Reconhecimento de direitos e resistência às pressões do agronegócio e das políticas anti-indígenas estão entre as bandeiras defendidas pelas lideranças candidatas

Nas últimas três décadas, Rondônia perdeu 66.970,00 km² de área para o desmatamento, isso equivale a 28% de toda a sua área territorial que é 237.754,172 km². Embora os dados do Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite (Prodes) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indiquem uma queda neste cenário nos últimos dois anos, o estado é o quarto em área desmatada na Amazônia Legal, em 2023. 

Em meio ao cenário de violência contra o meio ambiente, os povos indígenas da região decidiram se engajar na política local, com o objetivo de contribuir para a formulação de políticas públicas socioambientais e etnoambientais no poder legislativo. O levantamento da Voz da Terra e InfoAmazonia identificou um aumento de 200% nas candidaturas de pessoas indígenas em Rondônia nas últimas três eleições municipais, de 2016 a 2024, os concorrentes aos cargos de vereador e prefeito triplicaram, passaram de 12 para 36, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Dos 1.581.196 milhão de habitantes rondonienses, 21.146 (1,34%) são declarados indígenas.

Embora as atuais 36 (0,75%) candidaturas representem uma pequena fração dos 4.821 candidatos registrados em Rondônia este ano, a tendência é de uma crescente visibilidade e influência das comunidades indígenas no cenário político local. Exemplo desta influência é também o expressivo aumento de municípios que passaram a ter candidaturas indígenas neste período. Em 2016, apenas 6 (12%) cidades de Rondônia registraram candidaturas deste tipo. O cenário, porém, mudou significativamente: em 2024, esse percentual mais que dobrou, ou seja, dos 52 municípios que compõem o estado, 14 (27%) apresentaram candidaturas de pessoas indígenas. Esses dados são referentes às últimas três eleições municipais de 2016, 2020 e 2024. 

A cidade de Guajará-Mirim, distante 327,9 quilômetros da capital Porto Velho, é quem encabeça essa guinada de postulantes no Estado, ao longo do período analisado pela reportagem, nas últimas três eleições municipais, mais de 40% dos candidatos indígenas são do município. Neste ano, por exemplo, das 36 candidaturas indígenas, 17 (47%) são de Guajará-Mirim.  

É de lá que 13 vereadores promulgaram uma lei que concede direitos ao rio Laje, conhecido entre os nativos como Komi Memen (suco da fruta). As águas do Laje e toda sua biodiversidade foram reconhecidas como um ser vivo e detentor de privilégios. A inspiração veio da Nova Zelândia, que também legitimou o rio Whanganui. A lei rondoniense é resultado de um esforço coletivo, a pedido dos povos originários, e foi proposta pelo vereador indígena Francisco Oro Waram (PSB), em seu primeiro mandato. O parlamentar também é responsável pela criação de normas que reconhecem os direitos da natureza na Lei Orgânica municipal, que organiza o município, define as competências dos poderes locais e os direitos dos cidadãos,  e outra que estabelece zona livre de agrotóxicos na cidade.

Almir Suruí (PDT), líder do povo Paiter Suruí, localizado ao norte do município de Cacoal (Rondônia) e Aripuanã (Mato Grosso) já participou de várias disputas eleitorais. Em 2022, tentou chegar à Câmara Federal, mas com 3.901 votos não conseguiu ser eleito.  Neste ano, o biólogo é candidato à prefeitura de Cacoal. 

“Como candidato a prefeito, acredito que o desenvolvimento sustentável é o caminho para gerar empregos, valorizar nossa cultura e proteger nosso meio ambiente. Cacoal tem um potencial imenso para se tornar um modelo de cidade na Amazônia, conectada ao mundo, mas com raízes firmes em nossa terra”, diz. 

Embora em menor quantidade, quando comparada a Guajará-Mirim,  Cacoal é uma das cidades que vem mantendo, ao longo dos três últimos pleitos municipais, candidaturas indígenas.  Este ano, além de Suruí, que disputa o cargo de prefeito, Celso Lamitxab Surui (PDT) e Welington Rodrigues Cinta Larga (Avante) concorrem a uma das cadeiras do município. 

Oro Waram e Almir Suruí fazem parte da geração de indígenas que estão ocupando a política. Eles são algumas das  vozes que prometem proteger o clima e que irão disputar eleições em 2024 na esperança de ocupar o legislativo e o executivo municipal. 

Candidaturas indígenas e hegemonia conservadora

As candidaturas indígenas às eleições municipais em Rondônia têm se destacado também pela diversidade ideológica partidária, abrangendo siglas que são historicamente do espectro progressista, como o Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Democrático Trabalhista (PDT), até bandeiras com aderência conservadora, como Podemos e União Brasil. Essa amplitude de filiações partidárias indica que, embora ainda representem uma parcela pequena dos candidatos ao cenário eleitoral, os indígenas buscam articular suas pautas de acordo com diferentes orientações ideológicas, demonstrando a complexidade de suas demandas e estratégias políticas nas disputas por cargos de prefeito e vereador.

Nas últimas eleições gerais, realizadas em 2022, o ex-presidente Jair Bolsonaro teve, em Rondônia,  70,66% dos votos no segundo turno da disputa presidencial. Dos 24 deputados estaduais eleitos na Assembleia Legislativa, 23 (95,84%) são de partidos ligados à direita.

A bancada de Rondônia no Congresso Nacional mostra um alinhamento partidário conservador: no Senado, dois dos três representantes são do Partido Liberal (PL) e um do Movimento Democrático Brasileiro (MDB); na Câmara dos Deputados, a predominância é do União Brasil, que conta com quatro dos oito deputados federais do estado, enquanto os demais se dividem igualmente entre o PL, com dois representantes, e o MDB, também com dois. Esses números refletem a influência significativa dessas siglas na política rondoniense. E dos 52 municípios, 29 (55,7%) prefeituras são administradas pelo União Brasil.

Essa predominância de partidos conservadores reflete um desalinhamento com pautas ambientais mais progressistas. Embora a Amazônia seja uma das principais preocupações ambientais do mundo, essas siglas, em sua maioria, têm sido associadas a políticas de incentivo ao agronegócio, desregulamentação ambiental e flexibilização de leis de proteção. A gestão de Jair Bolsonaro, com forte apoio desses partidos, foi marcada por um aumento do desmatamento e pela fragilização de órgãos de fiscalização ambiental, ações que contrastam com os esforços de preservação e combate às mudanças climáticas.

Guajará-Mirim entre desmatamento e defesa ambiental

 Em Guajará-Mirim, no norte de Rondônia, aproximadamente 5.473 mil (14%) habitantes declararam pertencer a alguma etnia, conforme  os dados do Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE). A cidade faz fronteira com a Bolívia, é a segunda maior em extensão territorial e a oitava em população. Nos último 10 anos, o município vem perdendo sua cobertura vegetal e, seguindo o ritmo do estado, também houve crescimento dos conflitos agrários, grilagem, extração de madeira ilegal e queimadas. 

Diante de um cenário de crimes ambientais, fomentados por flexibilizações legislativas que desfavorecem o meio ambiente, o retrato do  legislativo municipal da cidade traz luz, sobretudo, para a necessidade de candidatos que defendam uma perspectiva vital para a preservação ambiental, como a proteção das terras indígenas e o manejo sustentável dos recursos naturais.

Atualmente, a Câmara Municipal é composta por 13 parlamentares, ligados a 10 partidos. A predominância é de siglas mais conservadoras, um total de 6 (60%) , enquanto os partidos alinhados a pautas progressistas representam 4,  ou seja, 40% da composição. Os vereadores estão filiados aos seguintes partidos: MDB, PATRIOTA, PDT, PL, PODE, PP, PSB, PSDB, PV e REPUBLICANOS.  

Entre esses vereadores, Francisco Oro Waram (PSB), professor e mestre em geografia, decidiu entrar na política para representar os interesses de seus parentes indígenas, mas enfrentou desafios, como conquistar o voto de um eleitorado majoritariamente não indígena. “Os indígenas são minoria entre os eleitores, tivemos que criar uma estratégia para chegar na cadeira (de vereador). Não é fácil disputar eleição, hoje quem manda é o capitalismo”, afirma Francisco. Ele também critica a falta de projetos que atendam aos interesses dos povos originários, destacando a necessidade de iniciativas permanentes, como a agricultura familiar.

Como parte de sua estratégia para avançar com propostas legislativas, o vereador precisou trazer lideranças e comunidades da floresta para dentro da Câmara de Vereadores. Foi quando elaborou um decreto criando a Comissão dos Povos Originários e realizou audiências públicas para debater os projetos mais importantes. Entre as ações, também está a alteração da Lei Orgânica do município, garantindo a inclusão de direitos da natureza, que culminou na aprovação unânime do Projeto de Lei do Rio. Propostas como essa são uma forma de agir para diminuir os impactos ambientais e amenizar as mudanças climáticas. 

Francisco Oro, vereador indígena em Guajará-Mirim (RO) criou leis para proteger um rio, área livre de agrotóxicos e incluiu a natureza no orçamento municipal. Foto: Maiara Dourado/Cimi

Entre março e junho de 2024, a Polícia Federal realizou seis operações na Terra Indígena Igarapé Lage, onde o vereador mora com outros indígenas. Durante essas ações, foram realizadas prisões em flagrante, expulsão de mais de 30 invasores acusados de crimes ambientais, e a destruição de dezenas de pontes, habitações, estruturas e veículos utilizados na ocupação clandestina. Além disso, maquinário e madeira ilegal foram apreendidos, causando um prejuízo estimado em R$ 3,5 milhões aos infratores.

“Para facilitar os projetos e cutucar as outras comissões, indiquei um parente (indígena) para presidente da Comissão, puxei um não indígena para vice e fiquei como membro. A comissão tem voz e facilita alguns projetos que falam da questão indígena. Isso me fortaleceu bastante e facilitou a Lei do Rio Laje, foi o primeiro passo”. 

Oro tem 6 filhos, é líder do povoado Waram e mora na aldeia Laje Velho. O povo Oro Waram habita a Terra Indígena Igarapé do Laje (Komi Memen) com 107.301 mil hectares, onde estão nove aldeias que ocupam terras de Guajará-Mirim e Nova Mamoré. É o maior território em extensão e população, com mais de mil integrantes. A aldeia do vereador apresenta o maior número de famílias indígenas do povo Oro Waram, onde estão mais de 300 habitantes segundo dados da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai). 

Ocupar para resistir

Adriano Karipuna é líder da Terra Indígena Karipuna, homologada em 1998, localizada entre Porto Velho e Nova Mamoré, ocupando uma área de 153 mil hectares. Uma região que por décadas foi invadida por madeireiros e garimpeiros, que exploram os recursos naturais, contaminam os rios, colocam em risco a saúde da população local e ameaçam a cultura e a organização social dos povos indígenas. As invasões impactaram na diminuição da população indígena dos Karipunas nas últimas décadas. Em junho e julho deste ano, o governo federal iniciou a retirada dos invasores, mobilizando uma grande estrutura de órgãos públicos. 

Há anos, Adriano pede ajuda da comunidade internacional e denuncia falta de fiscalização na TI, ausência de políticas públicas e investimentos no território. Para ele, sem indígenas ocupando a política, o meio ambiente e os povos originários, tradicionais e a natureza correm mais riscos. 

“É de suma importância que, nos próximos anos, no pleito para senador, deputado estadual, federal e governador, o indígena faça parte dessa cadeira para o Executivo. Muitos dos parlamentares que estão em exercício e foram reeleitos não tiveram a preocupação de proteger a Amazônia”, avalia Karipuna. 

Adriano Karipuna denunciou crimes na ONU e às autoridades brasileiras, mas ainda aguarda ação eficiente para cessar invasões e ameaças. Credit: Douglas Engle/Daily Mail. Credit: Douglas Engle/Daily Mail.

O pesquisador Marcos Teixeira, especialista em história da Amazônia, com foco em quilombos, populações afro-amazônicas, diversidade étnico-racial e conflitos socioambientais, destaca o histórico de violência sofrida pelos povos indígenas no Brasil, comparável a genocídios globais. Considerando esse histórico, ele avalia a  atuação política de lideranças indígenas hoje como uma forma de resistência.

“O aumento das candidaturas indígenas reflete o surgimento de lideranças comprometidas com a reorganização do estado, propondo modelos econômicos e territoriais que priorizam a sustentabilidade socioambiental”, explica Teixeira. “O movimento indígena brasileiro é um dos mais preparados no campo dos direitos humanos e do meio ambiente, e sua visão econômica e territorial contrasta com o modelo agropecuário dominante, que é visto como predatório, concentrador de renda e destruidor de recursos naturais”, completa.

Embora esses espaços políticos e de poder tenham tido crescente ocupação por lideranças indígenas, estar nestes locais exige desafios que vão além da conquista por votos, mas também adaptar-se à burocracia parlamentar e à indiferença social em relação às suas ações como legislador. 

Há 11 anos, em 2013, o professor Arão Wao Hara Ororam Xijein, do povo Wari, disputou sua primeira eleição, sendo reeleito, em 2017. Em 2024, recebeu convites para retornar à Câmara e também analisou propostas para ser vice-prefeito, mas decidiu se dedicar ao mestrado. Enquanto parlamentar, conseguiu levar aos povoados ações de iluminação pública, limpeza e pavimentação de estradas. Apesar de ter apresentado alguns projetos de lei, sua condição de minoria no Legislativo o impediu de obter o apoio necessário para a aprovação das propostas. 

“É essencial que a classe indígena, constantemente marginalizada, participe das eleições municipais, estaduais e federais. Só assim seremos reconhecidos e respeitados pelos cidadãos brasileiros, já que somos frequentemente esquecidos nas políticas públicas. Nosso objetivo é eleger um prefeito indígena em Guajará-Mirim até 2028”, comenta o professor.

Arão Wao Hara Ororam Xijein foi o primeiro indígena eleito na história política de Guajará-Mirim. (Foto: Arquivo pessoal/Cedida)

Atualmente, Arão afirma que não pretende retornar à política, pois se sente ameaçado em um cenário de crescente violência ambiental. Ele critica o debate no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o marco temporal, que defende que os povos indígenas só têm direito às terras que estavam sob sua posse ou em disputa judicial em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.

“Estamos enfrentando grandes invasões nas Terras Indígenas Igarapé Lage, Ribeirão e Karipuna. Lutamos para manter a floresta em pé em nosso estado e na nossa cidade. O marco temporal é uma tese genocida contra os povos indígenas, e os projetos de hidrelétricas são outra ameaça às nossas comunidades”, desabafa Waram Xijein, ex-vereador e presidente da Organização Oro Warí, que representa mais de 20 povos nos municípios de Guajará-Mirim e Nova Mamoré.


Esta reportagem foi realizada com o apoio do Programa Vozes pela Ação Climática Justa (VAC), que atua para amplificar ações climáticas locais e busca desempenhar um papel central no debate climático global. A InfoAmazonia faz parte da coalizão “Fortalecimento do ecossistema de dados e inovação cívica na Amazônia Brasileira” com a Associação de Afro Envolvimento Casa Preta, o Coletivo Puraqué, PyLadies Manaus, PyData Manaus e a Open Knowledge Brasil.

Sobre o autor

Francisco Costa

Jornalista e videojornalista sediado em Porto Velho (RO), tem quase três décadas de profissão com trabalhos publicados para agências de notícias nacionais e internacionais, além de emissoras de TV....

Jornalista e apresentadora de TV movida por paixões, histórias e memórias. É feminista e mãe atípica. Como empreendedora, cofundou o Voz da Terra.

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