Conselho Indigenista Missionário aponta em novo levantamento que a operação se mostrou ineficaz e afirma que foram registradas oito novas invasões e cinco assassinatos na Terra Indígena Yanomami em 2023. O documento também traz dados gerais da Amazônia Legal no ano passado: foram 196 casos de invasão por posse de terra, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio, representando 71% dos registros do país.
O Relatório “Violência Contra Povos Indígenas no Brasil”, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi: O Cimi é um organismo vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que, em sua atuação missionária, trabalha junto aos povos indígenas.), publicado nesta segunda-feira (22), afirma que as ações do primeiro ano do governo Lula foram insuficientes para conter as invasões nas terras indígenas e que a maior operação de retirada de garimpeiros, a força-tarefa realizada na Terra Indígena (TI) Yanomami no início de 2023, caiu na “inércia”.
Na Amazônia Legal, foram 196 casos de invasão por posse de terra, exploração ilegal de recursos naturais e danos ao patrimônio, representando 71% do total registrado no Brasil (276), segundo o documento. Em Roraima, foram registrados 16 casos, sendo que oito deles ocorreram na TI Yanomami. “Algumas ações de desintrusão foram realizadas, mas nenhuma com o fôlego inicial da força-tarefa Yanomami, que também caiu em inércia sem que o garimpo tenha sido desarticulado por completo”, diz o Cimi.
O relatório lembra, por exemplo, que em agosto do ano passado a Associação Wanasseduume Ye’kwana, que representa comunidades indígenas da TI Yanomami, denunciou ao Ministério Público Federal (MPF), Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Polícia Federal e Exército Brasileiro que os garimpeiros voltaram a invadir o território, colocando mulheres e crianças em risco.
“A Operação Yanomami mostrou-se ineficaz. A desnutrição, a desassistência e a morte de mulheres, crianças e homens no território constam dos próprios dados oficiais. Pressionado, o governo buscou dar respostas, porém sempre de forma desarticulada e desorganizada. Desejava mostrar que agia, mas sem capacidade técnica, estrutural e política para realizar ações e serviços de combate às invasões de garimpeiros”, escreveram Lucia Helena Rangel e Roberto Antonio Liebgott, que assinam um dos artigos no relatório.
O relatório também cita outra nova invasão à TI Yanomami. Em novembro do ano passado, a Associação Urihi Yanomami, instituição que também representa comunidades da TI Yanomami, mostrou imagens de um sobrevoo do povo em isolamento voluntário Moxihatëtë thëpë. “O vídeo evidencia as limitações das operações de retirada dos garimpeiros da TI Yanomami, deixando as comunidades, especialmente as mais próximas das atividades de garimpo, vulneráveis”, aponta o documento.
O Cimi faz uma retrospectiva do início desta gestão de Lula, que subiu a rampa do Palácio do Planalto ao lado do cacique Raoni, criou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) com Sonia Guajajara e entregou a Funai para a gestão de Joênia Wapichana.
“Restava saber se o inédito [ações de Lula no início do governo] significava uma vontade genuína de transformar a política ou ficaria no campo da estética do poder, do simbolismo e da imagem internacional. Sem recursos econômicos nem estrutura, e sem poder político dentro do conjunto do Executivo, o ‘fato inédito’ pode servir, na verdade, como legitimador da inércia e como método de captura”, afirma Luís Ventura, advogado do Cimi, em artigo que compõe o relatório.
A reportagem questionou o MPI sobre as dificuldades encontradas para reduzir as invasões nas terras indígenas e sobre as críticas feitas pelo Cimi a respeito da força-tarefa na TI Yanomami, mas não obteve resposta até a publicação.
Aumento de assassinatos
O documento também aponta um aumento de 15% nos assassinatos de indígenas no Brasil, saltando de 180 casos para 208, em 2023. Nos estados da Amazônia Legal, o aumento foi de 14%, saindo de 97 registros para 111. Roraima e Amazonas estão em primeiro e terceiro lugar entre os estados do país com mais assassinatos, com 47 e 36 mortes, respectivamente. O Mato Grosso do Sul, fora da Amazônia Legal, está em segundo lugar, com 43 assassinatos.
Os dados de violência contra a pessoa — ameaças de morte; ameaças várias; assassinatos; homicídio culposo; lesões corporais; racismo e discriminação étnico-cultural; tentativa de assassinato e violências sexuais — tiveram uma redução de 1%, saindo de 416 casos registrados em 2022 para 411 casos registrados em 2023, no Brasil.
Em Roraima e Amazonas, o relatório destaca a violência contra o povo Yanomami, que teve cinco assassinatos, e o povo Kulina, que tem oito. Também foram registrados assassinatos no Acre (6), Maranhão (10), Pará (4), Rondônia (1) e Tocantins (4). Os homens são as principais vítimas, com 95 registros e adultos de 20 a 59 anos são 82% dos casos.
“Ataques de garimpeiros contra indígenas Yanomami, em Roraima e no Amazonas, seguiram sendo registrados ao longo de 2023, apesar das operações realizadas no primeiro semestre do ano na TI Yanomami. Assassinatos, ataques armados, violências sexuais e aliciamento de indígenas para o garimpo, com fomento de conflitos internos, integraram o trágico quadro da continuidade das violências neste território”, explica o Cimi, no relatório.
O documento também aborda os ataques ao povo Guajajara, da TI Arariboia, no Maranhão. Reportagem publicada na InfoAmazonia mostrou que entre 1991 e 2023, 81 indígenas Guajajara foram assassinados no Maranhão e a TI Arariboia está sofrendo com invasões de fazendeiros e madeireiros. Também foi destaque, entre os conflitos na Amazônia Legal, os ataques ao povo Tembé e Turiwara, que vivem em disputa territorial com empresa ligada à produção de óleo de palma, no nordeste do Pará.
Demarcações e marco temporal
O relatório também traz, no capítulo sobre violência contra o patrimônio, o embate sobre a tese do marco temporal. O Cimi coletou informações sobre as terras indígenas com pendência, ou seja, que aguardam alguma fase do processo demarcatório ser concluída.
A Amazônia Legal tem 46% das terras com pendências, com 391 das 850 registradas no país. Na região, o Amazonas registra o maior número delas, 56% (220). De acordo com o relatório, os processos de demarcação não tiveram a celeridade necessária e as discussões sobre o marco temporal causaram uma indefinição para a conclusão dos prazos. O Cimi registrou que 15 portarias de criação de Grupos Técnicos (GTs) de Identificação e Delimitação de terras indígenas foram publicadas, entre o início de 2023 a junho de 2024.
Os GTs são de responsabilidade da Funai e elaboram os Relatórios Circunstanciados de Identificação e Delimitação, documentos que definem os limites territoriais e traçam um histórico da presença dos povos na região reivindicada. No primeiro ano do governo de Lula, foram publicados apenas três relatórios desse tipo, referentes às TIs Krenak de Sete Salões (MG), Sawré Ba’pim (PA) e Kapôt Nhinore (PA/MT).
FASES DA DEMARCAÇÃO DE UMA TERRA INDÍGENA
– Elaboração e aprovação pela Funai do estudo de identificação da terra indígena: o órgão indigenista realiza estudos antropológicos, fundiários, cartográficos e ambientais para identificar e delimitar a terra tradicional.
– Período de contestação do estudo: após a publicação do relatório, há um período em que outros órgãos governamentais e a sociedade civil podem contestar os limites propostos.
– Declaração dos limites territoriais pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP): após a análise das contestações, o MJSP declara os limites da terra indígena.
– Demarcação física da terra indígena pela Funai: a Funai realiza a demarcação física dos limites no terreno.
– Homologação da terra indígena: o presidente da República homologa o território demarcado, oficializando os direitos indígenas sobre a área.
– Registro final da terra indígena: a terra é registrada em cartório, concluindo o processo de demarcação.
O Cimi lembrou que as portarias declaratórias, que oficializam os limites territoriais das terras analisadas pela Funai, de responsabilidade do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), não estão sendo publicadas. Na semana passada, a InfoAmazonia mostrou que o MJSP não está publicando em decorrência do marco temporal. “A indefinição sobre o marco temporal torna impossível uma previsão acerca do cumprimento dos prazos estabelecidos nas portarias, na medida em que o governo hesita e utiliza a Lei 14.701/2023 como justificativa para não avançar nos procedimentos demarcatórios”, diz o relatório.
“Para os povos indígenas, o processo constituinte não se encerrou em outubro de 1988, pois desde o dia seguinte tiveram que enfrentar uma ofensiva permanente dos poderes econômicos, dos Congressos e governos sucessivos, para descaracterizar e desconstruir os direitos originários dos povos, conquistados e reconhecidos no texto constitucional”, complementa o documento.