País vive escalada de registros de violências contra pessoas indígenas. Nos últimos quatros anos, a violência contra indígenas na Amazônia Legal cresceu 48%, de acordo com relatório do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
O Amazonas é o estado brasileiro com o maior número de assassinatos de indígenas em 2021, de acordo com o “Relatório Violência Contra Os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2021”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lançado hoje (17/08), em Brasília. A violência atingiu o pico no último ano, tirando do topo outros estados que lideravam esses registros, como Mato Grosso do Sul e Roraima. Foram 38 mortes registradas no Amazonas, que evidenciam o agravamento dos conflitos fundiários e a desassistência aos povos indígenas durante os últimos anos na região.
Segundo dados colhidos junto ao Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e às secretarias estaduais de saúde, no ano anterior (2020), o Amazonas ficou em segundo lugar, com 41 casos, atrás de Roraima que teve 66 registros. Roberto Liebgott, um dos coordenadores do Cimi e um dos responsáveis pelo relatório, explica que desde 2019 os números da violência têm crescido consideravelmente na região amazônica.
“No período de 2019 a 2021, notamos a tendência de acirramento dos conflitos na região Norte, especialmente Roraima, Pará, e Amazonas. No Amazonas havia registros, mas não com destaque como agora. Parece que a fragilização da fiscalização e a perspectiva da exploração indiscriminada, avalizada pelo Estado, União, tornam as terras e os povos vítimas desse processo de cobiça desenfreada”, diz Liebgott.
Como reflexo de um quadro de violência generalizada, o relatório registra casos de assassinatos de jovens e crianças indígenas praticados com extrema crueldade e brutalidade que causaram comoção. Um deles ocorreu na Terra Indígena Mawétek, do povo Kamari, localizado no município de Eirunepé, região do Vale do Javari, Amazonas. O adolescente indígena Hiwô, de 14 anos, foi encontrado na beira do rio Juruá com uma corda amarrada em seu pescoço e 29 golpes de faca. Uma pessoa foi presa e confessou o crime, que teve a participação de outras quatro. Duas foram presas. O caso ocorreu em 25 de outubro do ano passado.
Outro caso que ilustra a violência na região amazônica ocorreu no município de Alto Alegre, em Roraima, onde duas crianças do povo Yanomami morreram após fugir de uma invasão garimpeira ao seu território. As mortes aconteceram no dia 10 de maio, na comunidade indígena Palimiú, na região do rio Uraricoera, quando um grupo de garimpeiros em sete embarcações invadiu o local disparando tiros, o que levou os Yanomami a fugir do local. Durante a fuga, duas crianças menores de cinco anos se perderam na floresta e dois dias depois seus corpos foram encontrados no rio.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) afirma que a escalada de violência na Amazônia se intensificou após a implementação de uma “agenda anti-indígena” do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL).
“Desde a sua eleição, nós vivemos um cenário de morte onde o autoritarismo e o fascismo só têm crescido. A Funai e órgãos fiscalizadores estão sendo desmontados, o desmatamento e o garimpo ilegal têm batido recordes e mais recordes. Tudo isso compõe uma agenda anti-indígena que é promovida por este governo e incentiva a violência contra os indígenas. Estamos cansados desse genocídio contra nossos parentes!”, disse Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib.
Violência na Amazônia Legal
A mudança no mapa da violência remonta o cenário de desestruturação e insegurança dos povos indígenas e defensores ambientais, exposto em crise mundial, com o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips, indigenista e jornalista assassinados no Vale do Javari, no Amazonas, no início de junho deste ano.
Violência contra indígenas na Amazônia Legal cresceu 48% nos últimos 4 anos
De 121 casos registrados em 2018, para 180 registros em 2021.
Entre os cinco primeiros estados brasileiros com mais assassinatos de indígenas, quatro fazem parte da Amazônia Legal. São eles: Amazonas, Roraima, Maranhão e Pará. Essa violência contra os indígenas da Amazônia Legal entrou numa forte escalada nos últimos quatro anos, saltando de 121 casos registrados em 2018, para 180 registros em 2021. O aumento é de 48%.
Os dados da região mostram que os casos de violência contra pessoas indígenas vêm aumentando progressivamente de 2018 pra cá. Em 2019 o Cimi registrou 141 casos, em 2020 foram 164. As violências contra pessoas incluem casos de abuso de poder, ameaça de morte, ameaças várias, assassinatos, homicídio culposo, lesões corporais dolosas, racismo, tentativa de assassinato e violências sexuais.
Considerando os indígenas de todo o território brasileiro e todos os casos e tipos de violência contra pessoas, foram 355 registros neste ano. Esse é o maior número desde 2013. Naquele ano foram 155 registros.
Roberto Liebgott explica que os casos estão aumentando em função de três motivos: discursos favoráveis à exploração de terras indígenas, feitos por autoridades; a ideia de que os povos indígenas não são produtivos; a desumanização dos indígenas brasileiros.
“Registramos casos de assassinatos brutais contra indígenas no ano de 2021, dentre eles assassinatos com requintes de crueldade, esfaqueamentos, envenenamentos e até esquartejamento. É necessário referir que as violências sempre ocorreram, mas observamos, nos últimos anos, que se amplificaram”, afirma o indigenista.
Para Liebgott, os discursos de autoridades que são favoráveis ao uso de terras indígenas por garimpeiros, madeireiros e grileiros é o primeiro grande fator. “Os invasores tratam os indígenas como obstáculos a serem removidos e, neste embate, a violência física, se torna o caminho mais comum. Concomitante à violência física vem a degradação, depredação e destruição da natureza”.
Outro fator levado em conta na análise de Liebgott é uma mentira antiga que ganhou força nos últimos anos, de que os indígenas não são produtivos, logo não têm direito à terra. O coordenador do Cimi avalia que os indígenas são os principais responsáveis pela manutenção da fauna e da flora, produzindo atividade agrícola e mantendo a floresta em pé. “Retira-se dos povos o direito de terem direitos e, diante disso, qualquer tipo de ação contra eles é caracterizada como justificável ou legítima, por aqueles que buscam o lucro farto e fácil nas terras indígenas, que são propriedades da União”.
Por último, Liebgott afirma que existe no Brasil uma “perspectiva da desumanização dos indígenas”, colocando-os em conceitos ultrapassados de pessoas que não são cidadãos com direitos e que não possuem futuro.“Resgatam-se as teses genocidas da ditadura militar da integração ou eliminação. Legítima-se, neste contexto, a violência, por isso registramos em 2021 tantos casos de assassinatos e outras violências contra os povos e seus territórios”.
Abusos de poder na Amazônia
Dentro da Amazônia Legal, os casos de abuso de poder cometidos por agentes de órgãos ambientais também cresceram, num aumento de 160%. Em 2020 foram 8 casos registrados, e em 2021 foram 21 casos.
O relatório afirma que a maior parte dos casos de abuso são feitos por agentes federais que ”se sentem legitimados a cometer os ilícitos, apoiados pelo discurso do presidente”.
Em destaque, o Cimi cita o caso de três indígenas Jaminawa que pescavam e caçavam no rio Purus quando foram abordados por policiais e representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (IMCBio). Os agentes conduziram os indígenas para o município de Boca do Acre, no Amazonas, depois foram levados presos para a Polícia Federal em Rio Branco, no Acre, e acusados de porte ilegal de arma. Sem comunicação com os familiares, eles só foram soltos três dias depois.
No Maranhão, indígenas Akroá-Gamella sofreram um ataque da Polícia Militar do estado. Segundo o relatório, eles alegam que a PM utilizou arma de fogo e spray de pimenta em uma invasão ao território, depois que os indígenas expulsaram funcionários de uma empresa de energia elétrica que pretendia instalar linhões de energia.
Terras invadidas
Outro sintoma da retirada dos direitos dos povos indígenas é a falta de proteção de suas terras, que mesmo sendo demarcadas e reconhecidas estão sendo invadidas e exploradas. Em 2021, o Cimi registrou a ocorrência de 305 invasões e exploração ilegal. Os crimes ocorreram em 226 Terras Indígenas (TIs). Dos 305 casos, 236 foram registrados na Amazônia Legal e todos os estados dessa região foram atingidos.
De acordo com o Cimi, as invasões são acompanhadas de danos ao território causados por extração ilegal de madeira, pesca ilegal, venda de lotes das terras, grilagem e avanço do garimpo.
É o caso, por exemplo, da TI Uru-Eu-Wau-Wau (TI UEWW), em Rondônia, invadida por fazendeiros. Eles controlam grandes rebanhos e já foram denunciados pelos indígenas do povo Karipuna. De acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), são mais de 20 mil hectares desmatados na TI UEWW.
A TI Yanomami, situada no Amazonas e Roraima, também é destacada por sofrer com a invasão garimpeira, que já impacta a vida dos indígenas e o território, com derrubada da floresta e poluição dos rios. Dados do projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, que constam no relatório do Cimi, mostram que existem mais de 500 pedidos de mineração em 3,3 milhões de hectares. Considerando todas as TI’s no Brasil, os requerimentos podem para alcançar 5,92 milhões de hectares.
”Há muitas reclamações de indígenas apontando as omissões do poder público em cumprir seu dever de fiscalização e proteção das terras indígenas, que se soma à omissão em demarcar terras indígenas”, diz o relatório.
Para avançar
O coordenador do Cimi, Roberto Liebgott, sugere que sejam retomadas as políticas indigenistas que antes eram executadas no país e a reestruturação dos órgãos indigenistas oficiais. “É necessário retomar a política indigenista tendo como eixos: o respeito aos modos de ser e viver dos povos; a demarcação, a proteção e a fiscalização das terras indígenas; e o reconhecimento dos indígenas, suas comunidades e organizações como sujeitos de direito. Obviamente o governo deverá reestruturar os órgãos responsáveis pela execução da política indigenista, especialmente a Funai e a Sesai, rompendo em definitivo com o preconceito e o desrespeito às culturas”, conclui.
O coordenador da Apib, Dinamam Tuxá, alerta que é preciso voltar a demarcar as terras indígenas brasileiras, para garantir a segurança dos povos. “Desde 2019, nenhuma terra indígena foi homologada. Isso precisa mudar. Precisamos demarcar as terras indígenas, investigar os responsáveis pelas invasões e ter uma fiscalização eficiente e permanente nas TIs para combater as invasões de fazendeiros e garimpeiros. A tese do Marco Temporal também precisa ser derrubada urgentemente, nosso direito é originário e não podemos viver sob esta ameaça”, reivindica.
Leia o relatório do Cimi completo.