Dados do Cimi registram aumento de todos os indicadores de violência contra povos originários durante o governo Bolsonaro. “A violência contra os povos indígenas se consolidou e tomou praticamente uma forma”, destaca o secretário do Cimi em entrevista ao InfoAmazonia.

Na madrugada de 2 de outubro de 2022, um domingo, cinco indígenas Xirixana da comunidade Napolepi, na Terra Indígena Yanomami, foram atacados por um grupo de garimpeiros que se denomina ‘lobos’. Os indígenas foram cercados por dois barcos; o líder Cleomar Xirixana foi atingido na testa e no tórax, morrendo no local. Um adolescente ficou ferido e os demais se jogaram no rio para se salvar. Em abril do mesmo ano, em outro ponto da terra indígena, na comunidade de Aracaçá, uma adolescente de 12 anos foi estuprada e morta por garimpeiros. O garimpo ilegal também está relacionado com mortes e ameaças no Amazonas, Pará e Rondônia, conforme mostram dados do relatório mais recente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) intitulado “Violência Contra Povos Indígenas no Brasil”, divulgado nesta quarta-feira, 26 de julho.

“No nosso entendimento, há evidências mais do que suficientes de que o aumento exponencial do garimpo na Terra Indígena Yanomami nos últimos 4 anos, com a conivência do governo, tem uma relação direta e um impacto concreto na violência dentro desses territórios”, destaca Luis Ventura, secretário adjunto do Cimi, em entrevista à InfoAmazonia.

E não é somente o garimpo, principalmente de ouro, que tem matado e continua matando indígenas no Brasil. Exploração ilegal de madeira, disputas por terra, preconceito e omissão são alguns dos motivos relatados nos 795 assassinatos de indígenas contabilizados nos quatro anos do governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), representando um aumento de mais 54% em comparação com as mortes registradas entre 2015 e 2018, nos governos Dilma e Temer, quando 500 indígenas foram assassinados.

Em 2022, segundo o relatório, foram registradas 180 mortes violentas. Roraima (41), Mato Grosso do Sul (38) e Amazonas (30) são os estados que mais registram mortes.

O maior número de indígenas assassinados em um único ano ocorreu em 2020, no segundo ano da gestão Bolsonaro, quando foram contabilizadas 216 mortes. Esse é o maior registro em 20 anos da série de levantamentos do CIMI.

O relatório denuncia que durante o governo Bolsonaro o aumento dos relatos sobre ações truculentas contra indígenas, incluindo pessoas em cargos de direção e coordenação dos órgãos responsáveis pela assistência aos povos, “refletiu os posicionamentos recorrentes do próprio chefe do executivo contra os direitos indígenas”, conforme destaca o documento.

Violência contra povos indígenas disparou no governo Bolsonaro

O Cimi também detalha casos de conflitos por direitos territoriais, com 158 registros em 2022; invasões, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio, com 309 casos em 218 terras indígenas; além de abuso de poder, ameaça, racismo e outros.

A violência como um todo na gestão Bolsonaro aumentou na mesma proporção dos assassinatos, 54%. Essas violências, segundo o Cimi, avançaram lado a lado com o desmonte das políticas públicas de assistência em saúde e educação, e com o desmantelamento dos órgãos de fiscalização e de proteção destes territórios.

Os quatro anos sob o governo de Jair Bolsonaro apresentaram uma média de 373,8 casos de violência contra a pessoa por ano; nos quatro anos anteriores, a média foi de 242,5 casos anuais. Em 2022, foram 416 casos de violência contra indígenas.

O período também marca o registro de massacres, como o ocorrido no rio Abacaxis, no Amazonas, em 2020, e ainda sem resolução. Pelo menos dois indígenas mundurukus e quatro ribeirinhos morreram na esteira de uma série de denúncias anteriores contra as pressões na região do rio Abacaxis, mas que nunca foram atendidas. Policiais militares estão entre os suspeitos da chacina.

TI Yanomami registrou 17,5% da mortalidade infantil indígena

Além da violência contra pessoas, o CIMI também registrou casos de mortes de crianças indígenas de 0 a 4 anos, que somam 3.552 óbitos entre 2019 e 2022. Três estados da Amazônia Legal se apresentaram com a maior parte destas mortes: Amazonas (1.014 mortes), Roraima (607) e Mato Grosso (487). A TI Yanomami concentrou 621 mortes de crianças nessa faixa etária, mais 17% de todas as mortes de crianças indígenas entre 0 e 4 anos.

Indígena se manifesta contra Bolsonaro em marcha A Queda do Céu, em Brasília. 2022. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Na desassistência à saúde, a TI Yanomami registrou 15.561 casos de malária só em 2022. Em janeiro deste ano, uma missão especial do governo federal, do então recém empossado governo Lula (PT), foi enviada à terra indígena para retirada do garimpo ilegal e retomada da assistência indígena. Segundo informações divulgadas pelo Ministério da Saúde na época, nos últimos anos, cerca de 570 crianças do povo yanomami foram mortas por contaminação de mercúrio, desnutrição e fome devido ao impacto das atividades de garimpo de ouro, cassiterita e diamante ilegal na região.

Marcha indígena em Brasília pela demarcação de territórios, em abril de 2023. Credit: Fábio Bispo/InfoAmazonia Credit: Fábio Bispo/InfoAmazonia

O documento ainda aponta a fragilidade territorial que os indígenas enfrentam para reconhecimento das suas terras, e que alimenta os movimentos dos invasores para grilar e explorar os recursos naturais nesses lugares, os mais preservados das florestas brasileiras.

A maioria das 1.391 terras e demandas territoriais indígenas no Brasil possui alguma pendência administrativa para sua regularização. São 867 terras indígenas com pendências, 62% dos territórios, sendo que pelo menos 588 não tiveram nenhuma providência do Estado para sua demarcação.

Questão que passa por uma série de ações do Estado nos últimos anos, desde o afrouxamento de regras e normas na proteção dos indígenas, como a não demarcação de terras, não renovação de portarias de proteção, à tentativa de aprovação de leis que abririam totalmente essas terras para projetos de mineração, agropecuária e hidrelétricas, como o PL191/2020.

Os povos indígenas em isolamento voluntário, segundo o Cimi, são os mais afetados “pela política deliberada de omissão e desproteção adotada pelo governo Bolsonaro”. Em 2022 foram constatadas invasões e danos ao patrimônio em pelo menos 36 TIs onde existem 60 registros de povos isolados, de acordo com os dados da Equipe de Apoio aos Povos Livres (Eapil/Cimi). Dos 117 grupos de indígenas em isolamento voluntário registrados pelo Cimi, 86 não são reconhecidos pela Funai —não existem para o Estado.

A tese do marco temporal, que também está incluída no PL 490/2007, aprovado às pressas em maio deste ano na Câmara, também ganhou força com apoio do  Congresso. “Revela omissão por parte do Estado, revela negligência, revela também intencionalidade nessa demora, é uma demora proposital. A não demarcação das terras indígenas está relacionada com o resto das violências. A tese falaciosa do marco temporal claramente contribuiu com travamento e paralisação das demarcações”, destaca Luis Ventura.

Memória

O relatório também dedica um capítulo à reflexão sobre o tema da Memória e Justiça e traz uma das últimas produções do pesquisador Marcelo Zelic (1963-2023), falecido neste ano. Zelic dedicou sua vida à preservação da memória, através do trabalho de documentação, e à luta pela criação de mecanismos de não repetição das violações de direitos humanos contra os povos indígenas. Na InfoAmazonia, Zelic coordenou o projeto Memória Interétnica e a plataforma Cartografia dos Ataques Contra Indígenas (CACI).

Marcelo Zelic lutou pela comissão da verdade dos povos indígenas para reparar crimes do passado que até hoje ainda têm reflexos na vida dos povos originários Credit: Fabio Bispo/InfoAmazonia Credit: Fabio Bispo/InfoAmazonia

Leia a íntegra a entrevista com Luis Ventura, secretário adjunto do Cimi, para a InfoAmazonia:

InfoAmazonia: O relatório mostra uma escalada na média de mortes de indígenas no período de 2019 a 2022, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em relação ao período anterior, dos governos de Michel Temer e Dilma Rousseff. Sobre esse crescimento, algum tipo de ameaça específica cresceu em relação às outras? Ou a violência contra os povos cresceu em variados aspectos?

Luis Ventura: A violência cresceu, na verdade, na maior parte das categorias ou das formas de violência que registramos no relatório do Cimi. Com relação às mortes de indígenas durante esses quatro anos do governo de Jair Bolsonaro, o que a gente constata é que a violência contra os povos indígenas se consolidou e tomou praticamente uma forma, um método sistemático, orquestrado e estruturado. 

Ou seja, a violência começa pela não demarcação das terras indígenas e pelo abandono das medidas de proteção territorial, que foram posições assumidas claramente pelo governo Bolsonaro nesses últimos quatro anos. Segue com o incentivo das invasões por parte das autoridades, o que vai criando uma expectativa de direito em quem invade, de legalização das invasões e de impunidade. Continua depois com toda a política da liberação de armas, que foi uma medida muito específica do governo Bolsonaro e que chega lá na ponta, porque você acaba armando quem está enfim executando a violência contra os povos indígenas. E conclui, finalmente, com o descumprimento sistemático por parte do Estado das decisões judiciais, inclusive com envolvimento de forças policiais na violência contra os povos indígenas atuando, em muitos lugares, como seguranças privados de fazendeiros e de outros invasores. 

Então, quando você analisa essa série de fatores em conjunto e de forma interligada: a não demarcação das terras, o abandono das medidas de proteção territorial, o incentivo das invasões, a política da liberação de armas, o descumprimento de decisões judiciais e colocar a serviço dos interesses dos invasores as forças policiais, você percebe que foi instalado um esquema em que se dava as condições para a violências diretas contra as comunidades.

Qual a avaliação da entidade sobre as respostas dadas pelo atual governo?

Então, de um lado, o novo governo retomou o diálogo com os povos indígenas. Evidentemente foram adotadas uma série de medidas que sinalizam possibilidades de avançar na garantia de direitos e percebemos que há uma intenção por parte da FUNAI do Ministério Público de destravar e retomar a política de demarcação de terras indígenas. 

Existem iniciativas de acompanhamento e monitoramento das situações de violência em estados que nos últimos anos apresentaram uma realidade de violência muito forte tipo, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Bahia. Existe também uma expectativa na retomada do Conselho Nacional da Política Indigenista e ações importantes também no campo da educação escolar indígena. Tudo isso nos coloca num outro ambiente, com uma medidas que podem ser destacadas 

Entretanto, no nosso entendimento, são medidas ainda tímidas e muito insuficientes. Não é por ainda estarmos com pouco tempo do novo governo. É porque, no nosso entendimento, são necessárias medidas mais claras, mais determinadas e com perspectivas de continuidade. Não só de emergência, por exemplo, no enfrentamento à invasão das terras indígenas e na desintrusação do garimpo.

Precisa maior determinação no processo de retomada das demarcações sem buscar atalhos ou caminhos intermediários, cumprindo o que está na Constituição Federal de 88.

Falta ainda maior firmeza política para superação, por exemplo, do Marco Temporal que já está sendo vencido no julgamento do Supremo, mas que ainda, por incrível que pareça, permanece no parecer 001 da AGU que é de responsabilidade do governo federal e que ainda não foi revogado pelo novo governo.

Luis Ventura destaca aumento da violência contra povos indígenas nos últimos quatro. Divulgação/Cimi. Credit: Foto: Tiago Miotto/Cimi Credit: Foto: Tiago Miotto/Cimi

Roraima e Amazonas, onde se localiza a TI Yanomami, estiveram entre os estados com maior número de registros de assassinatos, nestas unidades também há forte concentração de garimpos ilegais. O Cimi faz uma relação direta entre os garimpos e as mortes ou ataques nesses estados? 

No nosso entendimento, há evidências mais do que suficientes de que o aumento exponencial do garimpo na terra indígena Yanomami nos últimos 4 anos, com a conivência do governo, tem uma relação direta e um impacto concreto na violência dentro desse território. Causando ameaças, intimidações, divisionismo, abandono da atenção primária em saúde, a manutenção de números muito altos da mortalidade infantil, o assédio sobre o grupo isolados, os ataques contra a comunidades, assassinatos… tudo isso faz parte e é consequência direta da invasão garimpeira no território Yanomami. 

E isso se expressa, de outras formas, em outros territórios também dentro de Roraima e do Amazonas. Nesses quatro anos, por exemplo, no Amazonas vivenciamos o massacre na região do Rio Abacaxis contra comunidades ribeirinhas e contra comunidades do povo Maraguá, com assassinatos que   ainda não foram plenamente apurados.

Tem uma relação direta  não somente com as mortes, mas com todas as formas de violência contra as comunidades. O aumento da devastação. O aumento da destruição do meio ambiente. O aumento das ameaças. O aumento da violência sistemática contra as mulheres, da violência sexual contra as mulheres. Enfim, há uma ampliação e uma intensificação do ambiente da violência dentro dos territórios contra os povos indígenas.

Que diferenças você destacaria entre as mortes em área de conflito fundiário de fazendeiros e áreas garimpeiras ?

Eu creio que a raiz é a mesma, as formas são diferentes: o assédio e a ânsia da exploração dos territórios indígenas. O processo de acumulação que representa a invasão da fazenda do agronegócio e que representa a invasão do garimpo nesse processo de acumulação e exploração tem como consequência a eliminação dos povos.

Estamos diante de duas formas diversas de crime organizado e as duas requerem um esquema que envolve atores, mandantes, intermediários e executores.

Marcelo Ventura, Cimi

Nos conflitos territoriais que envolvem os empresários do agronegócio há uma questão ligada à disputa pela posse numa tentativa de legalizar e de legitimar o esbulho, o roubo. Então nesse esquema se expulsam comunidades, impedindo o livre trânsito das pessoas dentro do território, lideranças são ameaçadas. Inclusive, normalmente, se conta com apoio de autoridades locais políticas, policiais e judiciais. Se assassinam membros das comunidades. O esquema de violência dos fazendeiros do agronegócio, enfim, pretende impedir as  comunidades de defender o que é delas, atingindo as lideranças que de uma outra forma se destacam.

No garimpo, a impressão é que os pontos de invasão claramente são mais capilarizados. Aparentemente mais descontrolados, mais autônomos. Porém fortemente armados e fortemente organizados. O que gera uma violência cotidiana, às vezes, mais impulsiva. A impressão que dá é que as mortes podem acontecer a qualquer momento em qualquer circunstância. E a toda uma tentativa de aliciamento as comunidades dos jovens. E particularmente uma violência estarrecedora contra as mulheres, particularmente uma violência sexual contra as mulheres.

O relatório lembra as mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira, como a violência do período Bolsonaro impactou o trabalho de indigenistas e em especial o trabalho de base do Cimi?

Então o governo Bolsonaro representou um período em que houve uma naturalização da violência. Então as pessoas que estão lá na ponta executavam a violência de uma forma muito mais escancarada. Porque havia uma expectativa de impunidade, eles sabiam que tinham uma convivência do Estado.

A maior violência continua sendo aquela que é feita contra os povos indígenas. Porque essa é uma violência sistemática permanente diária sem trégua. Já pela opção de estarmos juntos aos povos e defender sua causa é que a atuação do Cimi e a atuação de outras entidades e do próprio Bruno Pereira e do Dom Philips, se tornam também alvo.

Nosso trabalho está na mira e a gente sabe disso. O Cimi está com 50 anos de caminhada. Nasceu em plena ditadura militar. Passou por diversos momentos históricos do país. Sempre esteve na mira dos que defendem interesses particulares e trabalham contra os povos indígenas. Durante estes últimos quatro anos alguns companheiros e companheiras, algumas equipes locais ficaram mais expostas, mais observadas, mais ameaçadas diretamente lá na ponta e isso obrigou também a reforçar precauções e medidas de segurança. Mas sem perder a ousadia e a determinação de estar junto aos povos indígenas ali onde nos demandavam ou queriam nossa presença e seguiremos.

O lançamento do relatório hoje é uma mostra disso. De que não calarão aos povos indígenas, nem a seus aliados. Continuaremos levantando a voz.

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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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