No estado com maior demanda de titulação de terras quilombolas do país, governador erra ao dizer que vai regularizar territórios: para que as comunidades tenham direito à terra garantido, é preciso demarcar.
Já na pré-campanha para a Presidência da República, em 2017, Jair Bolsonaro (PL) deixou bem claro que “não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou pra quilombola”. Em quatro anos, nenhum território foi demarcado.
Para se contrapor ao discurso do presidente, o governador eleito, Carlos Brandão (PSB) — que então ocupava o cargo no lugar de Flávio Dino (PSB), que se licenciou para disputar uma vaga no Senado—, afirmou que estaria “regularizando 80 quilombos” (terras ocupadas por remanescentes das comunidades negras dos quilombos) e que, ainda em 2022, chegariam a 100.
Para cumprir a promessa até o final deste ano, diz Rafael Silva, advogado da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o governo Brandão teria que titular, em três meses, 89 territórios —mais do que foi titulado em quase três décadas. “A titulação tem sido um instrumento imenso para ganhos políticos, com todo o marketing envolvido nisso”, diz.
O Maranhão é o estado que tem a maior demanda por titulação de terras quilombolas do país: 415 dos 1.801 processos administrativos registrados no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), segundo a CPT.
Nos governos de Flávio Dino (PSB) —de 2015 a 2022—, dos quais Brandão foi vice, apenas 11 territórios quilombolas foram titulados pelo Iterma (Instituto de Colonização e Terras do Maranhão), vinculado à Secretaria de Estado de Agricultura Familiar (SAF). Desde que foi criado, em 1995, o órgão realizou 68 titulações de territórios quilombolas no estado.
Como fazemos o monitoramento:
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
Brandão também errou ao usar o termo regularizar, explica Diogo Cabral, pesquisador do Mestrado em Desenvolvimento Socioespacial e Regional (PPDSR) da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). “As comunidades não estão irregulares. Ele misturou conceitos jurídicos importantes, quis dar a impressão de que garantiu acesso à terra, o que não é verdade”, afirma.
Quanto à estimativa de regularizar mais de cem territórios quilombolas até o final deste ano, Cabral se mostra cético. “Não serão tituladas. No máximo, serão certificadas. A política fundiária do governo tem sido omissa e contribuiu para a manutenção de graves conflitos no Maranhão.” Em 2021, 43 dos 97 conflitos por terra (44%) registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) se deram em áreas quilombolas.
Procurada, a equipe de Carlos Brandão não respondeu até a publicação desta reportagem.
“O título mesmo, esse aí não chegou”
“Existe a política de incentivo, existe a política de reunião, agora o título mesmo, esse aí não chegou”, diz Ivo Fonseca, liderança da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq – Maranhão).
Sobre o status da terra, Cabral explica que existe uma diferença significativa entre identificar ou certificar e titular um território. “Titular significa expedição de um título de propriedade coletivo, enquanto identificar significa expedição de uma certidão de existência de uma comunidade.”
A titulação é uma ferramenta jurídica. “A falta de titulação fragiliza demais os quilombos e as comunidades tradicionais em geral, pois encoraja avanços sobre territórios, especialmente por grileiros e ruralistas”, ressalta Silva.
Fonseca, da Conaq, explica que o governo de Dino criou políticas públicas voltadas aos quilombolas, mas que a principal delas, a titulação de terras, está aquém do esperado. “Existiu a política de incentivo, a política da cultura, incentivo à agricultura… Mas nós queremos política estruturante. O governo ainda está muito genérico, muito superficial.”
Quem titula as terras quilombolas?
As comunidades quilombolas têm o direito à propriedade de suas terras reconhecido pela Constituição. No Brasil, a titulação de território quilombola é dever da União, que atua por meio da Fundação Cultural Palmares (que emite certificação de identidade étnica coletiva) e do Incra, que elabora estudos e levantamentos sobre identificação e delimitação territorial quilombola.
Alguns estados brasileiros, como o Maranhão, têm suas próprias normas e órgãos específicos para regular terras de comunidades quilombolas localizadas totalmente ou em parte em terras públicas estaduais.
Desde 2003, quando foi editado o Decreto 4.887, que define as etapas até a titulação de terras quilombolas, apenas seis quilombos receberam titulação da União. Em nenhum dos casos a área total foi titulada.
“Há casos de quilombos que receberam título com área de apenas 5% do território”, aponta Rafael. “É importante observar que cada um desses processos administrativos contém um conjunto de comunidades que integram um mesmo território quilombola. Portanto, são bem mais de mil comunidades quilombolas esperando titulação.”
A assistente social Brígida Rocha, agente pastoral da CPT-MA, explica que a atual política de titulação adotada pelo governo do Maranhão não foi debatida com entidades e lideranças quilombolas. Além disso, a metodologia utilizada gera a individualização dos territórios, que são coletivos. Por causa da demora da titulação realizada pelo órgão federal (Incra), as comunidades acabam acionando a autarquia estadual, o Iterma.
“[Os quilombolas] estão cansados de aguardar os procedimentos do Incra, aí acham que é bom aceitar o método que o estado tem ofertado, porque é um método bem mais rápido. Só que as comunidades passam a ficar com espaços individualizados, sendo que, nesses territórios quilombolas, o rio é para todos, as árvores, todas as coisas são de uso comum. Fazer como loteamento dificulta os modos de vida”, pontua Rocha.
Quem é Carlos Brandão?
Carlos Brandão (PSB) tem 64 anos, é médico veterinário, empresário e político. Assumiu o cargo de governador do Maranhão em abril de 2022 após ser vice-governador de Flávio Dino (PSB) entre 2015 e 2022. Natural de Colinas (MA), cidade localizada a 437 km de São Luís, Brandão entrou na vida pública em 1990, quando era filiado ao extinto PFL (Partido da Frente Liberal) e foi secretário-adjunto de Estado do Meio Ambiente do governo Edison Lobão (PFL).
Em seguida, foi eleito deputado federal pelo PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) por dois mandatos consecutivos entre 2007 e 2014, licenciando-se para assumir o cargo de vice-governador do estado. Em 2022, após ser eleito, declarou seu apoio a Lula para o segundo turno da eleição presidencial.
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.
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