Disseminação do Covid-19 pelos agentes de saúde do DSEI e as formas locais de tratamento baseadas no bahsese (benzimentos) e em plantas medicinais.
Disseminação do Covid-19 pelos agentes de saúde do DSEI e as formas locais de tratamento baseadas no bahsese (benzimentos) e em plantas medicinais.
por Gabriel Sodré Maia*
No noroeste da Amazônia brasileira, fronteira Brasil-Colombia, existe uma pequena mais importante “cidade indígena” chamada Yaiwa poeya (Cachoeira da Onça) ou Distrito de Iauareté. Esta é uma região de ocupação histórica e anciã dos povos Tukano, Tariano, Piratapuia, Dessano, Tuyuka, Arapasso, Uanano e Peorã, isto é, uma terra dos falantes da língua Tukano Oriental.
Embora a pandemia tenha surgido inicialmente na China, e só depois chegado ao Brasil, em pouco meses avançou no Estado do Amazonas e rapidamente no interior, e nas comunidades indígenas. Diante desse fenômeno, os velhos começaram a recordar dos tempos em que houve a pandemia avassaladora do sarampo e da coqueluche, em que houve muita mortes de seus entes queridos.
O senhor Moisés Maia, por exemplo, na companhia da sua esposa, e seus três filhos pequenos, naquela época, fizeram muito betise para não perder nenhum dos seus filhos. A lembrança dos mais velhos fizeram as autoridades indígenas locais tomarem as devidas providências no uso do bahsese e na administração de ervas medicinais.
Esses dois procedimentos (bahsese e ervas medicinais) foram decisivos também agora no controle do COVID 19. Não obstante, o surto começou aparecer explicitamente após o dia 10 de maio deste ano de 2020, e em menos de um mês já havia 100 suspeitos e cinco casos confirmados pelos testes rápidos e nenhum óbito.
Diante deste quadro alarmante, o médico responsável na comunidade ficou perplexo de tantos contaminados em poucos dias, porém, sem nenhuma morte. Com isso percebeu a eficiência dos bahsese e das ervas medicinais.
O governo federal por meio de Ministério da Saúde e do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) de São Gabriel da Cachoeira-AM, tinham enviado cinco novos aparelhos de entubação, porém não foi necessário seu uso. A equipe de saúde do pólo base de Iauareté orientou os indígenas (população local): aos sentirem os primeiros sintomas da doença a permanecerem em casa e que o seu tratamento pudesse ser feito com os conhecimentos tradicionais de bahsese e ervas medicinais e também sob acompanhamento do agente de saúde. Assim, a população atendeu a recomendação.
Para combater a pandemia do COVID 19 os indígenas de Yaiwapoewa usaram seriamente os conhecimentos tradicionais de bahsese e do manejo das ervas medicinais (cascas, folhas, raízes e cipós). Assim, as pessoas foram compartilhando quais as ervas mais eficiente no combate da doença.
As mais procuradas e indicadas foram;
– sakudáa
– Ʉhsodáa
– Wehti kahseri
– Irimãũ
– oapũrĩ
– biapũrirõ
– omôkahseri
– yãbu pũrĩ
– pakarũ kahsero
– ohpe e sĩkata (os dois materiais de multiúso, serve para a defumação após o bahsese)
No Distrito de Iauareté, o alcance do COVID 19 foi por meio da equipe de do Polo Básico no mês de Abril de 2020. A exigência era tanto com a população, para prevenir o alcance da pandemia, até uma viajem simples ao município categoricamente estava proibido. Mas, a fragilidade e a incompetência foram demonstrados pelos agentes de saúde, isto é, a falta de ética profissional (aqui não citarei nomes por questão de ética) com os povos nativos deste Distrito de Yaiwapoewa.
A equipe que deveria proteger a saúde indígena, foi a protagonista pela disseminação do COVID 19, além do mais omitiu com a verdade sobre a doença, alegando que o profissional estava com uma forte gripe. Isso ocorreu no início do mês de abril. Tanto que a doença intensificou no mês de maio. Reconhecendo a intensificação da doença, a equipe de saúde fez visitas domiciliares, orientando a recomendação do Ministério da Saúde (de lavar as mãos com água e sabão, uso de máscara, evitar aglomeração e praticar o distanciamento social), para o acompanhamento dos suspeitos.
Para os indígenas, esta pandemia é uma doença de dohkesekease ou ʉmʉhko pũrirõ (doença do mundo), por isso que a maior parte dos pacientes sente a dʉhpoa pũrĩrõ (dor de cabeça), wʉhake (febre), wãmʉta pũrĩrõ (dor de garganta), e a herimi mahsĩtiro (dificuldade de respirar), tanto que o bahsegʉ (especialista indígena) usa o bahsese com a fórmula de dohkesekease bahsero. Para os velhos e especialistas tukano, a ʉmʉhko pũrirõ é o resultado da revolta dos demiurgos para com os humanos, contra suas ambições e ganâncias, pelo desrespeito aos seres invisíveis guardiões da Natureza.
Só no mês de junho a equipe médica do Exército Brasileiro, vinda de Brasília, esteve em Iauareté, para os primeiros testes do COVID 19 com a população indígena da localidade, isto é, depois de passados meses da existência da pandemia no Brasil. A população de Iauareté estava relativamente tranquila, porque a primeira fase da doença já tinha passado e superado, e ate lá nenhuma morte… tendo os indígenas se precavidos com os conhecimentos tradicionais como o bahsese e ervas medicinais.
Nesta visita dos dias 10 e 11 de junho, feita pelo Exército Brasileiro, o efeito do exame do COVID 19 deu resultado positivo para mais de 500 pessoas, o que logo foi questionado pela população, isto é, muitos que sofreram com os mesmos sintomas, o exame deu-se negativo e alguns que se encontravam com febre alta, para estes o exame deu negativo.
Assim, nem todos ficaram satisfeito com esse trabalho relâmpago. O mais curioso foi quando o médico do Exército pediu encarecidamente que a população continuasse tomando os chás caseiros de sakuda (saracura) durante o tempo que persistisse a pandemia, o que significa que os conhecimentos indígenas estão e continuam na vanguarda. Lamentavelmente os noticiários mostravam o aclive continuo dos contaminados e das mortes cotidianamente. Enquanto isso os indígenas do Distrito de Iauareté enfrentam o COVID 19 com seus conhecimentos tradicionais de bahsese e ervas medicinais.
Desde outrora o conhecimento tradicional do uso de bahsese e ervas medicinais foram pertinentes na vida dos indígenas do alto Rio Negro, porque naquele tempo não havia medicamentos industrializados. Para tanto, o essencial de tudo é que os povos indígenas são guardiões da natureza, sempre respeitando a floresta, os rios, os animais aquáticos, animais aéreos e os animais terrestres.
Por outro lado, muitos representantes dos poderes públicos, pela ignorância peculiar, afirmam que no Brasil os indígenas são “indolentes”. Lamentável! Por outro lado, a sabedoria dos indígenas continua a valorizar e a preservar o bahsese e o uso de ervas medicinais. Esses dois fatores contribuem ativamente para a existência e a resistência dos povos nativos ao longo dos tempos. Preservando nossos bahsese e nossas ervas medicinais continuaremos salvando vidas. Espero cada vez mais que a ciência busque diálogos mais simétricos com os conhecimentos indígenas.
*Mestre e Doutorando em Antropologia Social/UFAM Membro do Colegiado Indígena, PPGAS/UFAM Pesquisador do Núcleo do Estudo da Amazônia Indígena/NEAI/PPGAS/UFAM Bolsista CAPES
Pandemias na Amazônia é um mapeamento colaborativo das narrativas e relatos sobre os modos de pensamentos e as estratégias dos povos indígenas e comunidades tradicionais em torno das crises epidêmicas e ambientais na Amazônia.
O projeto desenvolvido pelo NEAI/UFAM (Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena) com o InfoAmazonia permite às comunidades e/ou seus mediadores inserir em uma plataforma digital conteúdo de texto, áudio e vídeo