Assassinatos de Bruno e Dom revelam que a Amazônia já passou de pelo menos um ponto de não retorno: ela está nas mãos do crime organizado
Preocupados com os impactos do desmatamento, acabamos nos familiarizando com o conceito de “tipping point”, ou o ponto de não retorno. É quando, de tão desmatada, a floresta passa a se transformar em um ambiente com menos chuvas e, num ciclo vicioso, passa a queimar mais, tornando-se cada vez mais seca.
Nestes últimos dias, vimos que o colapso ecossistêmico não é único em curso na maior floresta tropical do planeta. Confirmando os nossos piores temores, as mortes de Bruno e Dom estão mostrando que o crime tomou conta da Amazônia de maneira, talvez, irreversível.
Bruno Pereira e Dom Philips eram, cada um a sua maneira, defensores da Amazônia e seus povos. O primeiro, com anos de serviço público, dedicou-se a proteger os índios isolados do Vale do Javari, combatendo invasores do território de oito milhões de hectares. Já o segundo, exercendo o jornalismo rigoroso, evidenciou os crimes ambientais e também as soluções para uma região tão complexa como a Amazônia.
Muito antes desta tragédia, soavam alertas para o domínio do crime organizado nos centros urbanos da região Norte. As revoltas nos presídios de Altamira, Boa Vista e Manaus, relacionadas a disputas entre facções criminosas pelo domínio de novas rotas de tráfico, deixaram o maior número de mortos entre os detentos na história. E todas ocorreram nos últimos cinco anos.
Hoje, basta andar pelos bairros de Manaus e Tabatinga para topar com centenas de pichações com as siglas PCC ou CV, os dois grupos mais fortes em todo o país, que surgiram em São Paulo e Rio de Janeiro, mas criaram ramificações na Amazônia. O que chamo de ponto de não retorno é que estes grupos estão, agora, também estabelecidos na região.
Mesmo que o assassino confesso pelas mortes não esteja diretamente conectado às facções do crime organizado que estão atuando na Amazônia, o que explicaria a presença de armamento de uso restrito em suas mãos? As suspeitas de que a pesca ilegal no Vale do Javari seja uma forma de lavar dinheiro para cartéis do narcotráfico também torna o terreno mais pantanoso.
O que sabemos mais e mais é que o crescimento de grupos criminosos não está restrito às cidades amazônicas – eles se adentram fundo na floresta. As ligações entre o crime organizado e os garimpos do sul do Pará, em territórios indígenas Munduruku e Kayapó já são alvos de investigações da Polícia Federal e ações do Ministério Público Federal. Já em Roraima, dentro do território indígena Yanomami, segue a investigação sobre a conexão do PCC com os ataques a comunidades indígenas no rio Uraricoera.
Estes casos, no entanto, são apenas a ponta do iceberg. A articulação do crime organizado na Amazônia não é apenas nacional; é regional e internacional, como não poderia deixar de ser, já que os principais mercados consumidores de drogas, madeira e ouro estão fora do país. As histórias e as investigações que chegam é que, na tríplice fronteira sobre o rio Solimões, indígenas são aliciados para trabalhar no tráfico. Na fronteira norte, com a Venezuela, grupos armados e em colaboração com a guerrilha colombiana ELN dominam rotas ilegais de ouro e mercúrio.
O significado das mortes de Dom Philips e Bruno Pereira está apenas começando a ser compreendido. Talvez estejamos entrando em um território que, infelizmente, é bastante conhecido pelos jornalistas mexicanos. Quem reporta sobre os negócios dos cartéis daquele país está colocando a cabeça a prêmio. A articulação internacional do crime organizado vai exigir mais coragem – mas também mais proteção e mais colaboração.
Não se pode esquecer ou minimizar as centenas de pessoas, ambientalistas, jornalistas e líderes comunitários que já tombaram na luta contra a destruição da Amazônia nos últimos 40 anos. Mas este caso, que repercutiu no parlamento britânico e na Cúpula das Américas, resultará no entendimento de que a Amazônia não é mais apenas um palco de crimes ambientais e disputas de terra. Ela está dominada também pelo crime organizado.
Este caso pode nos lembrar da comoção mundial que se instalou quando a irmã Dorothy Stang foi morta em Anapu em março de 2005 e como muitas medidas foram prometidas (e algumas efetivamente tomadas) para que a Amazônia deixasse de ser a terra da pistolagem. Passados quase vinte anos, vimos o recrudescimento da violência e seus representantes legítimos estão no poder. Das câmaras de vereadores ao Palácio do Planalto, políticos defendem mais mineração em terras indígenas, acesso a armas, redução de áreas protegidas, legalização de áreas griladas.
Exatamente por isso não será nossa dor frente a esta barbaridade que vai resolver os problemas da Amazônia, trazer mais proteção às comunidades ou deflagrar um combate efetivo aos crimes na região. O que a morte destes dois homens que dedicavam sua vida à Amazônia vai trazer é a percepção de que esta luta está apenas começando.