Nesta segunda-feira, 5 de junho, duas efemérides significativas coincidem, embora transmitam mensagens opostas: é Dia Mundial do Meio Ambiente e, também, completa-se o primeiro ano desde o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. Marubo, que liderou as buscas pelas vítimas, é um forte defensor do Vale do Javari, região amazônica onde o brutal crime ocorreu em 2022. Em entrevista à InfoAmazonia, ele declara que nada mudou na região nos primeiros cinco meses do governo Lula.

Dia 5 de junho de 2022. Há exato um ano, o indigenista Bruno Pereira desapareceu na região de Atalaia do Norte, cidade a mais de mil quilômetros de Manaus, capital do estado do Amazonas. Junto ao coordenador de uma das maiores expedições rumo aos povos isolados das últimas décadas, estava o jornalista inglês Dom Phillips, que preparava um livro sobre os potenciais da floresta amazônica. 

Correspondente do jornal britânico “The Guardian”, a figura de Dom trouxe àquela região holofotes para denunciar a ação do crime organizado no Vale do Javari, segunda maior terra indígena do país e com presença de povos isolados. À época, muito se criticou o papel das polícias nas buscas, sob a pasta da justiça do então governo Bolsonaro.

Foram dez dias de incessante busca e cobertura jornalística, em veículos nacionais e internacionais, para chegar ao paradeiro da dupla, cujos restos mortais foram recolhidos num local isolado entre a comunidade de São Rafael e Atalaia do Norte. Naquele momento, as buscas incansáveis e a divulgação do desaparecimento partiram do trabalho de ativistas da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a Univaja, cuja liderança mais expressiva se encontra na figura de Beto Marubo. 

J Ratcliffe/ / Greenpeace
Bruno e Dom foram assassinados em junho de 2022

Amigo de Bruno, os dois trabalhavam desde 2019 com ações para proteger e preservar os indígenas isolados da região, além de denunciar o aliciamento da população ribeirinha a atividades ilegais, como a pesca criminosa, o tráfico de drogas, madeira e as queimadas em floresta virgem. A luta de Beto é de longa data. Começou com apenas 22 anos, quando iniciou um trabalho com a Funai. Ele realizava a demarcação de terras dos povos isolados, algo que só foi possível depois do trabalho do ambientalista Sydney Possuelo, referência para se conhecer os povos isolados da Amazônia. 

Sob a batuta do governo de Bolsonaro, a Funai teve baixas e, em pouco tempo, a inação do Estado brasileiro no Vale do Javari levou a região a ser uma das mais perigosas da Amazônia.  Por estar na fronteira com o Peru e perto da Colômbia, rota do crime organizado, atividades ilícitas se agravaram e se tornaram uma preocupação da liderança indígena, que integrou um dos grupos de trabalho no governo de transição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). 

Bruno Kelly / Amazônia Real
Fachada da Unijava, no Vale do Javari

Beto Marubo foi constantemente ameaçado por criminosos que agem na região e voltou a Atalaia do Norte somente uma vez, no final de fevereiro deste ano, para rever amigos e familiares. Hoje anda com escolta e, para voltar à sua terra, só com um esquema de segurança reforçado, que envolve uma operação de grandes proporções, custos e logística com a atuação da Força Nacional, Polícia Federal e outros órgãos para garantir a integridade do ativista. “É necessário estar aqui em Brasília para denunciar, cobrar e chamar a atenção para os problemas do Vale do Javari”, contou Beto em entrevista por telefone à InfoAmazonia na tarde da última quarta-feira, 31. 

Na semana em que foi aprovado o PL 490, conhecido como Marco Temporal, o ativista se encontrava em trânsito intenso na capital federal, onde se reuniu com lideranças para discutir e reivindicar todo o apoio prometido ao povo do Vale do Javari durante a campanha do presidente Lula. “O Brasil tem todas as condições de liderar essa discussão climática”, diz ele, que vê com preocupação a pressão de uma ala do centrão sobre as ministras do Meio-Ambiente Marina Silva, e dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. 

Na mira da bancada ruralista, a dupla de ministras tem sido frequentemente alvo de defensores do agro. Engajado com lideranças como Joenia Wapichana, primeira mulher indígena a presidir a Funai, Beto Marubo espera que o presidente Lula vá ao encontro das ministras e as fortaleça. Caso contrário, “é o fim do governo”, declarou enfático, ressaltando que a figura das duas representa a luta ecológica aos olhos do mundo. 

Embora a esperança pareça não deixar o discurso de Beto, que irá à ONU neste mês para falar da situação dos povos isolados, depois de um ano, o ativista reitera que nada mudou, a sensação de insegurança é a mesma para os povos que vivem na Terra Indígena (TI) do Vale do Javari. Confira trechos da entrevista, abaixo. 

InfoAmazonia- Beto, o que representa essa vitória do texto preliminar do PL do Marco Temporal na Câmara dos Deputados, na quarta-feira (31 de maio)? 
Beto Marubo – É importante colocar que o PL do Marco Temporal representa o  ruralismo anacrônico. E eles [refere-se à bancada ruralista, da Câmara dos Deputados] querem, de qualquer forma, discordar dos planos do governo para o meio-ambiente. São deputados que representam um Congresso Nacional que não aconteceu, o de um segundo governo Bolsonaro. Outro fato é que essa mesma bancada ruralista quer deslegitimar o julgamento do PL do Marco Temporal no STF. Hoje, o argumento primário é: se o Congresso Nacional não legisla sobre esse tema, o STF julga para ter um parâmetro legal. Arthur Lira, um representante desse agronegócio ruralista, manobra para fomentar a especulação do mercado de terras. Hoje, nós temos visto a história do garimpo nessas terras, a destruição florestal, a grilagem: Ocupação ilegal de terras públicas por meio da falsificação de documentos.. Ele representa tudo isso. Ele mesmo é um latifundiário. Tudo isso é para se antepor e construir um anteparo político no Congresso Nacional contra o executivo e contra o Supremo Tribunal Federal. É uma visão míope em relação aos processos que estamos vendo com o avanço de práticas sustentáveis em outros países do mundo. Hoje, para um país crescer, ele tem que estar comprometido com o enfrentamento das mudanças climáticas.

É importante colocar que o PL do Marco Temporal representa o  ruralismo anacrônico. E eles [refere-se à bancada ruralista, da Câmara dos Deputados] querem, de qualquer forma, discordar dos planos do governo para o meio-ambiente. São deputados que representam um Congresso Nacional que não aconteceu, o de um segundo governo Bolsonaro.

Beto Marubo

Você acha que o governo está pronto para se lançar a fundo nessa discussão ambiental?
Diante do mundo, a retórica do presidente Lula é real. O mundo comprou essa ideia [da proteção à Amazônia]. O problema é a velha política… O Brasil tem todas as condições de liderar essa discussão climática, inclusive tendo recebido, recentemente, propostas públicas de outros países para o recebimento de investimentos na economia verde, como dos Estados Unidos e Inglaterra, que anunciaram apoio para o Fundo Amazônia: Projeto que capta e investe recursos nacionais e internacionais para potencializar a conservação e o uso sustentável da Amazônia.. Nós temos uma guerra hoje [refere-se à guerra na Ucrânia] que impactou de forma brutal na produção de alimentos no mundo, inclusive em relação à demanda dos fertilizantes que a Rússia fornecia para esses países. O Brasil não está em guerra e tem todas as condições naturais para liderar esse processo, tanto com relação à questão econômica, quanto na campanha de enfrentamento das mudanças climáticas. 

Você tem esperança de que o PL do Marco Temporal seja vetado?
Foi aprovado o texto-base e ainda tem outros processos legislativos. O Senado vai fazer modificações, o presidente do Senado pode colocar isso em pauta em regime de urgência, e o Governo pode vetar trechos. Nesse percurso, acredito que os outros países estão monitorando. Agora, se o texto que foi passado for convalidado pelo legislativo brasileiro, o governo pode esquecer tudo aquilo que se pretendia para o meio ambiente, inclusive para o agronegócio. 

Então, é um tiro no pé do próprio agronegócio, não? 
Exato. Por exemplo, recentemente, foi aprovada uma lei na União Europeia de que não se vai comprar mais produtos de áreas desmatadas. E o PL 490 está aí não só para interromper a demarcação das TIs, mas também para desmatar essas áreas, tirando a proteção das terras. É uma realidade que vai além dessa que está sendo divulgada, é um problema além da demarcação, porque tira a proteção das terras. 

E no meio desse processo político, temos a ministra Mariana Silva, que tem sido alvo, inclusive, de integrantes do próprio governo Lula. E pressionada para deixar a pasta do Ministério do Meio Ambiente. O cenário me parece muito aquele que Marina enfrentou em maio de 2008, quando inclusive, ela saiu do Ministério…
Com certeza. O governo era muito mais articulado e eficaz na questão política no Congresso. Era convincente e tinha força de reverter determinadas votações no Congresso Nacional. Já hoje, algumas autoridades ‘abriram as pernas’ achando que poderiam perder. Não tem o menor cabimento dar para os ruralistas a liberdade de colocar na pauta temas que envolvem a questão ambiental, se o governo está vendendo no exterior a ideia de que a questão ambiental é prioridade. Hoje, corre nos corredores do Congresso Nacional que a prioridade é a questão econômica, o arcabouço fiscal. E a pauta ambiental? Eles entregam para a bancada ruralista fazer o que bem entende. Caso o governo não sustente Marina ou a Sonia nesse momento, acaba o governo Lula. Entendeu? Como ele vai validar que o país é capaz de liderar o processo de tratamento das mudanças climáticas, o não desmatamento para a agenda 20/30? As duas ministras representam essas pautas para comunidade internacional.

No final do ano passado, a gente teve essa transição na Funai, que agora fica sob a pasta do Ministério dos Povos Indígenas. Você viu alguma mudança concreta no ministério, que saiu do Ministério da Justiça, nesses seis primeiros meses de governo Lula? 
Na prática, existem temas espinhosos e caros para Funai: Órgão federal criado em 1967 e responsável pela execução das políticas de proteção e de promoção dos direitos indígenas em todo o território nacional. que jamais foram seguidos no Ministério da Justiça. Um exemplo é a história do concurso [público para a Funai], né? Um processo para o fortalecimento da Funai institucionalmente, com planos de carreira para servidores. Apesar de não ter andado tanto quanto a gente esperava, andou. Vai haver um concurso agora com 502 vagas. Esse concurso jamais sairia se a Funai estivesse ainda no Ministério da Justiça. 


Houve alguma melhoria na atuação da Funai no Vale do Javari?
Não há absolutamente nada de concreto sendo feito nessa região. As autoridades ainda estão batendo cabeça. Porque a gente, enquanto Univaja, estivemos na transição de Governo e pensamos, criteriosamente, programas, atividades e ações para mitigar, enfrentar os problemas no Vale do Javari, sobretudo com relação à Proteção Ambiental. 

Não há absolutamente nada de concreto sendo feito nessa região [do Vale do Javari]. As autoridades ainda estão batendo cabeça.

Beto Marubo

Com relação à atuação do Estado de modo geral, sempre penso que tem que ser uma ação de interagências para começar a resolver os problemas [no Vale do Javari]. Porque não é só a Polícia Federal que tem que atuar. Não é só o Ibama. Não é só a Funai, o Exército, a Marinha, a polícia ambiental. Tem que ter todos esses órgãos juntos em uma ação conjunta sob a coordenação de um comando central. E que esse trabalho fosse sistemático, consecutivo, ostensivo. Do contrário, não seria qualquer providência eficaz. Hoje, cada um faz de um jeito. A polícia faz ações paliativas e volta. A mesma coisa com os outros órgãos. E as coisas continuam como estão… 

Como assim? 
Por exemplo, essa questão do combate ao garimpo ilegal na Terra Yanomami tem muito a ver com o que aconteceu no Vale do Javari. É um reflexo. Existiu ali uma pressão interna do governo federal em cima da Marinha, Aeronáutica e do Exército. O governo foi até lá, a mídia foi até lá. Mas hoje, se você perguntar para alguém que mora na Terra Yanomami, vai saber que ainda existe o garimpo ilegal. 

Bruno Kelly / Amazônia Real
Rio Itacoaí, na Terra Indígena Vale do Javari.

Então mesmo com Ministério com um corpo competente, como o governo amplamente anunciou no começo do ano, não houve um trabalho de base na região do Vale do Javari, como prometido? 
Isso. Nada mudou. 

Agora em junho, vai fazer um ano que Dom Phillips e o Bruno Pereira foram assassinados na região do Vale do Javari. Houve alguma mudança ali em relação à investigação?
Com relação às investigações, está em sigilo da Justiça e só a defesa ou a Polícia Federal podem responder. Nós não sabemos se tem algum avanço além daquilo que é divulgado…  

Certo. Agora em relação aos integrantes da Univaja, que denunciaram o garimpo ilegal e a atuação de madeireiros na região. Existia uma promessa do governo para dar proteção a essas pessoas, que continuam lá, inclusive. Houve alguma ação, de fato, para escoltar essas testemunhas? 
Assim como a investigação sobre o caso do Bruno e do Dom, que eu descrevi pra você, essas ações de proteção à pessoa estão no mesmo nível. Não tem novidade nenhuma, pelo contrário. Continua [a violência na região] e não tem nada de efetivo acontecendo para [brecar a ação do crime]. Pode escrever isso.

Assim como a investigação sobre o caso do Bruno e do Dom, que eu descrevi pra você, essas ações de proteção à pessoa estão no mesmo nível. Não tem novidade nenhuma, pelo contrário. Continua [a violência na região] e não tem nada de efetivo acontecendo para [brecar a ação do crime]. Pode escrever isso.

Beto Marubo

Como anda a questão dos povos indígenas isolados, que é uma luta sua de muito tempo? Como estão as políticas públicas para trazer segurança, saúde e educação para essas pessoas? 
O Ministério dos Povos Indígenas até criou um setor, uma diretoria de proteção de terra, para trazer essa discussão sobre os povos isolados. No âmbito da Funai, já existia esse trabalho de monitoramento. Eu não posso falar pelo ministério, mas sei que não houve nenhuma melhoria concreta nesse aspecto. 

Mas, olha, o movimento indígena tem feito tudo que é necessário para sensibilizar. Inclusive a ida das autoridades em Atalaia do Norte foi por causa de uma atitude direta do movimento indígena do Vale do Javari. A gente percebeu que sensibilizar o governo para o Vale do Javari não tem sido suficiente. 

Você tem conversado com a Joenia Wapichana sobre o papel da Funai no Vale do Javari? 
Ontem mesmo tive uma reunião com a Joenia para sensibilizar o governo para a situação do Vale do Javari. No meio de junho, a gente tem uma reunião com o pessoal da ONU, em Genebra, para falar sobre o papel dos povos indígenas isolados. Esse trabalho de dar visibilidade, questionar as instâncias competentes, isso daí é o papel do movimento indígena. É um trabalho muito resiliente que tem sido feito naturalmente. 

Não adianta uma presidente da Funai lutar por pautas importantes quando não tem orçamento. Então, esse é um dos grandes dilemas de alguns parentes, como a Joenia, que assumiram cargos no governo. A atuação deles [do governo] tem sido muito aquém do necessário. O Ministério do Povos Indígenas não tem orçamento suficiente e a Funai é reflexo disso. 

Não adianta uma presidente da Funai lutar por pautas importantes quando não tem orçamento. Então, esse é um dos grandes dilemas de alguns parentes, como a Joenia, que assumiram cargos no governo. A atuação deles [do governo] tem sido muito aquém do necessário. O Ministério do Povos Indígenas não tem orçamento suficiente e a Funai é reflexo disso. 

Beto Marubo

Você não voltou mais para o Vale do Javari, né? 
Quando volto, o aparato de segurança é muito grande. Altos custos de logística. Fui pro interior da terra indígena esse ano, no final de fevereiro e começo de março, sob a escolta da Guarda Nacional e da Polícia Federal. Sinto saudade. 


Reportagem da InfoAmazonia para o projeto PlenaMata.

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1 comment

  1. Sou bastante leigo nas questões políticas, ambientais e sociais, tenho acompanhado esses acontecimentos e confesso que quando mudamos de governo teríamos uma ação melhor no sentido de assegurar os direitos de todos que sofreram com à indiferença, abandono e até perseguidos por aqueles que preferem o modelo de governo passado.
    Ainda há esperança, más, estou com bastante dúvidas.

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