A Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, está em uma das margens do rio Maú, na fronteira com a Guiana, país onde o garimpo é permitido dentro de TIs. Garimpeiros dos dois países entraram em acordo com indígenas guianenses para exploração e usam território no Brasil para passar equipamentos.

Indígenas do Brasil e da Guiana entraram em conflito na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) no sábado, 11 de maio. Os estrangeiros invadiram o lado brasileiro e foram confrontados por indígenas de Roraima que faziam a vigilância do território, o que resultou em um homem ferido no rosto por uma garrafa de vidro. Não houve outros ferimentos graves.

Este é um novo capítulo de um conflito que a InfoAmazonia passou a acompanhar em janeiro deste ano. As comunidades Mutum e Eren Mutan Ken, ambas da TIRSS, estão na margem do rio Maú, na fronteira com a Guiana, país onde o garimpo é permitido dentro dos territórios indígenas. Os garimpeiros dos dois países estão ancorados no rio e recebem apoio de uma parte dos “parentes”: Os povos indígenas chamam de “parentes” todos aqueles que são indígenas, independente da etnia ou do país. vizinhos. 

Em janeiro, a reportagem acompanhou uma ação de combate do Grupo de Proteção e Vigilância Territorial Indígena (GPVITI), ligado a comunidades indígenas da TIRSS. Os indígenas brasileiros passaram a monitorar as invasões, frequentemente feitas por homens embriagados que levam latas de cerveja para dentro do território, como relatam lideranças da comunidade Mutum. Na época, uma balsa de garimpo foi incendiada.

Balsa queimada em ação do GPVITI, em janeiro deste ano, na comunidade Mutum Foto: Nailson Wapichana/InfoAmazonia


“Depois do que aconteceu lá na Mutum, no mês de janeiro, não parou [o garimpo]. Continua no rio Maú, foi montado mais uma balsa lá no local e tem outras balsas trabalhando, mas usando nossas comunidades para poder passar para a Guiana, para trabalhar no rio Maú. Enquanto a nossa vigilância continua”, explica o coordenador do GPVITI, Anastácio Macuxi. 

A Lei Ameríndia de 2006, da Guiana, determina como deve ser a atuação de garimpeiros no país. Diferentemente do Brasil, a exploração de minérios em terras indígenas guianenses é permitida, desde que exista um acordo com as lideranças, documentado em assembleia e com uma porcentagem do lucro destinada às comunidades. No caso do rio Maú, os garimpeiros têm autorização dos indígenas da Guiana, mas, além de estarem invadindo território brasileiro por terra, eles estão atravessando o rio à noite para garimpar no lado da TI brasileira, como denunciam representantes da Raposa Serra do Sol à InfoAmazonia.

Homens do Grupo de Proteção de Vigilância Territorial da TIRSS Foto: Nailson Wapichana/ InfoAmazonia

Invasão e homem ferido

Em 11 de maio, um dos vigilantes da TIRSS gravou um vídeo no posto de monitoramento que fica na entrada da comunidade Eren Mutan Ken, a 80 km de distância da Mutum. As primeiras cenas mostram latas de cerveja jogadas ao chão, deixadas pelos invasores. Depois, um dos homens aparece com sangue no corpo e um corte na cabeça. O vigilante explica que o indígena foi golpeado com uma garrafa de vidro. 

“A comunidade estava trabalhando de dia, [os indígenas brasileiros] tinham ido para a roça e, à tardinha, às cinco horas, eles [invasores] foram chegando, eram parentes da Guiana num carro dos garimpeiros. E aí, eles estavam embriagados e começaram a xingar a comunidade, começaram a provocar. A comunidade se revoltou e cercou o carro. Eles começaram a derramar a bebida alcoólica deles e bateram no rapaz”, conta Amarildo Macuxi, coordenador da região das Serras e integrante do Conselho Indígena de Roraima (CIR), organização que reúne 263 comunidades indígenas do estado. 

Como os garimpeiros estão ancorados no rio Maú, usam o território brasileiro como passagem até o outro país. No sábado, segundo o GPVITI, os invasores passavam dentro da TIRSS para chegar à comunidade Kanapã, na Guiana. 

Para se proteger após o ataque, o posto de monitoramento da comunidade Eren Mutan Ken foi desativado temporariamente. Anastácio Macuxi, do GPVITI, diz que o grupo está em um momento de reflexão para que os conflitos não sejam ainda piores, porque eles estão sofrendo ameaças de retaliação. 

“É uma coisa que a gente está refletindo, porque segundo a informação que temos, eles estavam se organizando novamente para outro ataque, mas tudo depende da gente também. É uma coisa que a gente está discutindo, como a gente pode fortalecer aquela comunidade”, explicou. 

Em fotos aéreas, é possível ver que o garimpo tem atuado na região e, segundo o GPVITI, muitos dos equipamentos são transportados em trajeto dentro da Raposa Serra do Sol. A legislação brasileira não permite a entrada de estrangeiros em terras indígenas sem a permissão dos líderes e da Funai. 

Garimpo na comunidade Kanapã, na Guiana, na fronteira com a TIRSS Foto: Divulgação/GPVITI

Tentativa de acordo antes do conflito 

Desde o início do ano, os indígenas estão aumentando seus pontos de monitoramento, proibindo a circulação de estranhos, queimando materiais de garimpo e impedindo a entrada de bebidas alcoólicas e drogas dentro das comunidades. 

Em 21 de março, lideranças da TIRSS organizaram uma reunião com os indígenas da Guiana, mas apenas três deles compareceram. O objetivo era apresentar as regras dentro do lado brasileiro e alertar que novas invasões não seriam aceitas. 

“Resolvemos chamar as lideranças da Guiana para uma conversa. Para apresentar os critérios das nossas bases [de monitoramento]. Alguns dos critérios são: não aceitar a entrada de pessoas estranhas, como garimpeiros, materiais de garimpo, bebida alcoólica e combustível de grande quantidade, porque está alimentando as balsas no rio Maú”, explica Amarildo Macuxi. 

Reunião entre lideranças da Guiana e da TIRSS ocorreu em março deste ano, mas invasões continuam. Foto: Amarildo Macuxi/Arquivo Pessoal

A reunião em março com os três indígenas guianenses não terminou em consenso e as invasões continuaram a ocorrer. 

 “Na reunião houve muito conflito entre parentes. Os garimpeiros querem passar com bebida alcoólica, levando materiais de garimpo, como balsa, peças de maquinários e tem parente na Guiana que compactua com isso e tem parente que não aceita os garimpeiros. Então, tem conflito”, contou Amarildo Macuxi.

Apesar disso, os indígenas da Guiana assinaram um documento. Traduzido para a língua inglesa, para que os guianenses pudessem entender, o texto mostra como o trabalho de fiscalização deve funcionar e quais são as regras do território. Entre elas, é proibida: a entrada de turistas e garimpeiros; de bebidas alcoólicas e drogas ilícitas; a entrada de materiais de garimpo e a travessia de veículos e motocicletas entre o Brasil e a Guiana.

Documento foi produzido pelos líderes indígenas da TIRSS e apresentado em reunião com indígenas da Guiana. Foto: Reprodução

Em 14 de maio, o CIR publicou uma nota sobre as violências que estão ocorrendo desde que os indígenas da TIRSS decidiram que não iriam mais aceitar os invasores estrangeiros e garimpeiros. Na TIRSS vivem os povos Makuxi, Wapichana, Patamona, Ingarikó e Taurepang,

“As ações de intimidações e afrontas contra o grupo não são de agora, vêm ocorrendo desde que [os indígenas brasileiros] começaram a agir contra invasões, principalmente [contra] a entrada de bebidas alcoólicas e o garimpo ilegal. A atuação do grupo é legítima, garantida na Constituição Federal, que reafirma o direito à autonomia dos povos e das comunidades indígenas. A instalação do posto de vigilância foi uma decisão das comunidades indígenas que se sentem abandonadas pelas ações de vigilância, fiscalização e monitoramento por parte do Estado brasileiro nas terras indígenas”, diz trecho da nota. 

Segundo Amarildo Macuxi, a PF, a Funai e o Ministério Público foram acionados, e a comunidade espera uma ação do Estado. “Quando a gente faz um trabalho, incomoda muita gente. Estamos em diálogo com as autoridades, para levar as autoridades até a comunidade para averiguar de perto a situação. Como se trata de fronteira é dever da Polícia Federal, mas a gente continua na luta”, disse.

A InfoAmazonia procurou a Polícia Federal de Roraima (PF/RR), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o Ministério Público Federal (MPF) e também o Ministério de Assuntos Ameríndios do governo da Guiana para entender quais medidas estão sendo tomadas para evitar novos conflitos. A PF afirma que “não dá declarações a respeito de possíveis investigações em curso ou sobre planejamento de suas ações”. Os outros citados não responderam aos questionamentos da reportagem.

Sobre o autor
Avatar photo

Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Jullie nasceu e...

Ainda não há comentários. Deixe um comentário!

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.