Análise da InfoAmazonia aponta uma intensificação do problema na região em comparação com 2023, com uma alta de 56% na quantidade de municípios em seca severa. Comunidades vulneráveis pedem a implementação de planos de adaptação climática das prefeituras e do governo.
Entre janeiro e junho deste ano, a seca atingiu 69% dos municípios da Amazônia Legal (531 no total), enquanto apenas 31% permanecem em estado de normalidade. Isso é o que revela análise da InfoAmazonia com base no Índice Integrado de Seca (IIS), sistema do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), que monitora os registros de seca nacionalmente.
Nos primeiros meses do ano, de janeiro a maio, a Amazônia normalmente está passando por sua estação chuvosa. No entanto, os dados indicam que, no primeiro semestre de 2024, em comparação com o ano passado, houve um aumento no número de cidades que passaram da seca fraca para moderada e, também, para severa.
Assim, os números já mostram que a temporada seca no bioma está mais intensa neste ano. De janeiro a junho de 2023, 309 municípios estavam em situação de seca fraca, enquanto 126 passavam por seca moderada. No primeiro semestre deste ano, os números praticamente se inverteram: 300 municípios enfrentam seca moderada, enquanto 170 passam por seca fraca.
Além disso, a quantidade de municípios em seca severa aumentou 56% em 2024. Eram 39 no primeiro semestre de 2023 e, no mesmo período deste ano, foram 61. Os estados do Amazonas, com 19 cidades, Mato Grosso, com 14, e Rondônia, com 10, são os mais atingidos.
Mais forte e mais severa
Em Santa Isabel do Rio Negro, a 631 km de distância de Manaus, a mudança foi de seca fraca, no primeiro semestre de 2023, para seca severa no primeiro semestre de 2024. O autônomo Charlen Ferreira, que vive na cidade, conta que, apesar do rio ainda não estar completamente seco e a compra de alimentos ainda ser possível, ele já está pensando em estocar comida.
“Aqui não pousa avião e não tem estrada, é só via fluvial, fica difícil quando está seco realmente. Eu acho que a seca deste ano vai ser pior que a do ano passado. Eu já pensei em estocar comida. Aqui no município tem poço artesiano e também compramos fardos de água para beber, mas para ter alimento é mais difícil quando não tem o rio”, explica Ferreira.
No ano passado, um dos problemas enfrentados por Santa Isabel do Rio Negro foi a falta de energia. A Usina Termelétrica da cidade precisa de combustível para funcionar, mas é necessário o uso de embarcações para transportá-lo até o local, o que não foi possível devido à ausência de navegabilidade do rio. O medo é que este ano ocorra a mesma situação. “Fizemos racionamento de energia. Um bairro tinha luz por algumas horas, depois ficava sem luz e davam a energia para outro bairro. Era assim. Eu não estou vendo nenhuma movimentação para evitar isso neste ano”, diz.
Também no Amazonas, o município de Beruri, a 173 km de distância de Manaus, passou da seca moderada no primeiro semestre de 2023, para severa no mesmo período deste ano. Para os moradores, o que fica perceptível é que os rios estão descendo mais rápido e antes do tempo. Porém, como estão trafegáveis, o acesso ainda é possível. O temor é pelo o que está por vir.
Na cidade, existem casas localizadas em regiões vulneráveis. No ano passado, a cidade de Beruri passou por um desastre em que duas pessoas morreram, três ficaram desaparecidas e 151 pessoas foram diretamente atingidas. A comunidade Vila Arumã foi totalmente sugada pela terra, uma consequência da seca que começou no final do primeiro semestre de 2023. Esse fenômeno é chamado de “terra caída”, em que há erosão do solo provocada pelos rios.
Intensidade da seca em Beruri, no Amazonas
Ainda com acesso ao rio, a seca severa não está impedindo as viagens neste ano, mas o problema de habitação continua. Em outubro do ano passado, o Serviço Geológico Brasileiro (SGB) fez um relatório mostrando que ainda existem 3 áreas de risco ao redor do local onde houve o deslizamento da Vila Arumã. “Após o evento, foi gerada uma nova configuração da paisagem da região, deixando uma grande quantidade de solo exposto a ações intempéricas dos próximos eventos de chuva, cheias e vazantes”, afirma o documento.
Maria*, nome fictício de uma das moradoras de Beruri que preferiu não ser identificada, conta que a família perdeu a residência na vila e que, atualmente, os parentes estão vivendo de favor na casa de amigos. Com a intensificação da seca deste ano, eles voltam a lembrar do trauma que passaram. “Pra eles, nenhum canto mais é seguro. Tá sendo muito difícil pra gente viver de novo a seca”, diz.
Ela conta que a sua irmã ainda sofre as consequências do desastre, enfrentando crises de pânico. “Ela não dorme direito, não sai para as ruas, vive com um medo horrível. Devido a seca ser tão grande, veio o deslizamento de terra que engoliu a vila. As pessoas ficaram sem suas casas e quase perderam suas vidas. Se não fosse a misericórdia do senhor, hoje eu estava com metade da minha família morta”, relata.
A reportagem entrou em contato a prefeitura de Beruri e o governo do Amazonas, questionando se as áreas mencionadas já foram desocupadas ou estão recebendo algum tipo de planejamento para a estiagem deste ano, mas não obteve resposta.
Comunidades vulneráveis em alerta
A seca que acomete o que deveria ser a estação chuvosa na Amazônia ainda é consequência do El Niño, evento que causa o aquecimento do Oceano Pacífico, na linha do Equador. O fenômeno, que começou em junho de 2023 e terminou em junho deste ano, inibe a formação de nuvens e reduz o volume de chuvas na região.
“Isso perdurou ao longo do ano [2023] e chegou ao seu máximo em novembro e dezembro, que foram dois meses muito secos na Amazônia. Agora, mesmo sem El Niño, de uns dois meses para cá [junho e julho de 2024] a situação da seca está bem extensiva em quase todo o bioma, com chuvas predominando abaixo do normal”, afirma a pesquisadora Ana Paula Cunha, do Cemaden.
Além disso, no ano passado, o El Niño foi atípico devido à combinação com outro fator: o aquecimento do Oceano Atlântico Norte, condição que eleva as temperaturas oceânicas. A previsão para agosto e setembro deste ano é que o cenário persista.
“O Atlântico Norte continua batendo todos os recordes históricos de temperatura. Isso ocorre desde o ano passado. Quando o Atlântico está mais quente, o sul e o centro-oeste da Amazônia acabam tendo menos chuva”, explica o cientista Carlos Nobre.
Agora, as populações mais vulneráveis, muitas delas que já vivenciaram o problema em 2023, estão em alerta. No ano passado, comunidades inteiras em diferentes regiões da Amazônia ficaram completamente isoladas por causa da seca. O rio Negro passou pela pior vazante da história em mais de cem anos.
Doze associações de quilombolas residentes em Óbidos e Oriximiná, municípios no oeste do Pará com seca moderada neste ano, publicaram uma carta solicitando às prefeituras planos de contingência, suprimento de equipamentos para armazenamento de água, distribuição de alimentos e capacitação de agentes comunitários de saúde.
“Ainda não estamos no limite de seca, mas nós já estamos sentindo porque cada dia que passa a água baixa mais. A nossa iniciativa com a carta foi prever a situação que nós vivemos no ano passado, que foi muito difícil. Neste ano, pelo nível da água, a gente vê que a seca vai ser ainda maior”, conta Redinaldo Alves, líder da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Óbidos (ARQMOB).
Com os rios da região secos durante o ano passado, Redinaldo esteve à frente das atividades de apoio às comunidades, oferecendo ajuda. “Eram comunidades precisando de água potável, alimentos e remédios. Estamos muito assustados com a possibilidade desse ano ser como foi em 2023”, disse.
Adaptação climática nos municípios
Na última terça-feira (6), o SGB divulgou um boletim mostrando que o rio Madeira, afluente do rio Amazonas, que banha os estados de Rondônia e Amazonas, está com a cota de 2,07 m. No ano passado, isso ocorreu em 1º de setembro, e foi piorando. A cota mais baixa da história, de 1,10 m, foi registrada no dia 6 de outubro do ano passado.
Com o agravamento do padrão de seca, organizações da região começaram a cobrar planos de adaptação. Em Porto Velho, capital de Rondônia que está em seca moderada, 150 moradores das margens do rio Madeira fizeram uma manifestação pedindo ações de contenção aos danos da seca neste ano.
Eles fazem parte do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e ocuparam o prédio da prefeitura, na sexta-feira (2). Além disso, entregaram documentos à administração municipal e solicitaram a criação de um “Auxílio Calamidade Climática” pelo período de três meses. Os moradores da comunidade pedem a criação de 17 poços artesianos, isenção na cobrança da taxa de água, descontaminação dos poços, reforço para atendimento médico, distribuição de alimentos e vale gás.
Com a manifestação, o MAB conseguiu um espaço no Comitê de Crise Hídrica do município, cujos trabalhos estavam sendo feitos sem a presença de representantes das comunidades. “Hoje, o rio Madeira está cada vez mais perto de secar. As comunidades ficarão completamente isoladas. A grande preocupação é o acesso à água e estamos nessa pressão com o poder público municipal”, conta Océlio Muniz, coordenador do MAB-RO.
De acordo com levantamento do Instituto Jones dos Santos Neves, 15 capitais brasileiras ainda não possuem um Plano Municipal de Mudanças Climáticas, documento essencial para a gestão e redução do risco climático, para evitar perdas e danos e para a adaptação dos sistemas naturais, humanos, produtivos e de infraestrutura. Na Amazônia Legal, das nove capitais, somente Rio Branco, n Acre, tem um plano.
No momento, o governo federal trabalha na construção de um Plano Clima, que deve ser apresentado no próximo ano e tem duas frentes: mitigação e adaptação. No caso da mitigação, o objetivo é reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Já a adaptação trata desses planos que consideram vários setores sociais, desde agricultura, transporte, populações indígenas e saúde alimentar. No entanto, embora o Plano Clima tenha suas especificidades por setores, ele ainda tem um olhar nacional.
“A gente precisa cobrar planos de adaptação a desastres de eventos extremos, tanto seca quanto de inundação, no Brasil inteiro. O que precisa fazer é que o plano seja aplicado em todas as esferas de governo. É a prefeitura que está lá na ponta, a defesa civil da prefeitura que vai tomar conta de fato da gestão de riscos e desastres. Então tem que ser algo transversal e que seja aplicado principalmente na esfera local”, defende a pesquisadora Ana Paula, do Cemaden.
Em Rondônia, Océlio afirma que a falta de um plano está atrasando as ações que poderiam estar ocorrendo agora. Ele cita que, além das construções dos poços artesianos, já era possível estar distribuindo alimentos, itens para limpar água e remédio para doenças como a diarréia. “No ano passado, a Prefeitura de Porto Velho e o estado de Rondônia fizeram um decreto de emergência tardio. Este ano, estamos preocupados com a necessidade de ter a urgência do plano, de ações emergenciais nas comunidades”, afirma.
COMO ANALISAMOS A SECA NOS MUNICÍPIOS DA AMAZÔNIA?
Nesta reportagem, analisamos os dados do Índice Integrado de Seca (IIS) do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) para os municípios da Amazônia Legal em 2023 e 2024. Analisamos o IIS6, que considera os dados dos últimos seis meses, com foco nos períodos de janeiro a junho de 2023 e o mesmo período em 2024.
O IIS combina o Índice de Precipitação Padronizada (SPI), a Água Disponível no Solo (ADS) e o Índice de Suprimento de Água para a Vegetação (VSWI) ou o Índice de Saúde da Vegetação (VHI), ambos estimados por sensoriamento remoto. O IIS é classificado em seis categorias: condição normal (6), seca fraca (5), seca moderada (4), seca severa (3), seca extrema (2) e seca excepcional (1).
Para reforçar nosso compromisso com a transparência e permitir a replicabilidade das análises, a InfoAmazonia disponibiliza os dados nesta pasta.
Esta reportagem foi produzida pela Unidade de Geojornalismo InfoAmazonia, com o apoio do Instituto Serrapilheira.
Texto: Jullie Pereira
Análise de dados: Renata Hirota
Visualização de dados: Carolina Passos
Edição: Carolina Dantas
Coordenação de dados: Thays Lavor
Direção editorial: Juliana Mori