Neidinha Suruí, indigenista e uma das produtoras responsáveis pelo documentário “O Território”, que narra a luta do povo Uru-eu-wau-wau, fala em entrevista sobre o longa, sua experiência como ativista e os riscos das invasões nos territórios indígenas

Nascida no final dos anos 1950, em Plácido de Castro, Acre, Ivaneide Bandeira Cardozo foi uma criança determinada, dessas que falam “quero ser isso quando crescer” e realmente cumprem.

A vontade dela na infância era ser defensora dos povos indígenas. Hoje aos 64 anos, Neidinha Suruí — como todos a conhecem – sente orgulho por ter dedicado boa parte de sua vida à defesa dos povos isolados e pela demarcação de suas terras.

Há trinta anos, Neidinha lidera a Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, que ajuda a mobilizar 52 etnias indígenas em Rondônia. À frente da ONG  desde pelo menos 1992, a indigenista luta pela autonomia indígena em tudo o que diz respeito a eles. Da produção de um filme até o espaço de debate sobre política e desmatamento.

Reprodução youtube
Cena do documentário “O território”, de Alex Pritz (2022)

Nesta entrevista ao InfoAmazonia, Neidinha Suruí fala sobre uma história que não é só dela, mas de todo um povo. Os indígenas que vivem na Terra Indígena (TI) Uru-eu-wau-wau enfrentam invasões diversas, que há décadas colocam em risco sua vida e o seu território. Luta registrada no documentário “O território”, assinado pelo diretor estadunidense Alex Pritz e co-produzido pelos próprios Uru-eu-wau-wau, que será lançado no Brasil na próxima semana (com pré-estreia nesta segunda, 05, e estreia em circuito nacional na quinta, 08 de setembro). 

O longa já recebeu 14 prêmios, dentre eles o de Especial do Júri de Obra Documental e do Público de Documentário na categoria internacional no Festival Sundance de Cinema de 2022. Neidinha nos concedeu a entrevista diretamente de Nova Iorque, onde participa de exibições e conversas com o público. 

InfoAmazonia – O povo Uru-eu-wau-wau assina a co-produção do documentário “O território”. Como se deu essa parceria para que eles não fossem apenas retratados, mas participassem ativamente desse processo?
Neidinha Suruí – Quando eu fui procurada pelo diretor Alex Pritz, ele disse que queria fazer um documentário sobre a minha vida e os Uru-eu-wau-wau. Eu disse a ele que eu só aceitava a filmagem se ele garantisse que os indígenas fariam parte do filme, com o olhar deles. Porque a gente estava cansado de receber pessoas que pedem para filmar e depois a gente nem vê nenhum resultado, só vemos depois as notícias. Então, se você vai fazer um documentário, tem que ter o olhar do povo indígena e tem que ter um retorno para o povo indígena. 

 a gente estava cansado de receber pessoas que pedem para filmar e depois a gente nem vê nenhum resultado, só vemos depois as notícias

Logo em seguida veio a pandemia e aí a gente disse que  ele não poderia entrar na aldeia, por conta do risco da doença. Então quem gravou dentro da terra foram os indígenas. Eles receberam um treinamento online, e a produção levou boas câmeras e seguindo os protocolos. 

O propósito do documentário é denunciar as invasões ao território, algo que você tem feito a vida inteira. Hoje, quais são os tipos de invasões e violências que sofrem  os Uru-eu-wau-wau ? 
Você tem vários tipos de invasores. Tem os invasores políticos, que às vezes as pessoas não falam e eles são os piores invasores que tem. Porque eles invadem a política para mudar a legislação ambiental, a legislação indígena e tirar direito do povo. Esse é o invasor que é um invasor que ninguém cita, que é invisível. Tem o madeireiro, tem o garimpeiro, tem as mineradoras e é bom não confundir garimpeiro com mineradora, que são as grandes empresas por trás. São os grandes que financiam o roubo da madeira e do garimpo. Então, você tem uma escala de invasores de diversos tipos. 

No documentário tem um momento em que alguns madeireiros se manifestam e dizem que querem apenas um pedaço de terra, que precisam trabalhar. Como você enxerga esse discurso de alguns invasores, que se colocam nesse lugar de “não somos criminosos, precisamos apenas de trabalho”?
Essa foi outra coisa que eu pedi para o Alex. Eu queria que ele mostrasse o olhar do invasor. Ele falou pra mim: “ah, mas será que eles vão dar entrevista?”. Eu falei: “você é americano. Esse povo adora americano”. E eles falaram. 

Eu queria o olhar deles porque são pessoas pobres também. Só que eles são manipulados, são aliciados. Por trás tem grandes empresários pecuaristas, mineradoras, madeireiros que incentivam e dão suporte para que eles invadam. E eu queria mostrar muito essa situação. Eles são tão manipulados, que eles acreditam que aquilo que eles estão fazendo é certo. As pessoas precisam entender que quando se invade uma área para desmatar você tem que ter dinheiro. Porque senão você não consegue. Ter uma motosserra é caro, a gasolina é cara. 

Eu queria o olhar deles porque são pessoas pobres também. Só que eles são manipulados, são aliciados. Por trás tem grandes empresários pecuaristas, mineradoras, madeireiros que incentivam e dão suporte para que eles invadam. E eu queria mostrar muito essa situação.

Essas pessoas que invadem terra indígena, área de conservação, elas já invadiram em outro lugar. E as invasões viraram um comércio. Hoje eles criam associações de produtores rurais para invadir terra indígena. Eles não estão ali lutando por reforma agrária, eles não estão ali porque eles não têm onde ficar. São organizadas associações que sabem que estão invadindo a terra indígena e mesmo assim elas acreditam na impunidade e elas acreditam que invadindo, e desmatando, vão ganhar a terra.

Reprodução youtube

Você está em Nova Iorque agora, participando das exibições. Como está sendo participar destes lançamentos  do documentário?

Aqui a gente participa de um momento de pergunta e resposta, então durante meia hora após a exibição a gente senta com a platéia e responde. É muito louco porque depois as pessoas saem todas emocionadas, chorando. Elas não são nem da Amazônia, são de diversas partes do mundo. São árabes, são asiáticos, que choram e, me abraçam, dizendo que é a história delas e que se identificam. Ver a reação das pessoas é muito legal.

Em uma entrevista para a Carta Capital, você fala que: “As pessoas encaram a floresta como algo puramente econômico. Nunca pensaram em como trabalhar com a floresta em vez de destruí-la”. Realmente, as pessoas não entendem o valor da floresta em pé. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso.
O modelo de desenvolvimento econômico que levam para a Amazônia é um modelo de destruição. Em nenhum momento eles respeitam a natureza, não param para pensar que quando se desmata você pode estar destruindo remédios que seriam a cura das pessoas, que você está matando milhares de animais e você está destruindo uma economia. A economia da castanha, por exemplo. Eu costumo dizer que quando a pessoa derruba uma castanheira ou queima um castanhal ela rasga dinheiro. Por quê? Porque a castanheira te dá castanha o ano todo. Não precisa gastar um centavo. A castanheira te dá óleo, tem um monte de produto feito com a castanha. O tucumã faz biodiesel, babaçu faz biodiesel. O açaí gera um monte de alimento, gera um monte de biojoia. E se o governo investisse na bioeconomia você ia manter a floresta em pé e iria gerar renda para população.

Na Terra Indígena Uru-eu-wau-wau também vivem povos isolados. Por que o risco dessas invasões são maiores para eles?
Existem quatro povos isolados na terra indígena. Se um invasor tiver contato com o isolado, vai estar armado. Se ele não matar com a arma, ele vai matar passando doenças para eles, porque eles têm baixa imunidade. Qualquer vírus pode matar, causar um genocídio num grupo inteiro de isolamento. Então estamos super preocupados, porque está tendo uma pressão muito grande e a falta de fiscalização coloca em risco a vida deles.

Como você avalia as respostas dos órgãos ambientais frente aos crimes  que ocorrem no território dos  Uru-eu-wau-wau ?
O governo Bolsonaro enfraqueceu a Funai, o Ibama, o ICMBio.  Então quase não se tem fiscalização. Para se ter uma ideia, em plena pandemia de Covid era tudo quanto invasor entrando e não tinha fiscalização. Para vacinar os indígenas, eu tive que entrar escoltada pela polícia, porque não tinha fiscalização para retirar os invasores e eles não deixavam entrar nas aldeias. A fiscalização é fundamental, os Jupa (outro nome para os indígenas Uru-eu-wau-wau) vêm há muito tempo brigando para que se retomasse uma barreira da Funai que estava servindo de ponto de apoio para invasores. Porque a barreira tinha se transformado num foco de invasão. E aí, as lideranças sentaram com o pessoal da Frente de Proteção aos Isolados e os próprios indígenas iniciaram a vigilância. Porque esse governo não fez nada. E das poucas vezes que fez, que foram raríssimas, os maquinários foram soltos. E se você prender e soltar o maquinário, ele vai voltar para invadir. 

O que um novo governo precisa fazer com urgência, para reduzir as violações aos povos indígenas? 
Com urgência ele tem que fortalecer os órgãos de comando e controle. Isso pra mim tem que ser muito claro e colocar a fiscalização pra funcionar. Urgente que esse governo demarque as terras indígenas. No caso do governo do estado de Rondônia, tem que cancelar os cadastros ambientais rurais que estão dentro de terra indígena e em unidade de conservação e mandar os memoriais descritivos para os bancos e   informar que o que está dentro da terra indígena não pode receber financiamento para executar nada lá. Isso tem que ser colocado, tem que ser trabalhado e isso tem que ser feito urgentemente, porque estão usando os CAR (Cadastro Ambiental Rural) para conseguir licenciamento de invasão.

E aí tem todo o resto, a educação, a saúde. E na questão ambiental é fiscalizar e desintrusar, tirar todos os invasores das terras indígenas. Não dá pra ver a situação dos Yanomami com criança morrendo com desnutrição, a situação é gravíssima. Tem que tirar os garimpeiros da terra indígena, madeireiro, grileiro, é urgente.

Em uma outra entrevista ano passado, você disse que sua mãe te ensinou a ler revistas que mostravam os indígenas sendo expulsos e mortos e que isso te motivou a lutar pelos povos indígenas. Eu sei que você sempre esteve envolvida com a arte e agora vocês lançam, então, esse documentário. Que tipo de impacto você espera ter com ele? 
Eu espero que o filme ajude a proteção das terras indígenas e dos povos indígenas, mas também que pressione o governo para conversar com o MST e assente os trabalhadores sem terra. Mas também eu espero que o filme sirva para apoiar o cinema, principalmente no Brasil. A cultura no Brasil foi destruída com o governo Bolsonaro e eu espero que sirva para apoiar os produtores indígenas. 

Tem uma coisa que nunca me perguntam, mas eu quero contar pra ti. Esse filme tem toda uma campanha que se chama “O Território“. É uma campanha de arrecadação de recursos, de dinheiro para a Associação Uru-eu-wau-wau e para Canindé, para as nossas ações nas terras indígenas. Esse filme já deu um retorno com recurso, com dinheiro para os projetos indígenas. E a gente está construindo um centro de cultura na Terra Indígena  Uru-eu-wau-wau, onde os indígenas vão  fazer as produções deles, as edições, essas coisas todas. Eu tô falando isso para as pessoas que querem fazer um filme com indígenas, que dê retorno. Isso é muito importante, esse recurso vai ajudar o território, a floresta e as populações.

Foto: Arquivo pessoal
Neidinha Suruí e a filha, Txai Suruí, ao lado do fotógrafo e genro Gabriel Uchida, comemorando mais um prêmio do filme.

Você é mãe de uma jovem que também é ativista como você, a Txai Suruí. Dentro dessa luta, o que você observa de diferente nessa nova geração de ativistas? 
Eu estou aprendendo com eles, né? Porque eu sou idosa (risos). Eu tenho 64 anos. Então, como você disse, eu aprendi a ler em revista Manchete, Grande Hotel, Capricho e Livrinhos de Bang Bang. Então eu tenho aprendido muito com eles, aprendo a mexer no drone, eles me ensinam a usar esses programas de internet. Eles têm a própria linguagem deles e tem uma troca geracional, eu aprendo, eles aprendem. 

Você já fez TikTok? 
Eu ainda não fiz TikTok não, mas eles ficam no meu pé pra eu fazer TikTok. Esses dias eu ri demais, quando a gente vai aprendendo as coisas eu dou risada. Tem o vlog né. E o meu filho mandou pra mim e falou assim ‘mãe, a senhora está nos Estados Unidos aí, faz um vlog!’ Eu mandei pra ele ‘meu filho pelo amor de Deus o que é Vê logue que você quer que mamãe faça?’ Então está lá no meu Instagram agora, eu de vez em quando eu posto algo. E eu acho fantástico como o jovem, usa a internet para mandar uma mensagem dos indígenas. Eu sou seguidora da Txai e eu fico olhando lá como ela faz, como ela joga as mensagens. Aí eu tento fazer também, né? Que eu estou aprendendo.

sobre a memória

Durante a entrevista, Neidinha falou sobre arte e ofereceu um poema de sua autoria para a reportagem, que aqui reproduzimos:

Se eu for para o mundo dos encantados
Não fique triste
Continue a luta
A floresta me recebe
E me encanta
Quando eu estiver no mundo dos encantados
Darei boas risadas das histórias vividas 
Da experiência de educar invasores e de expulsar quem destrói a Amazônia 
Lembrarei de ti
Das perguntas que pensava saber responder 
Do teu sorriso franco
E do até qualquer dia
Quando eu for para o mundo dos encantados 
Vou dar boas risadas do que fiz.

(Neidinha Suruí)

Sobre o autor
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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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