Procuradores identificam problemas “insanáveis” e violações de acordos internacionais no projeto que pretende liberar mineração e garimpo em terras indígenas. Regime de urgência aprovado na Câmara fere o direito à consulta prévia das comunidades afetadas.
Nem as justificativas encontradas na guerra da Ucrânia, com uma alegada crise de fertilizantes, nem um suposto “relevante interesse social”. Para procuradores federais e especialistas em legislação indigenista, os argumentos do governo Bolsonaro para colocar o Projeto de Lei (PL) 191/2020 em votação em regime de urgência não são suficientes e afirmam que a matéria é inconstitucional.
As declarações do presidente Jair Bolsonaro (PL), de que o Brasil precisa avançar com a mineração em terras indígenas para resolver uma suposta crise na importação de potássio da Rússia, surtiram efeito e os deputados da base governistas tiraram o projeto para mineração da inércia com um requerimento de urgência para votar a proposta sem discussão nas comissões de mérito da Câmara.
Em tese, o PL 191 altera os artigos 176 e 231 da Constituição (ver box abaixo) para estabelecer condições especiais para mineração e outras atividades econômicas em terras indígenas (como exploração de petróleo, construção de hidrelétricas e projetos de agricultura) mas, na prática, segundo os juristas ouvidos pelo InfoAmazonia, a proposta retira dos povos tradicionais o direito de uso pleno de áreas demarcadas e viola tratados internacionais.
Entenda os pontos do PL
A proposta do governo quer alterar os incisos dos Artigos 176 e 231 da Constituição e estabelecer como condições específicas para explorar terras indígenas a própria autorização do Congresso (por decreto legislativo) e o pagamento de indenização sobre exploração das áreas, entre outros. O PL ainda estabelece que compete ao presidente da República encaminhar ao Congresso os pedidos de mineração em terras indígenas para análise do parlamento.
Artigos ameaçados
Artigo 176: O inciso 1º deste artigo da Constituição de 1988 diz que a mineração deverá obedecer “condições específicas quando essas atividades se desenvolverem em faixa de fronteira ou terras indígenas”.
Artigo 231: O inciso 3º desse artigo da Constituição diz que “O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei”.
O Ministério Público Federal (MPF) aponta problemas “insanáveis” na proposta do governo e diz que o texto proposto pode alterar profundamente o modo de vida dos povos indígenas, oferecendo potencial dano e ameaça à vida e à cultura desses povos.
Com o regime de urgência aprovado na Câmara em 9 de março, a própria tramitação do PL já ignora a consulta prévia dos povos tradicionais, como prevê a Constituição de 1988 e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), impossibilitando a participação, oposição e o veto ao projeto.
A advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), avalia que o projeto ignora a condição especial das terras indígenas previstas na Constituição e diz que a proposta em tramitação pretende igualar os territórios protegidos às demais áreas já cobiçadas pela mineração e garimpo.
“A Constituição é clara ao estabelecer a necessidade de condições especiais para qualquer tipo de mineração em terras indígenas e diz que os povos devem ser consultados sempre que um empreendimento for apresentado. Mas o que se busca é uma exceção, igualando a mineração em terras indígenas aos demais empreendimentos de mineração. As terras indígenas correm o risco de desaparecerem”, afirma Juliana.
No caso das terras indígenas ainda não homologadas, o PL prevê a possibilidade de aprovação dos projetos sem qualquer tipo de participação indígena, o que “pode colocar em risco povos totalmente isolados em terras ainda não totalmente demarcadas”, diz a advogada do ISA. O PL também não esclarece quanto os indígenas receberiam pela exploração dos recursos em suas terras, o que só será definido depois, por meio de decretos.
Juliana Batista lembra que a Constituição define que qualquer tipo de intervenção em terras indígenas, incluindo exploração de riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes só podem ocorrer diante de “relevante interesse público da União”, que ainda precisa ser definido por uma Lei Complementar: Tem, como propósito, complementar e explicar algo à constituição. A lei complementar diferencia-se da lei ordinária por exigir quórum com maioria absoluta (41 senadores e 257 deputados). Já as leis ordinárias são aprovadas por maioria simples, ou seja, metade dos votos dos parlamentares presentes mais um.. “O Congresso até hoje nunca definiu o que é relevante interesse público”, explica.
A advogada alerta que um dos artigos do PL 191 prevê também a liberação de garimpo em terras indígenas, “que é totalmente proibido nesses territórios, independente de autorização do Congresso”, e que a tentativa do governo em pautar o assunto, por si só, gera ainda mais tensão nas terras indígenas em conflito com garimpeiros.
Mesmo assim, o texto do PL prevê a possibilidade de autorizar garimpos em terras indígenas “independentemente de estudo técnico prévio”.
O Ministério Público Federal, através da 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais (6CCR/MPF), órgão vinculado à Procuradoria-Geral da República, indica que vai contestar judicialmente a matéria, se ela for à votação. Em nota enviada ao InfoAmazonia, o órgão diz que a nova lei seria “incompatível com o regime de urgência, porque pretende regulamentar a atividade minerária em terras indígenas sem prévio debate no Congresso Nacional sobre as hipóteses de interesse público da União”.
O órgão ainda pede que a Fundação Nacional do Índio (Funai) “adote todas as providências necessárias para coibir a mineração e o garimpo ilegal em terras indígenas, inclusive para a retirada de garimpeiros invasores dessas terras”.
Na semana passada, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal (STF), comentou que “possivelmente” o PL 191 será questionado na Corte.
Subjetividades do presidente
Apesar de ganhar fama como o “PL da mineração”, as formas de viabilização da exploração dos territórios indígenas vão além. “Esse projeto representa um retrocesso gigantesco porque junta tudo contra os indígenas numa lei só. O fato de não se ter definido o interesse público coloca tudo no campo da subjetividade, como essas declarações de falta de fertilizantes para justificar essa votação”, diz Antonio Seixas, da Comissão de Direito Constitucional do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
Seixas afirma que o PL 191 não vai ter aplicação sem a aprovação de uma Lei Complementar como exige a Constituição e lista uma série de inconsistências legais para sua aprovação.
“As terras indígenas têm regime jurídico próprio, e dentro desse regime jurídico o constituinte pensou na época em uma estratégia para preservar essas áreas e os costumes dos povos, os usos, por isso elas foram colocadas como bens da União, que é inalienável e indisponível, é diferente de uma terra particular. Essa é uma das grandes questões sobre a mineração dentro dos territórios indígenas”, explica o advogado.
Seixas fala ainda sobre os efeitos colaterais para além dos territórios e dos povos e afirma que a mudança na legislação aumentaria o desmatamento e o desequilíbrio ambiental na Amazônia. “É um projeto tão violento que além de mineração, inclui aí o uso de transgênicos em terras indígenas e até a construção de hidrelétricas”, informa.
Na semana passada, após aprovar o requerimento de urgência, os deputados anunciaram a criação de um Grupo de Trabalho (GT) para discutir o texto em até 30 dias. Mas até a formação desse grupo, segundo os juristas, está em desacordo com o regimento interno da Câmara.
“Os GTs da Câmara devem debater textos já existentes, mas aqui estamos diante de um texto de uma nova lei, e o foro adequado são as comissões da Câmara. O primeiro passo é questionar a legalidade regimental sobre o GT em si”.
Violação da Convenção Internacional
O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante o usufruto assegurado aos índios sobre seus territórios. O tratado internacional ainda garante o direito à consulta prévia livre dos povos indígenas e assegura a realização de estudos, sempre que necessário, para avaliar o impacto “social, espiritual, cultural e ambiental das atividades de desenvolvimento planejadas sobre eles”. Os resultados desses estudos, segundo o tratado, deverão ser considerados “critérios fundamentais para a implementação dessas atividades”.
Para o 6ª Câmara do MPF , ao contrário do que tem pregado o presidente Bolsonaro e os deputados que endossaram o argumento para acelerar o processo de tramitação do PL, “no estado de guerra, seguindo os termos da Convenção de Genebra, a rede de defesa dos refugiados, crianças, mulheres e de grupos étnicos minoritários deve ser ampliada”.
Segundo o órgão, eventual escassez ou dependência externa para a produção de fertilizantes químicos em benefício de um setor específico da economia nacional, por mais relevante que seja, “não pode servir ao propósito de fragilizar ou aniquilar o direito constitucional dos índios às terras que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo de suas riquezas naturais”.