Em entrevista, o médico neurologista Erik Jennings fala das graves consequências da contaminação no rio Tapajós e do primeiro centro de tratamento de contaminação de mercúrio do país, idealizado por ele e inaugurado em janeiro na região de Santarém, Pará.
Há mais de duas décadas, o neurologista Erik Jennings trabalha na assistência à saúde dos povos indígenas no estado do Pará. Porém, foi em novembro do ano passado, durante o encontro de apresentação dos resultados da pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) que constatou que 60% dos moradores de três aldeias Munduruku apresentavam altos níveis de mercúrio no organismo, que surgiu a urgência por um atendimento especializado para os casos de contaminação de indígenas no rio Tapajós.
Assim, em janeiro deste ano, foi inaugurado o Centro de Referência para as Patologias Decorrentes do Mercúrio (CREPAM), no município de Santarém. Pioneiro no Brasil, o centro busca responder à demanda de pacientes na região da bacia do rio Tapajós, onde o crescimento da atividade garimpeira e de outras atividades predatórias para o meio ambiente tem elevado a concentração de mercúrio entre a população.
Desde a época em que cursava faculdade de medicina pela Universidade Federal do Pará, o neurologista trabalha com povos indígenas. A partir de 2010, começou a atuar na região junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI). Nos últimos anos, Jennings passou a trabalhar com o tratamento de quadros clínicos que podem estar relacionados à contaminação por mercúrio entre os Munduruku.
Jennings é um dos personagens do documentário “Amazônia, a Nova Minamata?”, do diretor Jorge Bodanzky, que teve sessão especial no Acampamento Terra Livre, em abril deste ano, e tem lançamento previsto para o segundo semestre de 2022. O filme compara a situação vivida pelos Munduruku do médio e alto Tapajós com a contaminação por mercúrio de mais de 5 mil pessoas no município de Minamata, no Japão, entre 1932 e 1968.
Em entrevista ao InfoAmazonia, o médico destaca as diferenças e semelhanças entre o drama vivido pelos japoneses e a atual realidade do povo Munduruku no Tapajós, e comenta sobre o conjunto de sintomas que podem estar relacionados à contaminação pelo metal tóxico.
Infoamazonia – Como surgiu a ideia da criação do centro de tratamento de mercúrio?
Erik Jennings – Nasceu em conjunto com os Munduruku, em território indígena, no ano passado, depois de uma reunião grande na qual a gente apresentou os resultados de contaminação de mercúrio nas aldeias e começou a discutir possíveis soluções. Uma delas era criar imediatamente um centro de referência onde essas pessoas com níveis elevados de mercúrio no organismo pudessem ir e fazer exames mais aprimorados para ver até que ponto teria essa repercussão clínica no organismo delas e para podermos orientar dieta, terapia ocupacional, etc.
Essa é a primeira iniciativa do tipo no país?
A primeira, nunca tivemos isso antes. Quando a gente saiu da reunião com os Munduruku, eu conversei com o então secretário de saúde indígena, Robison Silva, e expus a necessidade de a gente fazer isso como o mínimo de resposta que podemos dar para essas pessoas.
Vocês se inspiraram em algum centro de tratamento internacional?
Não, é uma ideia que partiu daqui, eu coloquei para o povo e para o pessoal do DSEI [Distrito Sanitário Especial Indígena, ligado ao Ministério da Saúde] e eles deram todo o apoio, então essa demanda foi levada para a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI).
O centro pretende atender pacientes não-indígenas também?
Depois sim, a princípio a gente começaria com os indígenas e depois, como o fluxo para transportar pacientes indígenas está difícil, talvez a gente comece a atender não-indígenas da cidade. Porém, o público alvo seria bem direcionado, por exemplo, com foco em gestantes.
Quais seriam os tratamentos possíveis? Ou seria um centro mais focado em pesquisa?
Não, a intenção é assistência e tratamento mesmo. Seria primeiro reconhecer quem tem mercúrio elevado e quais repercussões estão sendo causadas. Para os pacientes que têm mercúrio elevado, mas que não apresentam repercussão clínica, seria uma orientação dietética, o uso de alguns quelantes alimentares ou mesmo medicamentosos para reduzir esse nível de mercúrio no organismo. No caso dos pacientes que já têm uma lesão instalada, as crianças com graves alterações neurológicas, por exemplo, a gente pretende entrar com fisioterapia, terapia ocupacional. O objetivo do projeto é garantir uma assistência multidisciplinar.
Quais os sintomas que o senhor mais observa entre os Munduruku que acredita estarem relacionados à contaminação por mercúrio?
Os sintomas que a gente mais vê, e que é muito parecido com o que a Fiocruz observa, são: alteração da atenção, queixas neurológicas como adormecimento nas mãos e nos pés e redução da capacidade de concentração.
O que observamos também, mas ainda não conseguimos provar a relação, é um alto número de crianças que nascem com problemas cerebrais. Precisamos continuar estudando, e é difícil provar algo que pode ter outras causas. Porém, nessas regiões, o mais provável é que a causa seja mesmo a intoxicação mercurial.
O DSEI Tapajós é o DSEI com o maior número de cadeiras de rodas do Brasil, a maior parte delas sendo utilizadas por crianças. É um dado importante. Por que isso? É coincidência estar em uma área com muita alteração ambiental? O mercúrio pode causar isso, quando a gestante tem altos níveis, a criança pode se desenvolver com defeito de fechamento do cérebro e, se não ocorre aborto, elas nascem com deficiências.
E esse dado das cadeiras de rodas que demandaram nem reflete a atualidade, porque muitas dessas crianças morrem mais cedo. Quando a criança tem uma má formação do sistema nervoso, que é o que está acontecendo, ela fica muito vulnerável. Acaba morrendo entre 10 e 11 anos de idade porque tem menos defesa, o sistema imunológico dela não funciona, ela não tosse direito, não engole direito, depende de alguém que dê comida na boca dela. Ficam mais comuns também quadros de pneumonia e infecção respiratória. Isso acontece com qualquer criança que nasça com quadro de paralisia cerebral, tendo ou não o mercúrio como causador.
Então uma coisa importante seria também começar a estudar a mortalidade dessa faixa etária de 5 a 10 anos, crianças indígenas estão morrendo e a gente nem tem os seus diagnósticos. Tem que fazer essa estatística, ver a sobrevida que as crianças estão tendo.
Podemos dizer que existe uma alta mortalidade infantil entre os Munduruku e que existe uma relação possível com a contaminação por mercúrio?
É uma relação mais direta. O metilmercúrio atravessa a barreira placentária e, já nas primeiras semanas, afeta a formação do sistema nervoso. Alguns fetos têm o sistema nervoso bastante afetado e a reação do organismo é espontânea. Então você vê mais abortos entre pessoas que têm maiores níveis de mercúrio no sangue. É isso que a gente está vendo no Tapajós. Esse é o problema, o pessoal acha que o mercúrio dá um quadro clínico, mas dá um monte de coisas, desde alteração da tireóide, puberdade precoce, depressão, hipertensão arterial, alterações hepáticas.
Qual a diferença entre esses quadros de contaminação entre os Munduruku e o caso de Minamata? Quão distante os moradores da bacia do Tapajós estão desta realidade? É um futuro possível?
É um quadro diferente. A intoxicação na Amazônia é mais crônica e lenta. Não é um quadro como Minamata, onde as pessoas apresentaram níveis mais elevados de mercúrio e tiveram muita repercussão no sistema nervoso. Na Amazônia são repercussões de alteração do sistema nervoso periférico, adormecimento, alteração da capacidade cognitiva. São quadros mais subclínicos ou que são mais difíceis de reconhecer do que Minamata, a não ser os casos das crianças, que ainda temos que estudar.
Mas uma semelhança é que mesmo no caso de Minamata, onde houve níveis elevados de contaminação por mercúrio e uma exposição muito rápida e aguda, demoraram 30 anos para reconhecer que aquele quadro clínico era consequência da intoxicação mercurial. Isso no Japão, onde a assistência à saúde é melhor e as pessoas têm mais acesso.
Então, acho que na Amazônia existe esse componente de ser um quadro clínico diferente, mas também tem uma característica de que a gente é a região com um dos piores acessos à saúde, assistência médica e média de médicos por habitantes do planeta. Nosso número é compatível com as áreas subsaarianas. Isso é um problema sério.
Por que é tão difícil cravar que quadros clínicos estão relacionados ao mercúrio?
Porque não é uma malária, na qual a pessoa tem febre dia sim dia não, você vai lá, tira o sangue, vê que é o parasita, e pronto: malária. O mercúrio é multifacetado e aí que está a dificuldade de as pessoas entenderem e reconhecerem que isso é importante, que isso é a gênese de vários problemas. Acho que temos que fazer um trabalho realmente educativo, esclarecedor. Muita gente da imprensa me liga e pede para entrevistar um “paciente típico de mercúrio”, mas não temos isso. Porém, posso apontar um monte de gente que examinei na aldeia e tem tal e tal sintomas.
As pessoas esperam que se estão contaminadas vão apresentar doenças, mas não é bem assim, algumas pessoas podem estar com níveis elevados, sem nenhuma repercussão ainda no organismo. Isso não significa que não haja problemas. Quando você vê uma comunidade com altos níveis de mercúrio é porque existe uma alteração ambiental grave acontecendo nas proximidades.
O mercúrio é uma coisa interessante de estudar, ele é um indicador. Quando você vê que este indicador está alto, você está vendo a ponta do iceberg. Por baixo daquilo existe uma alteração social, ambiental, cultural, econômica grave e aí repercute na segurança alimentar, no bem viver, aumentando a chance de depressão, ansiedade, e por aí vai.
Cenas do documentário
A origem de todo esse mercúrio é, de fato, a atividade garimpeira?
É importante falar que o garimpo é o principal disponibilizador de mercúrio, mas não dá para deixar de falar do deflorestamento, das queimadas, queima de biomassa, isso precisa ser falado porque também são fontes de disponibilização de mercúrio no ambiente. Porque o solo é rico em mercúrio. É importante dizer que o mercúrio industrial usado para extrair o ouro continua sendo uma fonte importante de contaminação ambiental, mas existe a discussão que tenta entender se é a fonte principal.
Eu acredito que a fonte principal é toda a degradação do solo e dos igarapés que são destruídos por essa atividade garimpeira e essa água barrenta caindo toda no rio. Quando você joga essa lama toda, o mercúrio que está ali no solo vai sofrer uma transformação no fundo do rio em regime de anoxia e se tornar metilmercúrio, que é mais perigoso para os organismos.
No documentário “Amazônia, a Nova Minamata?” aparece o senhor sofrendo ameaças ao tentar voltar para entregar os resultados dos níveis de mercúrio para aldeias Munduruku no alto Tapajós. Essas ameaças são comuns?
É bem comum e é uma outra faceta desse tema. Existe uma violência velada contra as pessoas que estudam o tema. Para o cara que vem para a Amazônia, estuda e vai embora, beleza. Mas para a gente que está aqui no dia-a-dia, tem esse componente. Esse foi um episódio que aconteceu comigo, tentei voltar para deixar os resultados e fui atacado pelo pessoal que não quer falar sobre isso. Então, uma coisa séria que acontece na Amazônia é a violência contra o conhecimento e trabalho científico. As pessoas não querem discutir e sim desqualificar os trabalhos. Isso é uma coisa real, muito grave.
O negacionismo da contaminação por mercúrio colabora com a subnotificação dos casos?
Acho que o negacionismo não impede a notificação, mas afeta que a gente tome atitudes políticas sérias para enfrentar o problema. A notificação é muito afetada por falta de conhecimento do tema, principalmente das equipes de saúde na ponta. Como a gente não fala muito sobre isso, as pessoas não conhecem e também não investigam. Por isso que a Fiocruz ofereceu treinamento sobre o tema. Então a notificação melhora com a capacitação de pessoas que conheçam o tema e estejam atentas.