Em 13 dos 32 municípios que compõem a região, lavouras e pastos já ocupam área maior que a floresta amazônica. Até 2067, esse cenário deverá se repetir em toda a AMACRO. O climatologista Carlos Nobre afirma que, se nada for feito, a floresta perderá sua capacidade de regeneração natural.

A AMACRO, região que abrange 45 milhões de hectares na divisa entre o Amazonas, Acre e Rondônia e ocupa 10% do bioma amazônico, avança rapidamente para ter mais área de agropecuária do que de floresta. 

Uma análise exclusiva da InfoAmazonia, com base nos dados da rede MapBiomas, aponta que em 20 anos, de 2003 a 2022, a área destinada ao agronegócio na AMACRO mais que dobrou de tamanho e chegou a 7,2 milhões de hectares, um território maior do que o da Irlanda. Atualmente, em 13 dos 32 municípios que compõem a região, a agropecuária já ocupa uma área maior do que a floresta. 

A data-chave, segundo a análise da InfoAmazonia (leia mais sobre a metodologia aqui), é 2067: ano em que a AMACRO como um todo, terá mais área de agropecuária do que floresta. Essas previsões foram feitas a partir de um modelo estatístico que analisa a variação da área de floresta e agropecuária ao longo dos anos.

A expansão da pastagem e da agricultura cresce duas vezes mais rápido nessa região do que no restante da Amazônia brasileira: enquanto em outras partes do bioma a abertura de novas áreas de agropecuária cresceu, em média, 2,63% ao ano, na AMACRO, esse crescimento anual foi de 5,61% entre 2018 e 2022.

Assim, o projeto da AMACRO, lançado no governo de Jair Bolsonaro como um polo de produção agropecuária para promover o “desenvolvimento sustentável”, torna-se, segundo o climatologista Carlos Nobre, um dos motores que podem levar a Amazônia ao ponto de não retorno — limite crítico para a sobrevivência da Amazônia como a conhecemos. Ao atingir este ponto, os rios, as florestas e os animais não terão mais as mesmas funções e condições de adaptação, perdendo a capacidade de regeneração e de manutenção dos serviços ecossistêmicos essenciais para o clima global. 

“Ali [na AMACRO], se nada for feito, até 2050 a Amazônia passa do ponto de não retorno e perde sua capacidade de regeneração natural. Não existe mais nenhuma justificativa para mais desmatamento. Essa é a região mais crítica para a floresta, junto com o norte do Mato Grosso e o centro-sul do Pará, onde mais de 90% do desmatamento ocorre para abertura de pastagens e lavouras”, observou Nobre.

O climatologista explica que a Amazônia já perdeu 13% de sua cobertura florestal ao longo de mais de 50 anos de intensa exploração. Nas últimas décadas, segundo ele, a destruição atingiu níveis industriais. “Quando a perda de floresta chegar entre 20% e 25%, a Amazônia vai atingir o ponto de não retorno. Com o avanço do desmatamento nesta região [AMACRO], este risco é altíssimo”.

Foto: Divulgação/Volvo Environment Prize

Se nada for feito, até 2050 a Amazônia passa do ponto de não retorno e perde sua capacidade de regeneração natural. Não existe mais nenhuma justificativa para mais desmatamento.

Carlos Nobre, climatologista

Portal para floresta intocada

Após sua criação, a AMACRO tornou-se um dos principais aceleradores desse problema, concentrando uma parte expressiva da devastação da floresta. Em 2022, a região representou, sozinha, mais de 34% de todo o desmatamento na Amazônia e quase 80% da área desmatada nos estados do Amazonas, Acre e Rondônia, segundo os dados do Prodes, sistema do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que traz a taxa anual de desmatamento da Amazônia.

Entre 2018 e 2022, apenas Porto Velho, Lábrea, Apuí e Novo Aripuanã foram responsáveis por 50% do desmatamento na AMACRO. No mesmo período, o percentual de áreas agrícolas nesses quatro municípios disparou. Em Novo Aripuanã, por exemplo, as áreas de pasto e lavoura cresceram 102%, e em Apuí esse aumento foi de 80%. Em Porto Velho, a área coberta por pastagens ultrapassou 1 milhão de hectares, uma alta de 26%.

Para Philip Fearnside, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e premiado junto a outros cientistas em 2007 com o Nobel da Paz, o avanço do desmatamento na AMACRO para expansão de áreas agrícolas coloca em risco as áreas mais preservadas da Amazônia. “Essa destruição avança em conjunto com os projetos de infraestrutura previstos para aquela região, como as estradas, hidrovias e hidrelétricas, e pode avançar sobre as áreas de floresta na bacia do rio Purus e do Solimões, onde estão as florestas mais preservadas. Isso será catastrófico”, afirmou.

Os alertas do pesquisador indicam que as obras de infraestrutura previstas para a região vão potencializar as previsões de desmatamento e de expansão da agropecuária previstas pela InfoAmazonia: “nós estamos fazendo análises dos impactos das rodovias e o que percebemos é que elas impactam muito no desmatamento”. Ele cita como exemplo a área de influência da BR-319, onde o desmatamento cresce acima da média desde que a finalização da obra foi prometida pelo ex-presidente Bolsonaro.

BR-319 é considerada vetor de desmatamento na região da AMACRO. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Agronegócio pressiona terras indígenas

A AMACRO abriga um corredor ecológico formado por 49 terras indígenas e 86 unidades de conservação, que, apesar de funcionarem com um escudo contra o desmatamento desenfreado, não escapam ilesas das invasões para abertura de pastos e lavouras.

A expansão do agronegócio na região tem intensificado os conflitos no campo nas áreas protegidas. As terras indígenas Igarapé-Lage, Karipuna e Uru-Eu-Wau-Wau estão cercadas por áreas de pastagem e lavoura. Localizada entre os municípios de Porto Velho e Nova Mamoré, a Terra Indígena Karipuna é uma das mais pressionadas por invasores. O líder indígena Adriano Karipuna denuncia que o avanço do desmatamento para abertura de pastagens dentro do território tem limitando os recursos da comunidade e colocado a população em risco. 

“Estamos completamente cercados pelas fazendas de gado. Nas áreas desmatadas dentro da terra indígena, plantaram pasto e destruíram as nossas áreas de alimento”, diz Adriano.

Em Nova Mamoré, em Rondônia, próximo à fronteira com a Bolívia, as previsões mostram que a área do município será mais ocupada pela agropecuária do que por florestas em 2027. Já em Buritis, que o limite está junto a territórios indígenas no estado e ainda abriga parte da Resex de Jaci-Paraná, 80% da área já é tomada por pasto.

Em julho deste ano, o governo federal anunciou a desintrusão do território Karipuna, em cumprimento à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a retirada de invasores de sete territórios na Amazônia. Dois deles estão na região da AMACRO. 

Para Adriano, após a retirada dos invasores é preciso recuperar a floresta e fazer a guarda do território. “É muito bom a retirada dos invasores, mas agora precisamos que a floresta seja recuperada e também que os indígenas tenham seus danos reparados. Além disso, é preciso uma fiscalização mais presente, para impedir que as invasões retornem”, afirma o líder indígena.

Rio Madeira, em Porto Velho, será concedido à iniciativa privada para o escoamento de grãos. Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

A breve história da AMACRO

O projeto da AMACRO começou a ser discutido em 2018 e foi lançado durante o governo de Jair Bolsonaro, com o nome de Zona de Desenvolvimento Sustentável Abunã-Madeira (ZDS Abunã-Madeira). Ele recebeu o apoio da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e do Conselho da Amazônia, à época comandado pelo senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS). A proposta foi inspirada no projeto do MATOPIBA, onde foi criado um pólo agropecuário formado por parte do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

Na época, Mourão participou ativamente das tentativas de criação da AMACRO, prometendo que o projeto iria fortalecer a bioeconomia local e aliar produção e preservação na Amazônia. O então vice-presidente da República defendeu “a regularização fundiária, de modo que os produtores rurais entrem no século 21, deixem de ter práticas arcaicas, aumentem sua produtividade”.

Mas a AMACRO nunca foi oficializada por um decreto presidencial, como prometido por Mourão em 2020. O que não impediu os governos, em todas as esferas, de canalizarem recursos para atender as demandas do pólo agropecuário. Os estados do Amazonas, Acre e Rondônia têm publicado atos, normativas e emendas em orçamentos prevendo a institucionalidade e os investimentos necessários para a ZDS Abunã-Madeira, mesmo sem a existência oficial desta zona. 

Já o governo federal, principalmente na gestão de Bolsonaro, mas também na de Lula, passou a prever mais investimentos para a região. A gestão atual do governo federal anunciou R$ 5 bilhões em investimentos de infraestrutura para Rondônia. Entre as obras esperadas, estão a construção de uma ponte binacional entre Brasil e Bolívia, para o escoamento de carnes e grãos até portos no pacífico; a recuperação e concessão BR-364, que liga o oeste de Mato Grosso com Rondônia e Acre; além de prever obras para a reconstrução da BR-319, entre Porto Velho e Manaus (AM); a concessão da hidrovia do rio Madeira, também para o escoamento de grãos, e a recuperação de pontes e estradas.

Para o professor Afonso Chagas, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), que estuda a regionalização da AMACRO desde sua criação, a Zona de Desenvolvimento “não precisa mais sair do papel”, pois no seu entendimento os principais objetivos já foram alcançados:

“A AMACRO não é um projeto, mas um processo. Os principais investimentos nessa região estão voltados para atender as demandas do agronegócio, não existe participação popular efetiva. A confluência desses fatores faz com que nem seja necessário mais um decreto presidencial”.

A AMACRO não é um projeto, mas um processo. Os principais investimentos nessa região estão voltados para atender as demandas do agronegócio, não existe participação popular efetiva. A confluência desses fatores faz com que nem seja necessário mais um decreto presidencial.

Afonso Chagas, professor do Departamento de Ciências Sociais da UNIR

Chagas compara o movimento da AMACRO com o anúncio da reconstrução da BR-319, que bastou para fazer o desmatamento no entorno do traçado da rodovia disparar. A obra tem sido apontada por pesquisadores como um dos principais vetores do desmatamento no norte de Rondônia e sul do Amazonas.

Para o pesquisador, o governo tem sido condescendente com os impactos da expansão agrícola nessa região e “os governos locais foram raptados pela frente ampla do agronegócio”: “é uma aliança envergonhada, porque esses empresários não conseguem defender o governo em público, mas não têm como dizer que não está beneficiando eles”. 

Chagas lembra que, em 2020, o governador de Rondônia, Marcos Rocha (PL), prometeu atuar em conjunto com o governo Bolsonaro para reduzir as áreas protegidas. Em 2021, sancionou o Projeto de Lei Complementar 80/2020 e diminuiu áreas do Parque Estadual Guajará-Mirim e da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná . Na justificativa da lei, constava que havia mais de 120 mil cabeças de gado nas UCs e que esta era uma situação consolidada. O Tribunal de Justiça de Rondônia considerou ilegal a redução das áreas de preservação, e a lei acabou não aplicada.

“Um discurso desses funciona como uma espécie de voucher para se desmatar. A Resex de Jaci-Paraná, por exemplo, é tida como irrecuperável, e o gado continua lá. Eu não vejo muita perspectiva para frear e reverter essa destruição. Imagino que só vão parar quando chegarem no ponto de não retorno, quando não tiverem mais condições de avançar por falta de recursos naturais”, opina Chagas.

Redução de floresta na região da AMACRO Foto: Fábio Bispo/InfoAmazonia

Chagas diz que apesar de prever uma mínima participação popular nos documentos iniciais da AMACRO, o projeto ou as obras de infraestrutura capitaneadas a partir deles nunca passaram por uma discussão com a sociedade.

“Com absoluta certeza, a população afetada por estes projetos não participou desse debate e sequer conhece ou sabe o rumo do que está sendo proposto”, afirma. Um dos exemplos é a Hidrovia do Rio Madeira, uma das engrenagens da AMACRO para o escoamento da produção até os portos de Manaus e Belém. Em junho deste ano, o governo federal anunciou a concessão do leito do rio para a iniciativa privada. 

Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ), os investimentos previstos para a hidrovia vão permitir “diminuição dos custos do transporte de cargas”, com a promessa de tráfego livre de cobrança para o transporte de passageiros e de pequenas embarcações. O valor do investimento anunciado, que inclui dragagem, sinalização e balizamento do tráfego de embarcações, é de R$ 109 milhões. 

“Não existe nenhuma experiência anterior em uma concessão desse tipo. São milhares de ribeirinhos que vivem nas margens do [rio] Madeira e que já são impactados, além de toda a população que está nas áreas produtivas, onde o desmatamento avança. Ninguém foi ouvido”, afirma Afonso Chagas.

Procurada pela reportagem, a Embrapa disse, por meio de nota, que recebeu representantes dos governos do Amazonas, Acre e Rondônia com um pedido de apoio técnico para a delimitação e caracterização da AMACRO. “Na ocasião foi apresentado o trabalho realizado para o MATOPIBA. Os entendimentos não evoluíram. Desde então não houve, nem há, qualquer ação da Embrapa Territorial sobre o tema”, declarou a instituição.

O senador Hamilton Mourão não respondeu aos questionamentos da InfoAmazonia sobre como ocorreu a idealização do projeto da AMACRO.

COMO ANALISAMOS O AVANÇO DAS ÁREAS DE AGROPECUÁRIA NA AMACRO?

. Nesta reportagem, analisamos a série histórica do Projeto MapBiomas - Coleção 08 da Série Anual de Mapas de Cobertura e Uso da Terra do Brasil, para os 32 municípios que compõem a região da Amacro e comparamos com o bioma Amazônia, na porção brasileira, no período de 1985 a 2022. 

. As previsões foram feitas usando um modelo linear generalizado, uma técnica estatística que  considera a mudança de uma variável em função da outra, ajudando a entender as variações na paisagem, por exemplo, e a prever tendências futuras com base nos dados coletados. Nesta reportagem, a técnica foi adotada para analisar como a área de cobertura de florestas e agropecuária varia ao longo dos anos.

.Para reforçar nosso compromisso com a transparência e garantir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.


Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.

Texto: Fábio Bispo
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori

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Fábio Bispo

Repórter investigativo da InfoAmazonia, em parceria com a Report for the World, que combina redações locais com jornalistas emergentes para reportar sobre questões pouco cobertas em todo o mundo. Ele...

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