Série de encontros ao longo de 2019 reuniu mais de 100 pescadores para articular redes de monitoramento comunitário de 20 espécies de peixes migratórios
Série de encontros ao longo de 2019 reuniu mais de 100 pescadores para articular redes de monitoramento comunitário de 20 espécies de peixes migratórios. Foto acima: Projeto Ciência Cidadã para a Amazônia apoiou a realização de 260 oficinas e encontros, envolvendo cerca de 8 mil pessoas (Vanessa Eyng/Inst.Mamirauá)
Por Thadeu Melo
Se o monitoramento do desmatamento e das queimadas na Amazônia brasileira é feito quase em tempo real, via satélite, não é tão fácil acompanhar aquilo que acontece abaixo do nível da água nos 6,8 milhões de km² da maior bacia hidrográfica do planeta.
Para ajudar a superar esse obstáculo, mais de 30 organizações de seis países, parceiros da rede Ciência Cidadã para a Amazônia, mobilizaram ao redor de 100 grupos de pescadores de vária regiões da bacia amazônica. Habituados a acompanhar a rotina de curimatãs, jaús, surubins e outras espécies de relevância ambiental, social e econômica, ribeirinhos e ribeirinhas podem agora compartilhar seu conhecimento único sobre uma dinâmica invisível aos olhos leigos.
“Há uns 10 anos, a gente via bons aracus, matrinxãs, corvinas e uma quantidade de peixes maior. Agora, se vê menos, pequenos; aracus e matrinxãs já não se encontra muito. O trabalho de monitoramento de pesca é para cuidar para que meus filhos conheçam todos os peixes, como eu conheci, e vamos recuperá-los para que meus filhos conheçam.” Redina Lopez, monitora da rede na comunidade de Santa Martha, na Colômbia.
O desafio de informação sobre os rios, igarapés e lagos, que cobrem menos de 2% da área do bioma e concentram quase toda a população, segue considerável para organizações e cientistas, mas as novas parcerias estão buscando preencher as lacunas de dados, principalmente por meio da ‘ciência cidadã’.
“Está claro que, para entender a ecologia dos peixes e a biodiversidade aquática, é preciso contar com a parceria fundamental de pescadores e pescadoras”, diz Mariana Varese, diretora de Paisagens Amazônicas da Wildlife Conservation Society (WCS), organização que encabeça o projeto Ciência Cidadã para a Amazônia.
A rede desenvolve iniciativas de coleta de dados com o apoio das pessoas que vivem em cidades e comunidades nos meandros da floresta, em esforços de monitoramento participativo da biodiversidade.
O levantamento de dados permitirá aprofundar a compreensão sobre os padrões de migração dos peixes mais importantes na Amazônia, contribuindo para o manejo sustentável da pesca e a preservação dos ecossistemas aquáticos prioritários.
“Nem satélites, nem radares, nem modelos ou laboratórios conseguem indicar o estado das principais espécies de peixes comerciais com o realismo que pescadores em seus barcos e portos conseguem fazer”, esclarece Mariana, que há dois anos e meio articula especialistas na busca de soluções para os desafios do manejo na escala das bacias dos grandes rios amazônicos, como as do Madeira, do Negro e do Ucayali.
Impactos das barragens
Maior bacia tributária do rio Amazonas, a do Madeira ocupa 19% do bioma, abrangendo áreas de Bolívia, Brasil e Peru. Seu território, de 1,3 milhão de km², equivale a duas vezes o tamanho da França, sendo drenado por um rio de mais de 3,3 mil quilômetros de extensão.
Em 2019, 30 pescadores dos três países se reuniram em Porto Velho (RO), como parte da iniciativa na região, promovida pelo Instituto Ecoporé e pelo Laboratório de Ictiologia e Pesca da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), com apoio da WCS.
Há 23 anos estudando peixes pela UNIR, a professora Carolina Doria facilitou a mobilização para um encontro que esperava há muito tempo. “A gente conseguiu reunir pescadores dos três países que utilizam o mesmo recurso, seja a água ou peixe, e, consequentemente, dividem os mesmos problemas, tanto acima quanto abaixo”, conta a professora, que estabeleceu uma rede de pesquisadores dedicados a entender a dinâmica dos peixes para auxiliar no manejo da pesca na bacia. “É a primeira oportunidade que temos de protagonismo dos pescadores no debate sobre os impactos, seja dos empreendimentos hidrelétricos ou da mineração”, diz.
Primeiro rio a contar com duas grandes hidrelétricas na Amazônia, o Madeira se transformou em uma referência negativa do que pode acontecer nos outros sistemas hídricos, caso barragens sejam construídas, como prevêem os planos energéticos que o país elabora desde o regime militar. As usinas de Santo Antônio e Jirau, levantadas entre 2008 e 2016, já estão alterando a dinâmica migracional dos peixes, como é o caso da dourada.
“Os pescadores do Madeira estão sentindo muito claramente os efeitos das hidrelétricas, e isso coloca eles na posição em que ter essas informações de monitoramento da pesca é muito importante”, conta Vanessa Eyng, analista de pesquisa do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, responsável pelo encontro de mais de 30 pessoas das bacias dos rios Tapajós, Negro, Solimões e também do Madeira, realizado em Tefé (AM).
“Os pescadores daqui ficaram muito interessados em ouvir os pescadores do Madeira, porque lá eles já estão vivendo uma realidade que pode ser o futuro de outras bacias, como a do Tapajós”, completa.
Realizado em uma área de manejo comunitário de pesca bem-sucedido – no caso, o do pirarucu dos lagos das Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Amanã -, o encontro de brasileiros permitiu aos pescadores a troca de experiências sobre métodos de monitoramento das espécies que, diferentemente do pirarucu, migram por toda a bacia, sem respeitar fronteiras, desde o Atlântico até os Andes.
Além da experiência realizada na região de Mamirauá, o encontro também permitiu a apresentação dos resultados obtidos em iniciativas realizadas em Santarém (PA), pela Sociedade para Pesquisa e Proteção do Meio Ambiente – Sapopema, e em Porto Velho, pelo Instituto Ecoporé.
Realizado em Pucallpa, no Peru, o terceiro encontro, promovido pelo Instituto do Bem Común, reuniu pescadores das principais bacias do país, além de representantes da Colômbia e do Equador.
Tecnologia em escala amazônica
O aplicativo para smartphone Ictio é utilizado para estimular o auto monitoramento da pesca. A atualização é simples e o sigilo na coleta dos dados, garantido. Foi criado pelo Cornell Lab of Ornithology, em parceria com a WCS e contando com a colaboração das organizações que fazem parte do projeto Ciência Cidadã para a Amazônia.
“Os encontros proporcionaram a percepção de que esse não é um trabalho que funciona individualmente, e que aquele dado que se coleta no dia-a-dia tem uma dimensão muito grande”, conta Vanessa.
“Quando o Ictio chegou na comunidade, a maioria dos pescadores não aceitava os registros, porque eles pensavam que era para denúncia e ia atrapalhar o seguro defeso”, conta Francivane Martins de Oliveira, pescadora da comunidade Boca do Mamirauá, que participou do encontro de Tefé.
“Depois das reuniões feitas na comunidade e através dos cursos que eu e os colegas participamos, hoje, os pescadores já aceitam os registros, porque ajuda a saber, por exemplo, quantos peixes eles pescam na semana e no mês, fazendo muito prática a contagem dos peixes que consumimos no dia a dia”, completa.
Lançado em julho de 2018, o Ictio já recebeu mais de 3 mil registros de capturas, realizados em 41 bacias hidrográficas. Vinte espécies de peixes migradores na Amazônia são foco da iniciativa, pois representam 80% das capturas comerciais, garantem a segurança alimentar e são fonte de renda para pescadores ribeirinhos e urbanos. Até aqui, o surubim foi a espécie mais registrada, seguida do curimatã e do pacu, em um universo de mais de 2,5 mil espécies de peixes de água doce conhecidas no bioma.
Os pescadores indicaram outros usos que podem ser dados ao app. Entre as utilidades do aplicativo, do ponto de vista de quem está na rotina da pesca, surgiu o interesse no acompanhamento das variações no preço do pescado, na variação da disponibilidade do recurso ao longo do tempo e também na possibilidade de acompanhar o deslocamento dos cardumes quase em tempo real, permitindo melhor planejamento da atividade.
“Com o aplicativo, trabalhamos individualmente, cada um registra a pesca, mas a nossa maior dificuldade coletiva ainda é a falta de internet, que pode melhorar com a parceria das colônias e outros órgãos parceiros”, explica Francivane.
Realizado historicamente em papel, nos portos de desembarque, o controle da estatística pesqueira na Amazônia não possui a regularidade necessária para subsidiar políticas públicas ou ações de manejo pesqueiro pela própria sociedade. Para consolidar esforços de organizações que já realizam registros de pesca, a plataforma online do Ictio que também compila registros de outros sistemas de monitoramento que utilizem meios de coleta de informação como fichas e questionários.
“Já estamos vendo que há resultados”, comenta Victor Sobrevilla, monitor da rede na comunidade Nativa de San Pedro, departamento de Pasco, Peru. “Onde eu vivo, na parte mais alta, já estamos vendo a donzela, os sábalos grandes. Então, com pouco esforço, já estamos vendo os resultados, e, penso que, daqui uns 10 anos, será muito melhor”, completa.
“O aplicativo trouxe uma facilidade para o monitoramento dessas espécies e outras, facilitando que o comunitário, após a captura, possa coletar dados importantes, como a espécie, o peso, se está ou não em período reprodutivo, ajudando a conhecer a dinâmica e o comportamento dele naquele local”, diz Rodrigo da Silva Pinto, comunitário da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá.
Os resultados obtidos pelo monitoramento comunitário feito por voluntários com o Ictio até aqui apontam uma mesma tendência quanto à circulação dos peixes observada no trabalho acadêmico da pesquisadora Marília Hauser na bacia do Madeira. “O que a gente está vendo é que o sistema de transposição das barragens não está funcionando perfeitamente bem para todas as espécies migradoras”, conta Carolina Doria, da UNIR, destacando o caso da dourada, cuja população foi reduzida, acima das barragens.
“O que os pescadores acham interessante é que eles vão conseguir provar o que eles acham que está acontecendo na pesca na sua localidade e que as concessionárias das barragens acham que é ‘papo de pescador’”, finaliza a professora.
Reportagem apoiada pelo projeto Ciência Cidadã para a Amazônia