Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Maracá prevê a realização do manejo de 172 mil hectares de floresta de forma sustentável, mas a Procuradoria do órgão federal afirma que os contratos firmados com as madeireiras não contaram com a participação da comunidade extrativista e descumprem o caráter comunitário do projeto.

O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) suspendeu a extração de madeira no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Maracá, no Amapá, por irregularidades na contratação de empresas para a realização do manejo sustentável de 172 mil hectares de floresta. O órgão apontou falta de participação da comunidade e inexistência de uma ata de assembleia geral para aprovação do projeto.

O manejo madeireiro na área do assentamento está suspenso desde 5 de junho e, segundo o Incra, só será liberado mediante a comprovação da participação da comunidade e da apresentação de justificativas técnicas da sustentabilidade ambiental e social do projeto. A decisão seguiu parecer da Procuradoria Federal Especializada: A Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra é a unidade da Advocacia-Geral da União responsável por representar judicial e extrajudicialmente o instituto, de acordo com as normas da Procuradoria-Geral Federal (PGF). (PFE) e recomendações técnicas do núcleo de gestão ambiental da autarquia.

Em março deste ano, a InfoAmazonia revelou as inconsistências no processo que autorizou o projeto de manejo no PAE Maracá, que foi concedido à Associação dos Trabalhadores Agroextrativistas do Maracá (ATEXMA) em setembro do ano passado, mesmo com pareceres contrários das áreas técnicas do Incra e da Secretaria de Estado do Meio Ambiente (Sema) do Amapá. Na época, o senador Davi Alcolumbre (União Brasil -AP) disse ter atuado diretamente na liberação do projeto. “Com a articulação do nosso mandato conseguimos anuência do Incra para que isso se tornasse realidade”, escreveu o parlamentar em suas redes sociais.

Alcolumbre disse em suas redes que articulou liberação para o projeto de manejo do PAE Maracá. O senador é um dos principais apoiadores políticos do projeto. Imagem: Reprodução/Facebook

No Incra, o projeto foi autorizado em maio de 2023 pelo então superintendente Fábio Muniz, um aliado político de Alcolumbre, ignorando os pareceres técnicos que apontavam “viés empresarial da atividade proposta, sem garantias da sustentabilidade econômica e social dos beneficiários do PAE Maracá”, o que contraria o caráter comunitário para projetos em assentamentos coletivos. A ATEXMA também tentou transferir a operação de manejo para terceiros, o que foi apontado como ilegal pelos técnicos.

Já no governo do estado, comandando por Clécio Luís (Solidariedade), o licenciamento ambiental só foi aprovado após a troca dos membros da comissão de avaliação ambiental, em junho de 2023. A avaliação inicial elaborada pelos técnicos da Sema apontou o risco de escassez de recursos florestais devido à intensidade de corte proposta, com unidades de trabalho: Unidade de Trabalho é a subdivisão em áreas menores de planejamento e controle das atividades florestais. Essa subdivisão possibilita a programação e o controle mais detalhados e precisos das atividades (fonte: Embrapa). de mais de 8 mil hectares, 80 vezes maiores do que recomendava o órgão ambiental. Os técnicos indicaram que as unidades deveriam ter 100 hectares com um ciclo de 35 anos de corte para garantir a sustentabilidade das famílias assentadas. Mas, após a destituição do grupo, um novo parecer foi emitido aprovando o licenciamento com a proposta inicial, para corte com intensidade máxima ao longo de 14 anos de operações.

As empresas envolvidas e o Bolsa Floresta

Até a suspensão, o projeto de manejo no Maracá vinha sendo realizado pela empresa TW Forest, que controlava toda a operação por meio de dois contratos assinados entre a ATEXMA e as empresas Eco Forte e Norte Serviços. 

A TW já explora florestas públicas no Amapá desde 2016 e acumula uma série de infrações ambientais, incluindo desmatamento ilegal e comercialização de madeira sem documento de origem florestal (DOF). Entre 2022 e 2023, a madereira foi multada seis vezes pelo Ibama. Publicamente, a TW Forest se apresenta como responsável pelo projeto em parceria com a Eco Forte, mesmo sem ser parte nos contratos com a ATEXMA.

A autorização de exploração florestal foi entregue à ATEXMA em setembro de 2023 pelo próprio governador Clécio, que anunciou o projeto como exemplo de “uso inteligente” da floresta, em evento que contou também com a presença do senador Randolfe Rodrigues (sem partido).

O manejo no Maracá ganhou ares de programa de governo por meio da chamada Bolsa Floresta, que distribui o lucro da venda da madeira para famílias no assentamento. Segundo informações divulgadas pelo governo do Amapá, 1.013 famílias recebem mensalmente R$ 1.058.

Em janeiro deste ano, Alcolumbre e o governador Clécio visitaram a fábrica da TW Forest em Mazagão, que foi construída em uma Área de Preservação Permanente (APP) às margens do rio Vila Nova.

Senador Alcolumbre é um dos maiores apoiadores do projeto madeireiro no PAE Maracá. Imagem: Reprodução/Instagram

Líder quilombola é ameaçado: ‘não deveria estar vivo’

O PAE Maracá abriga 36 comunidades que vivem basicamente do extrativismo e da pequena agricultura, incluindo seis áreas ocupadas por famílias quilombolas. Moradores do assentamento ouvidos pela reportagem criticam o processo para escolha das empresas e alegam falta de transparência na gestão dos recursos gerados com o projeto.

Segundo o líder quilombola Jesus de Nazaré Videira da Trindade, as famílias não foram consultadas sobre o projeto madeireiro. “O que queríamos era discutir um projeto que fosse bom para toda a comunidade, mas qualquer um que se levante contra este projeto que está aí vira alvo”, diz o líder, que tem recebido ataques desde a suspensão do pagamento do Bolsa Floresta em consequência da decisão do Incra.

O que queríamos era discutir um projeto que fosse bom para toda a comunidade, mas qualquer um que se levante contra este projeto que está aí vira alvo.

Jesus de Nazaré Videira da Trindade, líder quilombola

Trindade diz que o pagamento da bolsa se “tornou uma forma de cooptação das comunidades” e que tem gerado desunião. “Eles dizem que as famílias vão parar de receber o benefício por nossa culpa, mas a culpa é de quem não fez o processo da forma certa. Muitas pessoas assinaram documentos só para receber a bolsa, e eu entendo, mas algumas nem sabem o que assinaram. Não existe transparência nas ações da ATEXMA, eles chamam uma reunião e pedem para as pessoas assinarem papéis para receber o Bolsa Floresta”, afirmou à reportagem.

Cerca de 980 famílias que vivem no assentamento não participam do programa e não recebem valores da venda da madeira porque não assinaram anuência para implantação do projeto. “Se é uma área coletiva, onde todos têm direito, não deveria haver essa divisão”, opina.

O morador compartilhou áudios com a reportagem que circulam em grupos de mensagens do Maracá, em que ele é apresentado como culpado por ter denunciado irregularidades do projeto para a imprensa: “Aquele seu Trindade, que não sei nem porque ainda está vivo”, diz um homem não identificado nas mensagens que circulam nos grupos, que continua: “não entendo nem porque ainda está na face da terra, porque se fosse lá no Pará ele já nem tava”. 

Em áudio, homem não identificado e a favor do PAE Maracá diz: “aquele seu Trindade, que não sei nem porque ainda está vivo”.

Por suas declarações dadas à imprensa contra o projeto, o líder quilombola está sendo processado pelo governador Clécio Luís e pelas empresas Eco Forte e TW Forest pelos crimes de calúnia, injúria e difamação.

Quem também não assinou anuência para o projeto é o professor e vendedor de castanha Ezequias Rosa Vieira, que reclamou da falta de participação das comunidades na discussão do projeto:

“Não somos contra um projeto de manejo para comunidade, somos contra a maneira como ele foi implantado, se tornando uma forma de exploração ilegal de madeira na área do assentamento. Não existe transparência nos contratos, foram assinados sem ampla discussão na comunidade”, afirma o professor.

Não somos contra um projeto de manejo para comunidade, somos contra a maneira como ele foi implantado, se tornando uma forma de exploração ilegal de madeira na área do assentamento. Não existe transparência nos contratos, foram assinados sem ampla discussão na comunidade.

Ezequias Rosa Vieira, professor e vendedor de castanhas

Vieira afirma que, se o projeto tivesse sido melhor discutido, poderia gerar mais ganhos para a comunidade. No entanto, da forma como foi implantado, está beneficiando apenas as empresas envolvidas e uma parte dos assentados. “Deveria ter ocorrido uma ampla concorrência para nós podermos vender nossa madeira pelo melhor preço e condições do mercado”, afirma.

Contratos já estavam assinados

O acordo assinado em janeiro de 2021 entre a ATEXMA e as empresas Eco Forte e Norte prevê a exploração e venda de R$ 401 milhões em toras da área do assentamento. No entanto, esse acordo já estava assinado quando foi apresentado à comunidade, em novembro daquele mesmo ano.

Segundo consta nos contratos assinados pela ATEXMA, a Eco Forte paga R$ 103 pelo metro cúbico de madeira retirada da área do assentamento, mas quase metade deste valor, R$ 50, fica com a Norte pelos serviços de corte e transporte da madeira. Os outros R$ 53 são destinados para a associação e distribuídos por meio do Bolsa Floresta.

A Norte está registrada em nome de Loane Marques Fernandes, esposa de Obed Lima Corrêa, gerente de licenciamento da TW Forest. Segundo dados da Receita Federal, a Norte funciona no mesmo endereço da TW Forest, com o mesmo número de telefone e o mesmo email.

Quase metade de tudo que o projeto Maracá produz fica com empresas ligadas à TW Forest para operacionalizar corte e transporte da madeira que ela mesmo compra. Imagem: Reprodução/Incra

Em março deste ano, após a publicação de reportagens sobre as suspeitas de irregularidades no Maracá pela InfoAmazonia, pela Folha de S. Paulo e por jornais locais, o atual superintendente do Incra no Amapá, Gersuliano da Silva Pinto, anunciou uma comissão para reavaliar o projeto de manejo no Maracá.

Na época, em entrevista à InfoAmazonia, Gersuliano confirmou que a autorização concedida para o projeto contrariou pareceres técnicos e que não sabia porque apenas parte dos moradores do assentamento estavam recebendo os valores do Bolsa Floresta, já que se trata de uma área extrativista de uso coletivo. “Nós vamos investigar e entender porque eles chegaram nessas pessoas. Eu imagino que, nesse caso, a divisão [dos lucros do projeto] deveria ser para todos. Mas precisamos entender porque foi feito desta forma”, afirmou.

Presidente da ATEXMA convoca protesto: ‘vamos invadir o Incra’

Logo após ser notificado da suspensão do projeto de manejo no Maracá, o presidente da ATEXMA, Rogério Chucre Flexa, convocou uma assembleia de emergência, realizada no domingo, 9 de junho, para uma nova “aprovação da proposta de corte de espécies com uso madeireiro”.

O edital de convocação da assembleia não cita a suspensão do projeto, mas em áudios atribuídos a Chucre e enviados a moradores, o presidente teria afirmado “que quem não for na assembleia está passível de perder o recurso do Bolsa Floresta”. Ele diz que o encontro seria exigência de “uma auditoria”.

Na assembleia convocada às pressas, o presidente da ATEXMA colocou em xeque o pagamento das famílias e cobrou uma decisão dos moradores: “Se não tomarmos uma decisão hoje não terá mais plano de manejo florestal e não terá também pagamento no final do mês”, disse.

Chucre também convocou as famílias do PAE Maracá para uma manifestação em frente à sede do Incra, marcada para esta quarta-feira, 19 de junho. Na mensagem compartilhada com os moradores, Chucre pede que cada pessoa grave um áudio para “fazer chegar às autoridades”. 

“Importante que fale que, caso o Incra não resolva, nós vamos invadir o Incra e fechar a BR”, diz a mensagem enviada pelo presidente da ATEXMA. 

Em grupo de WhatsApp, Rogério Chucre convoca moradores a defender o projeto. Foto: Reprodução/WhatsApp

A reportagem da InfoAmazonia tenta um contato com o presidente da ATEXMA desde março deste ano, mas ele se recusa a atender aos pedidos de entrevista. Todos os meses, o presidente da ATEXMA anuncia o pagamento da Bolsa Floresta nas redes sociais ao lado da diretoria da associação, que inclui Francisco Santos, pré-candidato à prefeitura de Mazagão pelo PDT. 

A reportagem também buscou esclarecimentos com o governo do Amapá sobre a suspensão do projeto e sobre os questionamentos a respeito da distribuição dos recursos do Bolsa Floresta, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.

Davi Alcolumbre se manifestou por meio de nota defendendo o “desenvolvimento sustentável na região” e afirmou que este é “o grande desafio, não só para nós, amazônidas, mas também para os brasileiros”. 

O senador não informou qual foi a sua participação para a liberação do projeto junto ao Incra, como informou nas suas redes na época, mas afirmou que defende “a participação fundamental dos órgãos ambientais e de fiscalização para que cumpram seu papel técnico e adotem as medidas necessárias para impedir eventuais irregularidades com a sua punição nos rigores da lei”.

Também tentamos contato com o presidente da ATEXMA, Rogério Chucre, mas ele não retornou aos pedidos de entrevista. 

A Eco Forte não respondeu aos pedidos da reportagem. Tentamos contatos com a TW Forest e com os representantes da Norte Serviços, mas também sem respostas. 

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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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2 comments

  1. O município de Mazagão-AP, é palco de inúmeros escândalos e me parece que a justiça está cega diante dos acontecimentos.

  2. todo apoio é necessário a causa dos extrativistas, uma sanha avassaladora se instalou nessa região comprometendo a qualidade de vida das pessoas, o meio ambiente e o Patrimônio Cultural brasileiro, nomeadamente os sítios arqueológicos que são destruídos pelos serviços de execução de aberturas de vias de acesso e pátio de estocagem de madeira. Quando estive em 2017 elaborei um relatório para o Iphan, solicitando que os responsáveis pelo plano de manejo fossem enquadrados. Eles não respeitam a vida das pessoas e o meio ambiente.

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