca de 20% no bioma.

O Pará, onde estão as terras indígenas (TIs) dos povos Kayapó e Munduruku, é um dos estados mais impactados pelo garimpo predatório à base de mercúrio, onde a busca pelo minério promove devastação ambiental e invasão de terras indígenas e áreas protegidas da floresta. Na TI Munduruku, o garimpo cresceu mais de 700% desde 2013, passando de 263 hectares de área ocupada para 2.430 (ha).

A contaminação por mercúrio que afeta os povos indígenas da floresta é retratada no documentário “Amazônia, a Nova Minamata?”, do diretor Jorge Bodanzky. O filme mostra a situação vivida pelos Munduruku do médio e alto Tapajós com a contaminação por mercúrio e compara com o caso de Minamata, no Japão.

O controle sobre a importação, o uso e o comércio de mercúrio no Brasil é atribuição do Ibama. Apesar da alta regulação do órgão, o minerador paraense Marcos Flexa Saita usa a internet para anunciar a venda de mercúrio ao preço de R$ 32 mil a garrafa com 34,5 kg. “Consigo a quantidade que você quiser”, disse em troca de mensagens via WhatsApp, sem saber que estava conversando com nossa equipe, reforçando que faz a entrega do mercúrio pessoalmente.

O minerador paraense  Marcos Flexa Saita vend e mercúrio ao preço de R$ 32 mil a garrafa com 34,5 kg

O negociador é irmão de Wagner Flexa Saita, um dos donos da Midas Metais,  denunciado em 2021  por envolvimento no desvio de cargas de ouro ilegal. A Midas Metais também é citada em ação do Ministério Público Federal (MPF), acusada de comercializar ouro ilegal em Itaituba, Pará, na região que concentra maior área de garimpo do país.

Em sua página no Facebook, Marcos também negocia áreas de garimpo, oferece serviço de projeção geológica e projetos para instalação de garimpo e pequena mineração: tudo ilegal.

Anúncio de venda de mercúrio em uma página no Facebook

Quando, por telefone, a reportagem se identificou como InfoAmazonia, Marcos Flexa negou a venda de mercúrio na internet e nos garimpos do Pará. Após a conversa, ele retirou o anúncio da internet. Wagner Flexa não quis responder os questionamentos da reportagem. 

A nossa reportagem também tentou contato com a dona do Comercial Bryan, que inicialmente nos confirmou a venda de mercúrio na loja. Mas ela não respondeu aos pedidos de entrevista.

Cooperativa de garimpeiros vende mercúrio em Rondônia

O mercúrio que atravessa a fronteira brasileira com a Bolívia chega camuflado em garrafas pet, tubos de desodorante e outros frascos pequenos, que são transportados em fundos falsos de porta-malas ou misturados com mercadorias. O primeiro destino dessa carga é Porto Velho. A capital de Rondônia está cercada por garimpos e conta com a logística do já contaminado rio Madeira e das BRs 319 e BR-230, que facilitam a chegada do mercúrio no Pará e sul do Amazonas.

As autoridades consideram que as penas para quem atravessa a fronteira com o metal não suficientes. “Essa fiscalização não é fácil, e os contrabandistas são muito ágeis e sabem que a lei brasileira para este tipo de crime é branda, que considera esse tráfico de mercúrio como contrabando”, nos contou o tenente-coronel Jairo Alves.

Essa fiscalização não é fácil, e os contrabandistas são muito ágeis e sabem que a lei brasileira para este tipo de crime é branda

Jairo Alves, o Tenente-coronel, comandante do Batalhão de Fronteira da Polícia Militar de Rondônia.

Em casos flagrados na fronteira, os criminosos respondem por contrabando e violação às normas ambientais de controle da substância tóxica.

“Quando fazemos a autuação do uso de mercúrio no garimpo fica configurado crime ambiental, por exemplo, e a penalização é mais pesada”, explica o comandante, que atua em operações de combate ao comércio do metal na fronteira.

Rondônia é o estado que mais registra apreensão de mercúrio no Brasil. Dados da Polícia Federal mostram que, desde 2016, foram 79 ocorrências envolvendo apreensão de mercúrio. Pelo menos 62 casos (78%) ocorreram em Porto Velho. 

Foto/Divulgação PF
Fotos de mercúrio ilegal apreendido pela Política Rodoviária Federal

A Cooperativa de Garimpeiros do Rio Madeira (Coogarima)  comercializa o mercúrio livremente em Porto Velho. Por telefone, facilmente confirmamos a disponibilidade do metal, mas, após informarmos que o objetivo do nosso contato era para uma reportagem, a diretoria da organização não quis conceder entrevista nem dar detalhes sobre o comércio e a origem do mercúrio. A Coogarima possui 98 áreas para mineração no rio Madeira requeridas na Agência Nacional de Mineração (ANM), em 30 desses projetos possui autorização para uso de mercúrio. 

No trecho do rio em Rondônia, o é proibido desde 1991. Mesmo assim, a mineração ocorre ilegalmente com uso de mercúrio e de forma crescente nos últimos anos. 

Em janeiro de 2021, Marcos Rocha (PL), governador de Rondônia, chegou a liberar as balsas de garimpo no rio Madeira por decreto. A liberação durou pouco, e em julho deste ano o Tribunal de Justiça decidiu que o decreto é inconstitucional. No pedido julgado, a procuradoria de Justiça apontou que o uso de mercúrio no garimpo “diverge do compromisso internacional do Estado Brasileiro na Convenção de Minamata e de disposições legais que regulam o uso de mercúrio e de cianeto na extração de minério”.

Um relatório da Marinha produzido durante fiscalizações nos rios amazônicos também identificou uso de mercúrio trazido da Bolívia para os garimpos brasileiros. 

Trecho de relatório da Marinha aponta que mercúrio usado nos garimpos brasileiros tem origem na Bolívia e Peru

Em Porto Velho, também trocamos mensagens com outro fornecedor que afirma abastecer “quase todos os garimpeiros de Rondônia e Pará” e que a venda mínima é de 34,5 quilos, o que enche uma garrafa pet de dois litros, por R$ 56,5 mil.

O valor pode variar de acordo com o câmbio. O homem é torneiro mecânico e produz peças para máquinas de garimpo, mas não quis conceder entrevista para falar sobre o comércio de mercúrio.

Reprodução de conversa
Por Whatsapp, vendedor em Porto Velho diz fornecer mercúrio para “quase todos os garimpeiros de Rondônia e Pará”

A rota sinuosa até a fronteira com o Brasil

Em 2020, a Rússia se destacou como principal fornecedor de mercúrio para a Bolívia, com fornecimento de 48 toneladas do metal (35% das importações), desbancando o México, que forneceu 41 toneladas (30%), mas que segue entre importante fornecedor, já que também é produtor de mercúrio. O restante importado pela Bolívia em 2020 veio do Tajiquistão (14%), Vietnã (9,5%) e Turquia (6,3%). A Rússia não aparecia na lista de exportadores de mercúrio para a Bolívia até 2019. Especialistas apontam uma triangulação entre países produtores de mercúrio e compradores de ouro envolvidos no comércio global de mercúrio.

A Rússia, por exemplo, passou a importar mercúrio dos Emirados Árabes, que têm grande interesse em ouro refinado. Mas os Emirados Árabes não produzem mercúrio e buscam o metal no Tajiquistão, maior produtor mundial.

O governo boliviano tem se negado a fornecer informações atualizadas sobre a importação de mercúrio. Segundo organizações independentes, uma vez em território boliviano, o trânsito do metal ocorre livremente nas cidades auríferas, onde ocorre o comércio paralelo.

A Defensoria Pública da Bolívia disse à nossa reportagem que “terceiros intermediários que adquirem o mercúrio diretamente dos importadores podem ser os que comercializam esse insumo em outras localidades da Bolívia, como Guayaramerín, na fronteira com o Brasil”.

Foto Fábio Bispo/InfoAmazonia
Ponto de desembarque em Guayaramerín, Bolívia

Na  região garimpeira boliviana de Riberalta, a 100 quilômetros da fronteira, comerciantes de mercúrio afirmaram aos pesquisadores do CEDIB também ser ponto de compra dos brasileiros. Esta seria a principal rota do mercúrio até o Brasil. 

Reprodução
Documento encaminhado às Nações Unidas relata a questão do mercúrio na Bolívia. Investigação da CEDIB identificou comércio de mercúrio para brasileiros na região mineira de Riberalta, a 100 km da fronteira com o Brasil

Uma das maiores compradoras de mercúrio em Riberalta é a Asobal (Associação de Balseiros do Rio Madre de Dios), uma organização formada por 300 empresários donos de 400 balsas de garimpo. Nossa reportagem conversou com garimpeiros que trabalham nessas balsas e eles afirmam que qualquer pessoa pode comprar mercúrio na Cooperativa.

Agendamos entrevista com a diretoria da Asobal, no prédio da cooperativa em Riberalta, mas quando chegamos ao local inspecionaram nossas credenciais de jornalista e a conversa foi cancelada.

Link para estudo sobre o uso de mercúrio na mineração boliviana. (Reprodução)

“Pelo menos desde 2015 que se tem conhecimento do comércio de ouro, mercúrio e diesel na fronteira de Guayaramerín”, aponta o sociólogo Oscar Campanini Gonzalez, diretor do Centro de Documentação e Informação da Bolívia (CEDIB) e autor de estudos sobre o uso de mercúrio na mineração boliviana. 

Apesar de signatário da Convenção de Minamata, o governo boliviano ainda não apresentou um plano nacional de ação para mitigação do uso de mercúrio na pequena mineração, conforme prevê o tratado. O documento deveria ter sido apresentado em maio deste ano à Secretaria Executiva da Convenção de Minamata. 

Björn Beeler, coordenador da Rede Internacional de Eliminação de Poluentes (IPEN), que acompanha o cumprimento da Convenção de Minamata com atuação em mais de 100 países, avalia que o principal beneficiado com a falta de rigor sobre o comércio de mercúrio é a exploração mundial de ouro que foi “capaz de esconder e obter exatamente o que queria do tratado, o livre fluxo de mercúrio para mineração de ouro”.

Se o mercúrio é comercializado livremente, não há controles para conter a contaminação por mercúrio e a violação dos direitos humanos

Björn Beeler, coordenador da Rede Internacional de Eliminação de Poluentes (IPEN)

Em conjunto com comunidades próximas ou com relações direta com a mineração, incluindo povos indígenas e ribeirinhos na Amazônia brasileira e boliviana, o IPEN tem contribuído para a identificação científica dos casos de contaminação por mercúrio. Beeler indica existirem interesses que prejudicam comunidades tradicionais sob o argumento de defender a subsistência de pequenos garimpeiros. “Se o mercúrio é comercializado livremente, não há controles para conter a contaminação e a violação dos direitos humanos”, completa.  

Fabio Bispo/InfoAmazonia
Travessia do Rio Mamoré

Na Bolívia, onde a mineração corresponde a 6% do PIB, o poder do Estado tem demonstrado pouca força política para cumprir os termos da Convenção de Minamata. Pelomenos 84% do mercúrio importado no país tem como uso a mineração, uma pequena parcela vai para indústria química (1,4%) e laboratórios (0,7%). 

Chama a atenção a quantidade de empresas sem qualquer ligação com uso de mercúrio, como lojas de ferragens, de roupas e eletrodomésticos, que ficam com quase 10% do mercúrio importado.

A lei ambiental boliviana de 1995 regula o manejo de substâncias perigosas, incluindo mercúrio, e exige autorizações especiais para o uso, transporte, armazenamento e comércio, mas, na prática, é totalmente ignorada.

“Infelizmente não há ações efetivas por parte do governo boliviano. Não há vontade de emitir um regulamento específico de controle de importação. Não há mecanismos obrigatórios e operacionais de monitoramento (rastreabilidade). As ações regionais e bilaterais não avançaram significativamente no controle desse comércio ilegal”, explicou Gonzalez.

Infelizmente não há ações efetivas por parte do governo boliviano.

Oscar Campanini Gonzalez, diretor do Centro de Documentação e Informação da Bolívia (CEDIB)

Em março deste ano, a embaixada brasileira em La Paz comunicou o governo federal em Brasília sobre o contrabando de mercúrio para o Brasil e sobre as dificuldades políticas do país vizinho para fazer o controle das importações e do comércio interno. 

Mas até hoje nenhuma medida específica para conter o contrabando de mercúrio da Bolívia foi adotada pelo governo brasileiro. Enviamos perguntas ao Ministério da Justiça, mas não obtivemos respostas.

Relator da ONU quer acabar com mercúrio em garimpos

O relator especial das Nações Unidas sobre Tóxicos e Direitos Humanos, Marcos Orellana já classificou a questão da Bolívia como “problema regional” e, em julho deste ano, propôs mudanças ao texto da Convenção de Minamata para proibir o comércio internacional de mercúrio e banir o uso para mineração de ouro em pequena escala em até cinco anos.  

“A Bolívia afirmou que está preparando um plano de ação nacional para reduzir e eliminar o uso de mercúrio. No entanto, até o momento, estou preocupado com a falta de progresso tangível da Bolívia nessa direção”, afirmou Orellana.

Espero que países como o Brasil, que têm o problema da mineração artesanal que utiliza mercúrio em seu território, tomem a liderança necessária para promover a reforma da Convenção de Minamata e comecem a acabar com as graves violações de direitos humanos

Marcos Orellana, relator especial das Nações Unidas sobre Tóxicos e Direitos Humanos

“Espero que países como o Brasil, que têm o problema da mineração artesanal que utiliza mercúrio em seu território, tomem a liderança necessária para promover a reforma da Convenção de Minamata e comecem a acabar com as graves violações de direitos humanos sofridas por pessoas expostas à contaminação com este metal perigoso”.

No Brasil, o próprio garimpo que funciona atualmente na Amazônia já não carrega mais a característica artesanal, com o uso de materiais rudimentares e de pequena escala. Com apoio de empresários da cadeia do ouro e um forte lobby em Brasília, a atividade alimenta uma indústria gigantesca, que opera maquinário pesado e de alto valor econômico. 

O antigo garimpeiro, que usava bateia para tirar o próprio sustento, virou funcionário nesses novos garimpos, onde as condições de trabalho podem ser as piores possíveis, incluindo relatos de trabalhos análogos à escravidão e emprego de mão de obra infantil.

Na pesquisa-denúncia “Cerco do Ouro — Garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, produzido para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, os pesquisadores Luísa Molina e Luiz Jardim Wanderley narram a mudança de perfil do garimpo brasileiro nos últimos anos e como essa estrutura se aproximou da influência política e de grupos criminosos. 

“Trata-se de uma garimpagem altamente mecanizada e amparada por uma rede de atores que financiam as caríssimas máquinas e todo o complexo esquema de infraestrutura e logística”, diz trecho do documento que foi entregue às autoridades brasileiras.

Fábio Bispo/InfoAmazonia.
Garimpo no sul do Amazonas operado com maquinário de alto valor

O atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, que não conseguiu se reeleger e deixa o cargo em 2023, foi um forte defensor do garimpo na Amazônia e ainda tenta aprovar uma lei, que tramita no Congresso em regime de urgência (PL-191/2020), para liberar mineração em terras indígenas.

Indígenas e ribeirinhos na Amazônia estão contaminados

Em maio deste ano, a Infoamazonia mostrou como a contaminação por mercúrio já afeta os povos Munduruku, onde a população apresenta sintomas neurológicos típicos da doença de Minamata, como alteração da atenção, redução da capacidade de concentração e queixas de adormecimento nas mãos e nos pés. 

A poluição por mercúrio é ampliada através da cadeia alimentar aquática, resultando em muitas espécies de peixes predadores acumulando níveis perigosos de mercúrio que passam para as pessoas que os consomem. 

O envenenamento por mercúrio afeta os rins e o coração e causa danos cerebrais permanentes. As mulheres em idade fértil estão especialmente em risco, uma vez que a exposição ao mercúrio está ligada a defeitos congênitos e danos ao feto em desenvolvimento. 

Ilustração: Ana Clara Moscatelli
Ciclo do mercúrio do garimpo à pesca

Atualmente, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a mineração de ouro em pequena escala é o maior contribuinte para a poluição por mercúrio em todo o mundo.

Estudos da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) publicados em 2021 identificaram que todos os indígenas de três aldeias da Terra Indígena Sawré Muybu, da etnia Munduruku, tinham mercúrio no organismo. Mais da metade, 60%, apresentou nível tóxico de mercúrio acima do limite tolerado pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Garimpo Quatá, localizado em Jacareacanga, nas margens da Transamazônica, foi aberto em apenas três meses – Foto: Julia Dolce/InfoAmazonia

O Brasil assinou a Convenção de Minamata em 2013, mas o governo brasileiro só ratificou o tratado em 2018. Desde 2020, tramita no Congresso brasileiro projeto de lei (PL 5490/2020) para criação do Plano Nacional de Erradicação da Contaminação por Mercúrio.


Esta reportagem foi produzida em parceria com o documentário “Amazônia, a Nova Minamata?”, de Jorge Bodanzky, com apoio da Ocean Films, Films4Transparency (F4T) e Journalists 4 Transparency (J4T). E também tem o apoio do Report for the World, uma iniciativa do The GroundTruth Project.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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  1. Excelente reportagem, só através dela, pessoas como eu, que vive na capital de São Paulo, consegue entender o que acontece nessa região. O Governo Lula terá um grande desafio, porque esse desgoverno atual não moveu uma palha

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