Análise exclusiva da InfoAmazonia mostra que rios Amazonas, Madeira, Solimões, Negro, Purus, além do afluente Paraná do Careiro, registraram a pior seca em 122 anos, desde o início do monitoramento do Serviço Geológico do Brasil (SGB).
Os rios Amazonas, Purus, Madeira, Solimões, Negro, que estão entre os principais da bacia do Amazonas, e também o afluente Paraná do Careiro, enfrentaram uma seca sem precedentes em 2024. Onze das 16 estações de monitoramento da altura dos rios da bacia (68% do total) registraram, até 29 de outubro, os níveis mais baixos dos últimos 122 anos, desde o início do monitoramento do Serviço Geológico do Brasil: Empresa pública vinculada ao Ministério de Minas e Energia, que presta serviços nas áreas de geologia ambiental, hidrogeologia e riscos geológicos. (SGB), segundo análise exclusiva da InfoAmazonia.
O monitoramento do SGB na bacia do Amazonas abrange, além desses seis rios, outros dois: o Acre e o Branco: A reportagem usou o boletim da Bacia do Rio Amazonas, do SGB, que traz os oito rios mencionados. Além destes, os rios Japurá, Xingu e Tapajós também se destacam dentro da bacia, por suas extensões.. Juntos, eles são responsáveis por abastecer populações urbanas, ribeirinhas e indígenas nos estados de Roraima, Acre e Amazonas. “Estamos falando de uma região que depende unicamente dos rios para abastecimento e locomoção. Não temos estradas, temos os rios”, explica Jussara Cury, pesquisadora responsável pelos boletins do SGB da bacia do Amazonas.
A bacia se estende além dos limites do Brasil, abrangendo também a Colômbia, o Peru, o Equador e a Bolívia, sendo a maior bacia hidrográfica de água doce do planeta, com 1.700 rios e os dois maiores arquipélagos fluviais do mundo: Mariuá e Anavilhanas. Além disso, o rio Amazonas, que integra a bacia, é o maior rio do mundo.
O rio Solimões tem quatro pontos de medição do nível da água localizados nos municípios de Tabatinga, Manacapuru, Itapeua e Fonte Boa. Cada um deles possui uma régua com gradações em centímetros com a marca zero, que representa o nível em que o rio estava no momento em que a régua foi instalada. A data da instalação varia e, no caso desses rios, ocorreu há cerca de 30 anos.
Todas as quatro estações do rio Solimões registraram o menor nível da história, conhecido como evento mínimo. Em Fonte Boa, a seca mais grave havia ocorrido em 2010, quando o rio atingiu 802 centímetros (cm) em 22 de outubro. Em 2024, o nível chegou a 717 cm em 12 de outubro.
Na estação de Tabatinga, a cota (termo técnico para o nível do rio em altura) mínima histórica era de -86 cm (oitenta e seis centímetros abaixo da marca zero da régua), registrada em outubro de 2010. Em 2024, o evento mínimo atingiu -234 cm, também em outubro.
O povo Kokama vive agora às margens de um rio Solimões seco. São mais de 100 pessoas que moram à beira de um extenso banco de areia, numa praia formada após a seca, na Terra Indígena (TI) Assunção, próxima ao município de Alvarães, no Amazonas, a cerca de 531 km da capital Manaus.
A TI ainda não é demarcada pelo governo federal e falta infraestrutura para amenizar os danos de eventos extremos. Por isso, os moradores da comunidade racionam água desde agosto. Parte deles usa a água do poço, enquanto a outra espera pelo dia seguinte para sua vez. A conselheira de saúde da TI, Maria Auxiliadora Kokama, conta que a situação se agravou na seca do ano passado e, neste ano, se repetiu. Quando conversou com a reportagem, em setembro, ela estava sem água na torneira, aguardando o dia seguinte para ter acesso.
“Eu nunca imaginei que esse rio ficaria assim, mas o meu velho pai dizia que um dia o Amazonas se tornaria o Ceará. Isso aqui, esse mundão de rio, ele disse que um dia ia virar seca. Eu me lembro dessas palavras dele e hoje eu tô vendo”, diz a conselheira de saúde.
As faixas de areia aumentam a distância até os municípios mais próximos e provocam o surgimento de redemoinhos e tempestades de poeira. Os ventos sopram com tanta força que movimentam a areia, fazendo-a flutuar no ar e formar uma nuvem de poeira.
“A senhora nem imagina como isso aqui fica branco, branco, branco de areia. Dentro da nossa casa fica um monte de areia. É muito triste. Às vezes, dá vontade de a gente abandonar e ir embora”, conta. “Tem criança que tem arritmia, que tem asma, [é] pior quando eles gripam. A areia atrapalha muito”, complementa.
Por causa dessas tempestades de areia, da falta de água e do excesso de calor, o professor Gleison Martins, que ministra aulas de língua kokama e saberes ancestrais na comunidade, precisou reduzir a carga horária escolar. “O calor é quase insuportável. Por causa da secura, os alunos ficam agoniados. Por mais que você tenha o ventilador, por mais que você esteja com sua água gelada o tempo todo, o calor deixa a gente fadigado”.
Martins tenta explicar às crianças que a seca é um dos eventos climáticos extremos e usa a situação como exemplo para falar sobre a importância da preservação da floresta. “Todo dia, nós vemos que o nosso Solimões está se tornando um deserto. Aqui, na frente, estava a nossa água para tomar nosso banho. Hoje nós estamos vendo uma pintura seca. Nossas crianças estão sentindo tudo isso”, conta.
A pesquisadora Jussara Cury afirma que a estação de Tabatinga é a referência para a bacia, localizada no oeste, onde o Solimões entra no país. “Tabatinga está na região mais a montante: O montante de um rio refere-se à parte do rio que está situada à jusante do ponto de observação ou de medição, ou seja, a direção para onde a água flui. Em termos mais simples, é a área do rio em direção à sua nascente., é por lá que eu vou saber quando a estiagem vai acabar. Se o rio está subindo, se está mais consistente, se mudou o regime, é por lá que monitoramos', explica.
De acordo com o último boletim divulgado pelo SGB, em 6 de novembro, a estação de Tabatinga está apresentando elevações diárias consideráveis, subindo 2,84 m naquela semana. Caso ocorra estabilidade nas elevações nos próximos dias, ainda deve levar semanas para que o restante da bacia atinja estabilidade. Em outros rios, como o Negro, na estação de Manaus, o nível continua a descer.
Rios secaram mais cedo
No rio Negro, há quatro estações de monitoramento do SGB: Tapuruquara, São Gabriel da Cachoeira, Manaus e Barcelos, sendo que as duas últimas atingiram os menores níveis históricos este ano. Em Manaus, o rio chegou a 12,17 metros (m) em 8 de outubro. Dois dias depois, em 10 de outubro, atingiu outra marca histórica: 12,11 metros. A pior cota anterior era de 12,70 m, registrada em 26 de outubro do ano passado. Em Barcelos, o recorde de 2024 foi de 6 cm em 28 de fevereiro, enquanto a mínima anterior registrada era de 58 cm, atingida em 18 de março de 1980.
Ou seja, em ambas as estações, o recorde ocorreu antes do que geralmente é previsto. A InfoAmazonia também verificou o padrão das datas em que os rios atingiram os níveis mais graves e verificou que isso também se repete nos outros rios: das 11 estações que registraram recordes neste ano, 10 tiveram eventos mínimos entre o final de setembro e o começo de outubro. A análise histórica mostra que o esperado era que isso ocorresse no final de outubro.
Desde que os efeitos do El Niño, fenômeno climático caracterizado pelo aquecimento anormal das águas superficiais do Oceano Pacífico, começaram a ser sentidos em julho de 2023, a chuva diminuiu na Amazônia. Essa seca antecipada também está atrelada ao aquecimento das águas do Oceano Atlântico, que provoca a evaporação do ar, que chega à Amazônia e inibe a formação das nuvens carregadas. Com os dois fenômenos ocorrendo ao mesmo tempo, a região viu os rios apresentarem um cenário fora da normalidade.
Segundo os dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), publicados no início de novembro, 59% dos municípios do estado do Amazonas (37 dos 62 existentes) estão passando por níveis de seca severa e extrema. Em oito localidades, o evento ocorre há mais de um ano: Barcelos, Santa Isabel do Rio Negro, Codajás, Maraã, Guajará, Fonte Boa, Uarini e Ipixuna.
As comunidades ficam mais isoladas
A cidade de Uarini, distante 595 km da capital Manaus, enfrenta condições de seca há 15 meses. A região é banhada pelo Solimões e seus afluentes. Lá, a jovem Bianca* Silva (*nome fictício, substituído a pedido da entrevistada), de 20 anos, precisou dar à luz à filha sem uma equipe médica completa, porque não teve tempo de chegar ao hospital. A cidade de Bianca conta com uma unidade de saúde limitada e, quando necessário, os pacientes são encaminhados para Tefé, município que com a seca fica a 4 horas de distância. Em época de normalidade do rio, esse tempo se reduz para 3 horas.
No final da gravidez, ela já estava sendo orientada a ter um parto cesariano, realizado por meio de uma cirurgia com corte na parte inferior do abdômen. Quando começou a sentir as dores, em 12 de setembro, foi levada ao hospital de Uarini, onde duas enfermeiras e uma parteira estavam presentes. Para ela, o ideal seria fazer a cirurgia, mas não foi possível, já que a equipe médica necessária para a cesárea inclui também um obstetra e um anestesiologista.
A alternativa de viajar até Tefé para realizar o procedimento também estava indisponível. Com rios estreitos, rodeados por praias e com o surgimento de galhos e rochas no caminho, a viagem implicava o risco de naufrágio, tempestades de areia e acidentes com outras embarcações. “Eu não tinha passagem [dilatação] para ter o parto normal, mas acabaram me fazendo ter o parto normal mesmo. Minha filha já estava muito embaixo. Ela nasceu com uma manchinha vermelha no olho porque eu a ‘apertei’ muito durante a passagem”, conta a jovem.
Agora, Bianca e sua filha enfrentam o calor intenso da cidade. Na casa de palafita onde moram, os ventiladores são a única opção. Bianca tenta amenizar o calor colocando a filha nos locais mais frescos, mas o calor já começa a afetar a saúde dela. “Ela fica muito agoniada, com o rostinho vermelho. Deixo ela só de fralda, coloco no colchãozinho lá fora, mas está muito quente”.
Outro que precisou enfrentar a seca do rio Solimões para ter acesso ao hospital foi Mesaque Brandão, 16 anos. Jovem da Comunidade Vila Soares, na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Amanã, no município de Uarini, ele quebrou o pé jogando bola em 19 de setembro. Sem uma rabeta: Motor usado em pequenas embarcações em casa, precisava pedir emprestado uma embarcação e navegar cerca de 30 minutos até a cidade.
A situação era difícil, porque o acidente ocorreu no final da tarde e navegar à noite é muito perigoso. Além dos impactos da seca, a região é conhecida pela presença dos piratas, homens que roubam dinheiro, objetos e embarcações nos rios. Brandão só conseguiu sair de caso no outro dia, pela manhã.
“Eu estava chorando de dor e lá não tem posto de saúde. O jeito foi a gente vir para cá. A minha mãe veio me trazendo devagarzinho, vim segurando no ombro dela. Chegando no porto eu peguei uma moto, não estava mais aguentando, foi difícil”, conta.
COMO ANALISAMOS A SECA NA BACIA DO RIO AMAZONAS?
. Nesta reportagem, analisamos os dados semanais de nível dos rios (cotas) publicados em boletins do Serviço Geológico do Brasil (SGB) de janeiro a outubro de 2024, que também informam os níveis mínimos históricos de cada estação desde 1902.
. O escopo da análise compreende 16 estações da bacia do rio Amazonas, monitoradas pelo SGB, distribuídas por 8 rios, são eles: Acre, Amazonas, Branco, Madeira, Negro, Purus, Solimões e Paraná do Careiro.
. Para a análise e elaboração do gráfico que mostra a série histórica dos níveis dos rios, utilizamos os dados diários de cotas abertos da Agência Nacional das Águas (ANA) de 1920 a 2023.
. Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori