Acesso ao auxílio emergencial do governo forçará saída para cidades. Distância de UTIs mostra que aldeias precisam evitar ao máximo entrada do vírus.
Desde os tempos do Brasil Colônia, quando acomeditos pela “peste das bexigas”, por volta de 1660, ou o “pestilento mal”, na década de 1720, gerações de indígenas carregam a memória dos estragos de uma epidemia. Por isso, desde a chegada do novo coronavírus na América do Sul, em fevereiro, os povos indígenas da Amazônia começaram a se organizar para se isolar em suas aldeias, estratégia considerada neste momento a mais factível e eficiente para que vidas sejam preservadas.
Aldeias na Amazônia estão fechando estradas, para evitar um contato social maior, ou assistem a alguns de seus membros decidirem ir para mais longe, e passar a viver, sozinhos, no meio da floresta, no chamado auto isolamento. Porém, ao contrário do período colonial, em pleno século 21, existem vários obstáculos que dificultam um isolamento completo.
Outro entrave é o convívio com garimpeiros ilegais, que invadem as terras indígenas aos milhares. A proximidade entre os invasores e as aldeias pode estar relacionada com a morte de um adolescente Yanomami de 15 anos no dia 10 de abril em Boa Vista, Roraima. Ele foi, oficialmente, o primeiro indígena que vivia em uma aldeia a perder a vida por causa da Covid-19 no Brasil.
O estudante amazônico é parte de uma população estimada, segundo o Censo IBGE 2010, de mais de 430 mil pessoas, que vivem em toda a Amazônia Legal. O Brasil tem hoje 723 áreas indígenas, que ocupam 13,8% das terras do país. A maior parte delas está na Amazônia. São 424 áreas que representam 115,3 milhões de hectares ou 23% do Brasil.
Mapa das Terras Indígenas na Amazônia
Mais de 98% das áreas indígenas brasileiras estão na região amazônica. De acordo com a plataforma de monitoramento da situação indígena na pandemia do novo coronavírus, criada pelo Instituto Socioambiental, até o dia 13/04 ocorreram três óbitos em áreas rurais e havia 16 casos confirmados da doença.
“Nós, indígenas, estamos retornando novamente para o ano de 1500, onde fomos exterminados. Agora, com esta nova pandemia, que também vem para novamente nos exterminar, está tudo muito difícil mais uma vez”, afirma Elizângela da Silva, da etnia Baré, uma das coordenadoras do Departamento de Mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN).
Isolamento difícil
Em toda a Amazônia, a preocupação das lideranças indígenas, de ONGs e de setores do governo federal tem sido conscientizar as populações para que elas não saiam das aldeias neste momento.
O que passa a ser cada vez mais difícil. Vários indígenas precisam, nesta semana, sair para a cidade e retirar, no banco, a ajuda de R$ 600 aprovada no Congresso Nacional, e sancionada pelo Planalto, para ser distribuída às pessoas mais carentes durante a pandemia.
“Não temos outra saída. A obtenção dos benefícios está concentrada nas cidades de São Gabriel da Cachoeira, Santa Isabel do Rio Negro e Barcelos. A população que está dentro dos territórios tem que se deslocar por causa do benefício social”, afirma a líder Baré, etnia que habita o noroeste do Amazonas.
“Há também o pessoal que transita pela fronteira [do Brasil com a Venezuela] e oferece riscos para quem mora nas pequenas comunidades ao longo da calha do Alto Uaupés e no rio Negro”, afirma Elizângela.
Na Terra Indígena Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, a prevenção para o bloqueio da aldeia está em seu grau máximo. “Estamos tendo muito cuidado com a pandemia, principalmente para não deixar nenhuma pessoa de fora entrar. Só entram na terra indígena Uru Eu Wau Wau as pessoas de Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena)”, afirma Bitaté, estudante e líder local de 19 anos. O cuidado, segundo o representante indígena, será agora redobrado quando parentes tiverem que sair para receber o benefício social do governo.
“O risco de deslocamento, neste ir e vir para cidade, é imenso. A situação vai ficar preocupante. Os índios são vulneráveis e precisam de uma estratégia especial para manter o isolamento”, afirma Sofia Beatriz de Mendonça, médica sanitarista e coordenadora do Projeto Xingu na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Apesar de a realidade dos indígenas ser muito distinta ao longo da Amazônia, a pesquisadora defende que, nas aldeias, em geral, os índios vão precisar de suprimentos alimentícios, quando for o caso, munição e armas para a caça, como também utensílios para a pesca. “Além de planos bem definidos para remoções via aérea, por avião ou helicóptero, se for necessário”, afirma Sofia.
Respiradores a centenas de quilômetros de distância
As longínquas distâncias amazônicas, onde existem aldeias que estão a 12 horas de voadeira, gera grande apreensão entre os indígenas caso o vírus consiga entrar em algumas aldeias e passe a circular entre os moradores.
“Tem lugares que estão a mais de 500 quilômetros de um respirador. O contexto amazônico, com populações dispersas e de difícil acesso, é boa defesa em um primeiro estágio da epidemia. Mas ruim em um segundo momento, quando o vírus chegar. O grande problema no Norte é a falta de estrutura do sistema de saúde”, afirma Caetano Scannavino, um dos coordenadores do Projeto Saúde e Alegria. “É uma situação complicada que vai piorar se houver focos da epidemia no interior amazônico”, diz.
De acordo com Sofia Beatriz Mendonça, a estrutura de saúde para atenção aos indígenas, que está bem estruturada dentro das aldeias – e todos os profissionais de saúde de fora vão ter que completar a quarentena, segundo o governo, antes de entrar em territórios indígenas – começa a ter gargalos quando chega no universo do SUS, nas áreas urbanas. Como não existe atendimento para casos graves fora dos centros urbanos, índios com coronavírus vão ter que dar entrada em hospitais nas grandes cidades ou capitais amazônicas.
Se for em Manaus, por exemplo, onde o sistema de saúde está sobrecarregado pelos casos de coronavírus da cidade, não deve haver vagas nas UTIs e muito menos respiradores disponíveis. Tanto é verdade que um hospital de campanha só para indígenas está sendo montado na capital do Amazonas.
“Todos vão estar sujeitos às lacunas que todos conhecem do SUS. Por isso, manter o isolamento e não deixar entrar o vírus nas aldeias é importante”, diz Sofia, da Unifesp.
Além da construção dos 200 leitos para os indígenas em Manaus, a Secretaria Especial de Saúde Indígena está fazendo o monitoramento dos casos suspeitos em toda a Amazônia e prestando atendimento, quando necessário, nas áreas indígenas. A Funai (Fundação Nacional do Índio), ligada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, também recebeu há duas semanas uma verba de R$ 10,8 milhões para ações emergenciais contra a pandemia. Segundo o jornal Estado de S. Paulo, até segunda-feira, dia 13 de abril, o dinheiro não havia sido aplicado.
A pesquisadora da Fiocruz em Rondônia, Deusilene Dall’Acqua, segue a mesma linha de raciocínio sobre os cuidados que devem ser tomados com os deslocamentos para as cidades por causa do recebimento dos benefícios sociais. Para ela, o importante é os indígenas terem muita consciência neste momento de que o isolamento social nas aldeias é importante. “O grande problema que precisa ser evitado é a transmissão comunitária do vírus na própria aldeia. Mesmo porque existem algumas que são muito próximas uma das outras”, afirma a pesquisadora.
De acordo com ela, além do conflito causado pelos garimpeiros ilegais, que também é uma realidade em Rondônia, conscientizar os povos indígenas é outro grande desafio. “Existem muitos indígenas que moram em áreas urbanas mas se deslocam para as aldeias com frequência. Se eles forem assintomáticos, eles vão acabar fazendo a viagem normalmente”, diz Deusilene.
Para ela, a questão da distribuição dos benefícios sociais, apesar de fundamental importância para os mais necessitados, deveria ter recebido uma atenção especial por parte dos gestores públicos. “São os problemas que temos dentro dos vários tipos de Brasil. A maioria dos indígenas são ribeirinhos. Eles vão ter que entrar em barcos para ir à cidade sacar o dinheiro. Haverá sempre contato com outras pessoas, o que pode aumentar o risco de contágio”, diz.
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