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Lula, vamos reler juntos o seu plano de governo?

Esta é uma carta ao presidente Lula (PT), escrita por uma eleitora preocupada com o rumo da política ambiental em meio à queda nas autuações ambientais, a uma defesa da exploração de petróleo na Amazônia e a uma falta de pulso firme em relação aos direitos indígenas.

À esquerda, o cacique Raoni e, à direita, Lula (PT), em foto de 1º de janeiro de 2023, dia da posse do presidente da República. Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Presidente Lula,

Escrevo para expressar minha preocupação e esclarecer alguns pontos importantes sobre a política ambiental do Brasil.

Em 2022, quando o senhor ainda era candidato, li seu plano de governo. O texto tinha um bocado de propostas com as quais concordo para o nosso país. Agora, no segundo ano de seu mandato, acho importante que você releia suas próprias ideias iniciais. Sei que muita gente não acredita nos planos apresentados durante as eleições, mas, para mim, é importante retomar o que você prometeu ao povo brasileiro.

Se puder, abra o documento novamente comigo, presidente. Vamos à página 17. Lá, o seu plano de governo diz: “Combateremos o crime ambiental promovido por milícias, grileiros, madeireiros e qualquer organização econômica que aja ao arrepio da lei. Nosso compromisso é com o combate implacável ao desmatamento ilegal e a promoção do desmatamento líquido zero.”

Inclusive, o senhor reafirmou esse desejo de combate aos crimes ambientais na Amazônia no seu discurso de vitória, em 1º de janeiro de 2023, em Brasília: “Por isso, vamos retomar o monitoramento e a vigilância da Amazônia, e combater toda e qualquer atividade ilegal – seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida”. 

Eu lembro. Eu estava lá pessoalmente assistindo no primeiro dia de 2023. Acho que avançamos. O desmatamento na Amazônia diminuiu depois de anos de altas taxas: passamos de 11.600 km² em 2022 para 9.100 km² em 2023, uma queda de 21%. Eu entendo que o senhor, presidente Lula, herdou uma Amazônia muito mais devastada do governo de Jair Bolsonaro. No entanto, se a proposta é alcançar o desmatamento líquido zero, como fazer isso sem abrir uma frente real de negociação com os servidores ambientais que estão em paralisação desde o início do ano?

Nós sabemos que essa parte do “monitoramento e vigilância” da Amazônia dificilmente será feita sem eles. Na minha opinião, a equiparação do salário dos servidores do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) com os da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) seria uma comprovação do que você disse no seu plano de governo. Seria uma valorização do trabalho de quem faz o monitoramento e combate dos crimes ambientais em campo. 

Inclusive, nesta semana, a nossa equipe da InfoAmazonia trouxe alguns dados que me deixaram preocupada, e eles têm tudo a ver com isso. Gostaria de compartilhar com o senhor: entre janeiro e junho deste ano, a aplicação de multas contra infratores ambientais na Amazônia apresentou uma queda de 67,3% em relação ao mesmo período do ano passado. Isso é um efeito colateral da paralisação dos servidores. 

E essa é só a primeira preocupação que trago nesta carta, presidente.

Recentemente, acompanhei suas falas em defesa da exploração do petróleo na Amazônia, em especial na região da foz do rio Amazonas. Além disso, a nova presidente da Petrobras, Magda Chambriard, chegou a dizer que o petróleo pagaria a conta da transição energética e, naturalmente, eu fiquei curiosa para entender como isso seria feito. Nem tive tempo de pesquisar se isso já havia sido implementado em outro país (o que eu acho bem difícil) e meus colegas da Folha de S.Paulo conversaram com três fontes do seu governo que afirmaram que não existe um plano estruturado no âmbito federal para uma transição energética paga pelo petróleo.

Em sua cerimônia de posse, a presidente da Petrobras, Magda Chambriard, posa ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por isso, acho importante retomar o seu plano de governo. Vamos à página 15. Lá, você afirmava que “os custos de não enfrentar o problema climático são inaceitáveis” e que o “compromisso será cumprir, de fato, as metas de redução de emissão de gás carbônico que o país assumiu na Conferência de 2015 em Paris e ir além, garantindo a transição energética.”

O seu posicionamento atual a respeito da exploração de petróleo está em desacordo com essa sua proposta eleitoral. Como cumprir metas de redução de emissão de gás carbônico aumentando a exploração de combustíveis fósseis no planeta? Sem falar nos danos ao ecossistema amazônico e às comunidades tradicionais que sobrevivem na região da foz…

E, por falar em comunidades tradicionais, meu caro presidente, e a demarcação de terras indígenas? Poxa vida, o senhor subiu a rampa ao lado do cacique Raoni, foi uma coisa linda e simbólica. Você criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e deu mais fôlego à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que estava respirando por aparelhos nos anos de Bolsonaro. Vamos nadar, nadar e morrer na praia com o marco temporal?

Eu sinto que não consigo mais entender a posição do seu governo em relação a isso. Ficou tudo nas mãos do MPI? Qual é a articulação que o senhor e aliados têm feito dentro do Congresso para tentar barrar essas pautas-bomba da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA)? Recentemente, o próprio Ministério da Justiça e da Segurança Pública confirmou à InfoAmazonia que está sem declarar novas terras indígenas devido à insegurança jurídica do marco temporal. 

Por isso, mais uma vez, vou precisar citar o seu plano de governo. Na página 7, você prometeu: “Estamos comprometidos com a proteção dos direitos e dos territórios dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Temos o dever de assegurar a posse de suas terras, impedindo atividades predatórias, que prejudiquem seus direitos”. Eu imagino que o senhor sabe que é impossível fazer isso sem demarcar as terras dos povos tradicionais.

Bom, presidente Lula, fico por aqui. Seria muito tranquilizador receber uma resposta sua. Não precisa ser por carta. Estou acompanhando as notícias. Estaremos de olho. 

Um abraço com esperança. 

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Carolina Dantas

Carolina Dantas é editora da InfoAmazonia e jornalista ambiental desde 2015. Anteriormente, trabalhou na Folha de S.Paulo, Globo e Grupo RBS. Em 2022, recebeu o título de alumni do Departamento de Estado...

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4 comments

  1. Prezada Carolina Dantas, li e reli sua carta ao presidente Lula, consternado com a verdade absoluta de suas reflexões. Tenho criticado todos os malfeitos desse governo, pois votei em LULA com a convicção de que ele não deixaria de cumprir suas promessas. Também entendo que nosso presidente está preso a acordos e conchavos com inimigos da democracia e bolsominions que ocuparam pastas importantes do ministério. Discordei radicalmente da criação do Ministério dos Povos Indígenas, que até hoje não disse a que veio, replicando as atribuições da FUNAI, que está desmantelada e perdida em discussões inúteis, sem cumprir sua missão de proteger os Povos Indígenas Isolados, onde eu trabalho. Espero que a equipe do presidente Lula tenha, ao .enos a dignidade de responder a todos os seus questionamentos. Quero lhe dar meu apoio irrestrito nessa mensagem. Atenciosamente,
    João Carlos Figueiredo

  2. Carolina foi certeira em todas as suas colocações. Reflete exatamente o sentimento de todos nós, servidores ambientais federais, que acreditamos no Plano de Governo apresentado, mas cujas ações não condizem em nada com o que vivenciamos na prática. Sem servidores ambientais valorizados não há natureza preservada, não se cumpre o ART. 225 da Constituição Federal, nem tampouco as promessas feitas internacionalmente para arrecadar recursos. Mas a conta vem. A natureza devolve, vide as catástrofes climáticas recentes. O momento é já, é pra ontem! #reestruturaçãojá #SOSservidoresambientaisfederais #10anosdeabandono #icmbio #ibama

  3. Olá Carolina!
    Maravilhosa tua análise e exposição dessa contradição absurda!

  4. Não é de agora!
    Vai ver o que aconteceu nas grandes obras do PAC, nos governos Lula 2 e Dilma 1.
    Os servidores do Ibama foram atropelados… até contratação de consultoria externa para realizar a avaliação de impactos ambientais (que é atribuição legal de servidores efetivos) para emitir pareceres favoráveis foi feito.
    E por falar em arrepio da lei, na época o presidente do Ibama (Kurt Trenempol) lançou mão de um expediente que nunca havia sido visto antes (nem depois), a Licença Parcial, instrumento que não existe no direito ambiental brasileiro.
    Comparar este governo com o anterior não chega a ser comparar Cila com Caríbdis, o que na minha opinião valeria para Temer x Bozo.
    Mas o Lula está cozinhando a questão ambiental em fogo brando, o resultado final não vai ser muito diferente no longo prazo.
    Mais de 450 bilhões para o Plano Safra, com pouquíssimas restrições ambientais vão trazer mais impactos para o meio ambiente do que as declarações criminosas do presidente anterior.

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