Em documento divulgado no encerramento do Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) critica decisões dos três poderes e questiona relação do ministro do Supremo Gilmar Mendes com a bancada ruralista: ‘decisões tomadas em um almoço desses’.
A 20ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL) chegou ao fim nesta sexta-feira (26). No encerramento, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), organizadora do evento, divulgou uma carta crítica aos três poderes e chamou as decisões que suspendem as demarcações de terras de “declaração de guerra”.
“A decisão deliberada dos poderes do Estado de suspender a demarcação das terras indígenas e de aplicar a lei 14.701 (Lei do Genocídio Indígena) equivale a uma declaração de guerra contra nossos povos e territórios. Isso representa uma quebra no pacto estabelecido entre o Estado brasileiro e nossos povos desde a promulgação da Constituição de 1988, que reconheceu exclusivamente nossos direitos originários, anteriores à própria formação do Estado brasileiro”, diz o documento.
O advogado da Apib, Maurício Terena, disse, durante entrevista coletiva a jornalistas, que a organização estuda meios jurídicos para contestar a recente decisão do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que suspendeu todas as ações que questionam a legalidade da lei 14.701/2023, aprovada pelo Congresso no final do ano passado, e abriu uma conciliação para discutir a tese do marco temporal.
“O ministro [Gilmar Mendes] quer assim dar sinal verde para os que querem invadir nossas terras passarem a boiada sobre nossas vidas”, diz um outro trecho do documento. A carta afirma, ainda, que Mendes teria sido “parcial” em sua decisão. Chamada de “Lei do Genocídio Indígena” pelo movimento indígena, a lei 14.701 estabelece um marco temporal para terras indígenas e abre os territórios para exploração de recursos naturais.
Desde a aprovação pelo Congresso, segundo Terena, os direitos indígenas se encontram em “um limbo jurídico”, que tem implicado em paralisações e suspensão de processos para demarcação de terras.
“Já é claro, por decisão do próprio STF, que o marco temporal é inconstitucional. Toda essa confusão política está sendo feita para, em alguma medida, alguns interesses que estariam obscuros virem à tona nessas ações. A pauta da mineração em terras indígenas pode ser utilizada dentro dessas ações para ser regularizada”, afirma o advogado da Apib.
Toda essa confusão política está sendo feita para, em alguma medida, alguns interesses que estariam obscuros virem à tona nessas ações. A pauta da mineração em terras indígenas pode ser utilizada dentro dessas ações para ser regularizada.
Maurício Terena, advogado da Apib
Essa conexão apontada por Terena entre a decisão de Gilmar Mendes e a mineração de terras indígenas está relacionada às ações selecionadas pelo próprio ministro para a suspensão no início da semana. Além de paralisar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7582, 7583 e 7586, que de fato questionam a lei do marco temporal, Mendes também incluiu no pedido de conciliação uma posição sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 86, proposta pelo Progressistas (PP), que exige uma posição do STF a respeito da regulamentação da exploração de recursos naturais em terras indígenas (artigo 231), que inclui mineração.
A advogada Juliana Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), explica a diferença entre os dois tipos de ações diretas: as ADIs questionam uma lei aprovada pelo Congresso, enquanto a ADO pede que o Congresso regulamente artigos da Constituição. “São coisas diferentes e deveriam ser julgadas de forma independente”, diz.
Atualmente, a mineração e exploração de recursos naturais em terras indígenas é proibida pela Constituição, exceto quando há relevante interesse público da União e mediante aprovação de lei complementar.
Xadrez político
Durante a entrevista coletiva com jornalistas, Terena também destacou a proximidade de Gilmar Mendes com a bancada ruralista e afirmou que o ministro tem realizado encontros constantes com membros do agronegócio, tanto no Brasil, como no exterior:
“Os indígenas não almoçam com ministros do Supremo e, por sua vez, parece que essas decisões são tomadas em um almoço desses. A gente já começa em desvantagem”, declarou o advogado, apontando que as articulações para retirada de direitos dos povos indígenas são um “jogo de xadrez”.
Os indígenas não almoçam com ministros do Supremo e, por sua vez, parece que essas decisões são tomadas em um almoço desses. A gente já começa em desvantagem.
Maurício Terena, advogado da Apib
Na decisão para que as ações sejam encaminhadas para conciliação, Gilmar Mendes defendeu a “pacificação dos conflitos, na tentativa de superar as dificuldades de comunicação”. Em entrevista à InfoAmazonia nesta semana, a líder indígena Txai Suruí disse que “existem direitos que não se negociam” e criticou diretamente a decisão do ministro.
Além das partes envolvidas, indígenas e ocupantes dos territórios, a comissão de conciliação proposta por Mendes também contará com a participação de representantes do Executivo e do Congresso.
Para o advogado da Apib, por se tratar de direito fundamental, previsto na Constituição, os direitos indígenas não podem sofrer retrocessos como prevêem os artigos da lei 14.701 e diz que as pressões sobre as áreas destinadas aos indígenas se “tornaram uma disputa política”.
A tese do marco temporal estabelece que só podem ser reconhecidas as terras indígenas que estavam ocupadas até 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição. Em setembro do ano passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o marco temporal, com repercussão geral sobre qualquer novo questionamento sobre a demarcação de terras indígenas com base nessa tese.
No entanto, mesmo após a decisão do Supremo, o Congresso aprovou uma série de alterações legislativas sobre as terras indígenas, incluindo a tese do marco temporal. A aprovação da lei 14.701 foi articulada por uma campanha da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que chegou a ser vetada pelo presidente Lula (PT). Os vetos foram derrubados e a lei sancionada pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), em 28 de dezembro de 2023.
Na mesma data, o PP e o Republicanos entraram com pedido para que o STF reconhecesse a constitucionalidade da lei aprovada no Congresso (ADC 87), que por sorteio acabou indo parar sob a relatoria de Gilmar Mendes. Na sequência, a Apib e os partidos Psol, Rede Sustentabilidade, PT, PCdoB e PV também ingressaram com ações, mas pedindo a inconstitucionalidade da lei. Por atribuição, todos os pedidos acabaram indo direto para a relatoria de Mendes, assim como a ADO apresentada pelo PP.
Indígenas querem julgamento no plenário do STF
A decisão de Gilmar Mendes, agora, aguarda referendo do plenário do STF. A pauta foi colocada para apreciação dos ministros no plenário virtual, mas o movimento indígena quer que a discussão ocorra no plenário presencial.
Juliana Batista, do ISA, avalia que o debate presencial poderá resolver alguns pontos divergentes sobre o assunto. “Para isso ocorrer, é preciso que algum dos ministros peça destaque: Os processos com pedido de destaque ou de sustentação oral deferidos pelo relator serão julgados no ambiente físico (Plenário ou Turmas, dependendo da competência).. Ainda é possível que sejam apresentados votos divergentes sobre a decisão de Gilmar Mendes”, explica a advogada.
Nas próximas semanas, enquanto buscam os meios jurídicos para reverter a decisão de Mendes, os coordenadores da Apib devem buscar também interlocução com os demais ministros do STF para sustentar a necessidade de um debate mais amplo.
Lula fará interlocução com Gilmar Mendes
Na quinta-feira (25), após uma marcha dos povos indígenas até a Praça dos Três Poderes, o presidente Lula recebeu lideranças do movimento e se comprometeu a buscar pessoalmente uma interlocução junto a Gilmar Mendes. A informação foi confirmada à imprensa pelo o ministro da Secretaria-Geral da Presidência da República, Márcio Macêdo.
A promessa do governo federal é criar uma força-tarefa em até duas semanas, que vai incluir também a interlocução com governadores e outros atores envolvidos nas disputas pela demarcação de terras indígenas. O grupo será liderado pela ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que deve visitar governadores em Pernambuco, Alagoas e Santa Catarina para resolver “problemas políticos” que travam demarcações que dependem da homologação do presidente.
Na semana passada, Lula justificou a não demarcação de pelo menos quatro terras indígenas alegando que alguns governadores haviam solicitado mais tempo para resolver questões locais. A manifestação gerou indignação entre os indígenas, que apontaram que as terras declaradas não estariam passíveis de questionamentos.
“Deixamos bem claro para o presidente que ele não pode inaugurar uma nova modalidade no processo de demarcação, que é a consulta a governadores”, afirmou Dinamam Tuxá, coordenador da Apib.