Em fevereiro, uma equipe de reportagem viajou para a Amazônia, passando tempo com os Sateré-Mawé, documentando sua cultura e conflitos de longa data com empresas de mineração e grileiros. Esta série analisa as novas ameaças impostas aos grupos Sateré e indígenas em todo o Brasil, à medida que são ameaçados pelas políticas favoráveis aos ruralistas do presidente Jair Bolsonaro. A viagem foi financiada pelo Rainforest Journalism Fund em associação com o Pulitzer Center e o Mongabay.
Comunidade de Fortaleza, Pará, Brasil – A cerimônia começa na aldeia de Fortaleza, no Rio Andirá. Um ancião Sateré sopra a fumaça em luvas tecidas de palha, repletas de formigas tucandeira (Paraponera clavata), que podem medir até 2,5 centímetros de comprimento. Os insetos são conhecidos como “formigas-bala”, porque a dor da ferroada é comparável a um ferimento por arma de fogo, chegando a durar 18 horas, e frequentemente acompanhada de náuseas e vômitos.
O rito tem início com uma dúzia de participantes, todos homens jovens, dançando em círculo ao redor de uma cerca. Um a um, eles colocam as mãos nas luvas para serem picados por dezenas de tucandeiras. Um jovem se joga no chão, e mantém as mãos inchadas para cima. Ele tenta não expressar sua agonia, pois apenas aqueles que suportam a dor estoicamente são considerados aptos para serem líderes.
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O ritual, conhecido como Waumat, é praticado pelos Sateré-Mawé há séculos. Mas esse rito de passagem agora adquire mais um significado, pois espera-se que esses jovens liderem seu povo na resistência a madeireiros ilegais, a grileiros e aos planos de desenvolvimento do governo de Jair Bolsonaro.
A pátria que esses guerreiros Sateré planejam defender é a Terra Indígena Andirá-Marau, que abrange 780 mil hectares, entre os estados do Amazonas e do Pará. Essa extensa reserva florestal faz fronteira com o Parque Nacional da Amazônia, com 1.066.000 hectares – criado em 1974 e depois imaginado como parte de um mosaico de áreas protegidas que serviriam como uma barreira para conter a exploração e a devastação da Floresta Amazônica.
Um antigo ritual fortalece a identidade cultural
Para esses jovens, o ritual de Waumat marca definitivamente a transição da infância para a idade adulta. Após a primeira experiência com as formigas, eles podem se casar e começar uma família, mas espera-se que passem pelo rito ao menos 20 vezes durante a vida. A cada cerimônia, dizem, eles saem mais fortes, mais preparados para defender sua cultura.
As garotas Sateré, depois da primeira menstruação, também cumprem um ritual, mais misterioso, que envolve ficarem sozinhas em uma cabana por dois meses, vendo apenas suas mães, que trazem a comida. Essas mulheres jovens também emergem como adultas, prontas para casar e ter filhos.
Os preparativos para o Waumat começam cedo no dia do rito, quando um pequeno grupo vai à floresta para coletar as formigas tucandeiras. Depois de uma caminhada de 40 minutos, eles encontram um ninho. Tocando flautas, os indígenas cuidadosamente coletam centenas de insetos, colocando-os dentro de um grande bastão de bambu.
“As picadas das formigas funcionam como uma vacina, para evitar doenças e nos tornar melhores caçadores”, disse o guerreiro Sateré Érik Pereira Batista, enquanto buscava as tucandeiras.
As formigas são levadas de volta para a aldeia e colocadas em um balde de água contendo folhas de caju picadas. Essa mistura anestesia os insetos por cerca de meia hora, para que possam ser manuseados e fixados, um a um, dentro de um par de luvas grandes, com o ferrão apontando para dentro. As luvas, tecidas com fibras naturais, são decoradas com penas vermelhas de arara – representando guerras e outros conflitos passados que os Sateré viveram – e penas brancas do gavião real – simbolizando a coragem e a resistência do povo Sateré. A transição sexual dos rapazes também é simbolizada pelas plumas nos punhos das luvas. Elas representam os pelos pubianos, e marcam a transição do adolescente para o guerreiro e o marido.
Músicas recordam a brutalidade colonial
Depois que os jovens colocam as mãos nas luvas, eles cantam e dançam até tarde da noite. O ritmo é marcado por chocalhos cheio de sementes amarrados às pernas. Os homens dizem que ficar imersos no ritmo é a única maneira de aliviar a dor. À medida que a noite avança, as mulheres Sateré se juntam à dança.
Ninguém na vila pôde traduzir literalmente as músicas tradicionais para a equipe de reportagem do Mongabay, mas eles nos disseram que as letras fundem mitos e fatos históricos.
Um mito diz respeito à origem da própria tucandeira: “Nesta lenda, a formiga representa a mulher, desempenha o papel de mãe, a força transformadora, assim como a morte transforma a humanidade em natureza”, explicou o antropólogo Gabriel Alvarez, que pesquisou os Sateré.
Um tema histórico recorrente é a Cabanagem, um levante popular ocorrido na Amazônia nos anos 1830, em que grupos indígenas, negros e comunidades ribeirinhas se revoltaram contra a minoria branca que os oprimia e explorava. O nome da insurreição veio de uma característica comum a todos os rebeldes empobrecidos e explorados: eles viviam em cabanas cobertas de palha. Essa revolta contra o Império Português e a elite local foi uma tentativa de melhorar as condições de vida e reduzir a tirania do governo do Grão-Pará. O movimento foi brutalmente reprimido pelas forças imperiais. Ao menos um terço da população morreu no conflito, ou foi dizimada pelos surtos de varíola, cólera e beribéri. A rebelião ainda é uma lembrança recorrente entre os Sateré.
Outra música refere-se a eventos traumáticos do período colonial. De acordo com Alvarez, algumas letras invocam histórias de como os governantes portugueses tiravam as crianças das aldeias, prometendo educá-las, mas colocavam-nas em sacos e jogavam-nas no rio. “A interpretação por trás dessa alegoria é que as crianças eram escravizadas, obrigadas a realizar trabalhos forçados. As meninas serviam como empregadas domésticas, ou eram prostituídas”, explica o antropólogo.
Ainda entre as canções Sateré, há aquela que lembra uma ocasião em que os portugueses chegaram com uma carga de suprimentos, mas exigiram em troca as solas dos pés do tuxaua (o chefe indígena) para que ele não pudesse mais andar sem ajuda. O antropólogo vê isso como uma síntese crítica da forma como se deu a inclusão do índio no mundo dos brancos no Brasil.
Construindo a capacidade de lutar
A equipe do Mongabay viajou para Fortaleza a convite de Benito Miquiles, Sateré de 25 anos, que viveu nos últimos anos na cidade de Parintins, onde se formou em Licenciatura Indígena na universidade local.
O ritual de Waumat presenciado pela equipe de reportagem foi o décimo quinto de Benito. Ele quer completar as 20 vezes necessárias o mais rápido possível. Só então estará apto a começar a treinar para se tornar um tuxaua, eventualmente assumindo o lugar de seu pai, Bernadino, um líder Sateré bastante respeitado. “É meu destino tornar-me tuxaua”, disse Benito.
“Ganho muita sabedoria dos anciãos neste ritual. Assim como você aprende Sociologia, Filosofia e assim por diante, na escola, é o mesmo com a gente. Através desse ritual, é que recebemos educação”, explicou Benito. Ele acrescentou que o Waumat não apenas estimula a coragem e a resistência, mas também permite que os participantes interajam em um complexo universo simbólico para então sair transformados.
Dico, o tuxaua da comunidade de Fortaleza, lamenta que, depois da chegada do cristianismo e, particularmente, da chegada de missionários evangélicos, muitas comunidades tenham deixado de praticar o Waumat. Na aldeia vizinha de Vila Nova, por exemplo, o pastor batista Maxiko Miqueles fez críticas ao rito: “Os Sateré estão cometendo um pecado acreditando que podem se comunicar com seus ancestrais através de uma prática pagã”.
No entanto, muitos jovens Sateré afirmam que continuam a se beneficiar muito do rito. “No momento em que colocamos nossa mão [na luva], somos tomados de um profundo sentimento de estarmos nos tornando mais fortes. A dor é muita, e suportamos isso para mostrar que somos fortes o suficiente para a luta”, explicou Benito, cujo único sinal externo de dor foi um aperto na mandíbula.
Construindo a união
Além da participação no ritual, o jovem Sateré teve uma segunda razão para ir a Fortaleza. Ele buscava uma aliança com seus parentes.
A aldeia de Benito, Campo Branco, fica às margens do rio Mariaquã. A terra ali era tradicionalmente ocupada pelos Sateré, mas não foi incluída na porção demarcada pelo Governo brasileiro em 1986. Por causa disso, a família de Benito vem sofrendo pressão de madeireiros e grileiros que se tentam se beneficiar das políticas de legalização de terras públicas criadas nos últimos anos.
Enquanto pede permissão para participar do ritual, Benito também conta a Dico, o tuxaua da comunidade de Fortaleza, sobre a violência que sua família está sofrendo atualmente. “Precisamos de ajuda”, diz ele. “Estamos muito ameaçados porque vivemos em uma área fora da terra indígena.” Um após o outro, homens e mulheres se levantaram e prometeram apoio.
A luta a que esses indígenas estão aderindo é importante para a sobrevivência da floresta. Vários estudos já comprovaram que as áreas ocupadas pelos povos indígenas são as mais preservadas na Amazônia. Se os Sateré e outros grupos forem expulsos pelos grileiros, uma nova onda de destruição poderá ser desencadeada em um dos lugares de maior biodiversidade do planeta.
Como vamos mostrar na próxima matéria, os Sateré aprenderam com as experiências recentes de comunidades indígenas que lutaram para defender seus territórios em outras partes do Brasil. Hoje, eles estão criando uma série de “aldeias de vigilância” interligadas, a fim de fortalecer parcerias e garantir uma resposta rápida e unificada contra os invasores.
Quando Benito e os jovens participantes do Waumat na comunidade de Fortaleza conectaram suas forças na dança, eles expressaram inequivocamente seu compromisso com a resistência do grupo. Franciel Açaí, um Sateré de 27 anos, calçando as luvas pela 25ª vez, resumiu a experiência: “Somos os primeiros habitantes desta terra e, para nós, fazendeiros e madeireiros são como um vírus. E para nos livrarmos do vírus, praticamos os nossos rituais”.
Eu encontrei esss página quando eu buscava por tucandeiras. Eu cresci no Amazonas, e tenho forte identificação com a cultura da região. Afinal, foi aí que formei meus valores éticos.
Quero agradecer pela matéria, e que jamais irão acabar com o nosso espirito guerreiro amazônico.