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Terras vizinhas dos Suruí Aikewara mostram importância da demarcação das territórios indígenas para preservação da floresta

Embora pertençam ao mesmo povo, enquanto a Terra Indígena Sororó foi homologada e manteve quase toda sua vegetação nativa, a Twua Apekuowera perdeu 92% da floresta à espera da demarcação – e com ela, 96% do estoque de carbono.

Os dois territórios que aparecem neste mapa pertencem ao mesmo povo indígena, o Suruí Aikewara. Eles ocupam uma parte das cidades de Marabá e São Geraldo do Araguaia, no leste do Pará. Do lado direito, está a Terra Indígena (TI) Sororó, homologada em 1983, onde existem oito aldeias. Do lado esquerdo, a TI Twua Apekuowera, que há 21 anos aguarda a finalização do seu processo de demarcação pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e, por isso, não pode ser habitada por eles. 

Toda essa área amarela, que hoje compõe a TI Twua Apekuowera, mostra um solo desmatado para a pastagem, segundo dados da rede MapBiomas, que mapeia o uso e cobertura do solo. Em 1985, essa terra tinha 11.707 hectares (ha) de floresta e apenas 48 ha usados para agropecuária. Em 2023, o quadro tinha invertido: apenas 916 ha de floresta, e 10.840 ha para agropecuária. A redução da área florestal é de 92%. 

Um cenário diferente é o do território vizinho, o Sororó, que, em 1985, tinha 25.875 ha, e, em 2023, 25.387 ha – uma redução de apenas 1,8%. Apesar de pertencerem ao mesmo povo, somente a Terra Indígena Sororó foi preservada. 

O que aconteceu na TI Apekuowera 

Desde que a TI Sororó começou a ser delimitada, em 1974, os indígenas insistem que os limites não foram corretos e pedem a inclusão da Twua Apekuowera como parte do território. Mesmo assim, a Funai demarcou somente a TI Sororó e, em 1985, iniciou um grupo de trabalho para refazer o perímetro. Essas informações constam no Diário Oficial da União, de 25 de janeiro de 2012.

Na área onde a Funai ainda não realizou a demarcação — a da Twua Apekuowera — a mudança do uso do solo para pasto é a principal causa da perda florestal. Atualmente, há 239 imóveis rurais cadastrados dentro da TI, aguardando regularização, de acordo com dados do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR). A presença desses proprietários se tornou mais um obstáculo ao processo. Enquanto ainda estava instalado o grupo de trabalho, parte da terra chegou a ser destinada aos Projetos de Assentamento Gameleira e Lagoa Bonita. No entanto, essas iniciativas, que pretendiam atender a agricultores, não se sustentaram.

“Os fazendeiros foram comprando lote por lote. Agora, não são mais assentamentos, são grandes fazendas. Hoje, ela [terra] está toda degradada, só tem pastagem”, conta Welton Suruí, cacique da aldeia Itahy, da TI Sororó.

Os fazendeiros foram comprando lote por lote. Agora, não são mais assentamentos, são grandes fazendas. Hoje, ela [terra] está toda degradada, só tem pastagem.

Welton Suruí, cacique da aldeia Itahy, da TI Sororó
Povo Suruí Aikewara em manifestação na BR230 pedindo medidas compensatórias pela construção da rodovia Foto: Arquivo pessoal/ Welton Suruí

“Os caras [fazendeiros] às vezes me perguntam, e eu explico da melhor maneira possível, dizendo que esse território ficou de fora da primeira demarcação. Eu nasci em 86 e já existia esse erro. Então, eu já nasci herdando esse conflito. Eu sempre falo para as pessoas: se é meu, é de direito. Eu vou lutar e vou querer para mim”, diz o líder indígena. 

Welton Suruí diz que nunca houve conflito físico com os não indígenas, mas “sabe que, a qualquer momento, pode surgir um conflito maior quando for publicado um decreto formalizando [a demarcação]”. Ele também afirma que há boatos de que alguns proprietários “querem explorar minério dentro desse território, porque dizem que lá é muito rico para mineração”.

Segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM), existem 12 processos minerários para exploração em áreas contíguas à TI Twua Apekuowera. São requerimentos de lavra garimpeira para exploração de quartzo, cobre e ouro, como pode ser visto no mapa do Amazônia Minada abaixo. 

Demarcação como política climática

Quando qualquer árvore morre, seja por decomposição ou por queima, ela emite carbono. Assim, o desmatamento é a maior causa de emissões de gases do efeito estufa na Amazônia e no Brasil. 

Esse caso do povo Suruí Aikewara é simbólico porque ilustra um argumento recente de organizações como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), que propõe incluir a demarcação de terras indígenas como uma política, buscando o reconhecimento do papel das populações tradicionais no enfrentamento às mudanças climáticas.

A proposta é que o Brasil estabeleça uma meta de demarcação de terras indígenas até 2035, a ser incorporada à Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) — documento apresentado pelos países signatários do Acordo de Paris que define como cada nação contribuirá para a redução das emissões de carbono.

Para conter as emissões e mostrar que as demarcações são importantes como medida de mitigação, o movimento indígena está trabalhando na campanha “A resposta somos nós” para incentivar que a luta territorial indígena esteja dentro da agenda de clima, especialmente na 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês), que ocorre em novembro, em Belém.

Os dados de estoque de carbono das terras Twua Apekuowera e Sororó confirmam esse argumento da Coiab. Na primeira delas, em que o processo de demarcação não foi concluído, há uma perda de 96% do estoque, segundo a Calculadora de Carbono (CCAL), do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM). Foram 2,1 milhões de toneladas de carbono emitidas em uma área que, em tese, deveria estar protegida. 

Já a TI Sororó, homologada, perdeu apenas 11% do seu estoque de carbono e ainda tem 1,8 milhão de toneladas de carbono preservadas. 

Caciques das aldeias da Terra Indígena Sororó; ao centro o cacique Welton Suruí, da aldeia Itahy. Foto: Arquivo pessoal/Welton Suruí

Assim como a Twua Apekuowera, há outros territórios que aguardam a finalização do processo de demarcação, mas que continuam emitindo carbono em razão do desmatamento: Cobra Grande (PA), Jauary (AM) e Estação Parecis (MT) perderam, respectivamente, 69%, 66% e 63% de seus estoques de carbono, segundo dados da CCAL.

O Brasil já perdeu 26,6 milhões de toneladas de carbono com o desmatamento em 44 terras indígenas que estão em processos de demarcação na Amazônia, no período de 2013 a 2022, de acordo com dados do CCAL.

A pesquisadora Martha Fellows, do Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia (IPAM), alerta para a urgência da medida. Ela explica que a Amazônia passa por degradação constante, por causa da mudança climática. “Estamos tendo um aumento da temperatura e uma diminuição da evapotranspiração tão significativa que a própria floresta começa a entrar em um processo de autodegradação. Isso torna as demarcações ainda mais urgentes, porque os cenários futuros para a Amazônia são esses”, explica.

Fellows é uma das autoras do estudo “Demarcação é mitigação”, que mostra a importância da demarcação para proteger e preservar ecossistemas ambientais em todo o mundo. 

Povo Suruí Aikewara vive na Terra Indígena Sororó, no Pará. Foto: Divulgação/Prefeitura Municipal de Marabá

Para a pesquisadora, o mais importante para que as terras se tornem meta climática é garantir o financiamento, já que os povos indígenas são um dos setores incluídos no Plano Clima: O Plano Clima (Plano Nacional sobre Mudança do Clima) é uma política pública brasileira criada em 2008 para orientar ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas. Ele estabelece metas, diretrizes e programas setoriais para reduzir as emissões de gases de efeito estufa e promover o desenvolvimento sustentável. Desde 2023, está sendo atualizado sob coordenação do Ministério do Meio Ambiente., dentro da área de adaptação, e devem receber ações estruturantes com metas voltadas apenas para seus territórios, com garantia de projetos financiados.

“A gente precisa pensar em recursos para garantir que eles [povos indígenas] sejam alcançados. Esse simbolismo de ter uma presidência indígena na Funai, de ter um Ministério dos Povos Indígenas presidido pela Sonia, é importante. Mas, efetivamente, a gente ainda está vendo pouco avanço”, afirma a pesquisadora.

O processo de demarcação 

Identificação – Estudo técnico e antropológico sobre a ocupação tradicional indígena.
Delimitação – Definição dos limites da terra, com publicação no Diário Oficial.
Declaração – Aprovação da demarcação pelo Ministério da Justiça.
Demarcação física – Instalação de marcos e sinalização no território.
Homologação – Ato final de reconhecimento pelo presidente da República.
Registro – Inscrição da terra como bem da União em cartório e no Serviço de Patrimônio da União (SPU).

Guarda Florestal Indígena do povo Suruí Aikewara percorre os limites da Terra Indígena Sororó para verificar preservação Foto: Arquivo pessoal/ Welton Suruí

Processo da Twua Apekuowera parado 


O processo de demarcação inclui as fases de identificação, delimitação, declaração, homologação e registro em cartório. O processo da TI Twua Apekuowera ainda está na Funai, na fase de delimitação, mas já deveria ter passado pela declaração. Isso ocorre quando o processo é encaminhado para o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), que assina portaria confirmando os limites territoriais e depois envia para o Presidente da República, que assina a homologação do documento.

Em 2019, o processo foi enviado ao MJSP, para que o ministro Sérgio Moro assinasse a portaria declaratória. Naquele ano, Moro devolveu 17 processos demarcatórios para a Funai, alegando a necessidade do enquadramento da tese do marco temporal. Como base, usou um parecer determinado pelo ex-presidente Michel Temer que, em 2017, ordenou que toda a administração federal adotasse a medida. Entre os documentos devolvidos, estava o da Twua Apekuowera. Até hoje, não foi reencaminhado ao MJSP.

A reportagem entrou em contato com a Funai, e perguntou quais os motivos que impedem o processo de caminhar e se há previsão para ele ser novamente entregue ao MJSP. Até a publicação da reportagem, a InfoAmazonia não recebeu uma resposta. 

Welton Suruí conta que, agora, o sonho da demarcação é o sonho de reflorestar esse território. O povo Suruí Aikewara deseja criar um projeto para regenerar a terra. Tradicionalmente, eles vivem da caça, da pesca e da produção agrícola em pequena escala. Nas suas roças, cultivam arroz, milho, mandioca, batata-doce, banana, abóbora, melancia, manga, abacate, caju, goiaba, jaca, coco, mamão e abacaxi.

“Neste momento, a gente vê o mundo todo com o olhar focado dentro da Amazônia brasileira, dentro dos territórios indígenas, porque ainda é o único lugar que encontra a floresta em pé. Eu acredito que há uma possibilidade, sem nenhuma dúvida, de se criar, junto com o MPI [Ministério dos Povos Indígenas], junto com os aliados, um projeto de reflorestamento para a nossa terra”, diz Welton.

Recuperar a vegetação perdida será um desafio quando a terra for devolvida aos indígenas e é provável que ela não seja tão rica quanto foi, mas Fellows afirma que reflorestar é a melhor solução para a TI Twua Apekuowera: “o processo de recuperação de uma área que foi degradada traz muitos benefícios para os serviços ecossistêmicos. Você volta a atrair a fauna, você melhora as condições do solo e da água. Você garante a soberania alimentar, além do estoque de carbono”.

Sobre o autor

Jullie Pereira

Repórter na InfoAmazonia, Jullie nasceu e vive em Manaus, no Amazonas, Brasil, onde seu trabalho se concentra na cobertura socioambiental e de direitos humanos. Anteriormente, trabalhou para a agência...

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