Em 2004, quando haviam 74 casas flutuantes no rio, a Justiça do Amazonas determinou a retirada das habitações devido ao risco de danos ambientais. No entanto, a decisão só passou a ser executada neste ano, quando já existem 900 estruturas no local, sendo que, agora, a maioria delas é utilizada para lazer, turismo e restaurantes.

O número de casas flutuantes: Construções feitas de madeira que são sustentadas por boias flutuantes. Diferente das palafitas, elas não ficam somente nas margens dos rios, mas são capazes de flutuar no meio. no rio Tarumã-Açu, em Manaus, disparou em 20 anos: eram 74 em 2004, contra 900 neste ano (alta de mais de 1.000%), segundo dados divulgados pela Prefeitura de Manaus. Se antes eram apenas habitações flutuantes, agora também são lugares de lazer, restaurantes, piers, garagens, transformando o rio em ponto comercial. Com esse crescimento expressivo, o assunto voltou à tona e os moradores da região podem perder suas residências: uma decisão judicial de 20 anos atrás, que já pedia a retirada das estruturas sobre as águas, passou a ser cumprida em etapas em 26 de março, começando pelos espaços abandonados. 

A determinação da Justiça, de 2004, começou a ser executada após uma ação civil do Ministério Público do Amazonas (MP-AM), que iniciou em 2001, sob a alegação de que as casas flutuantes eram potencialmente poluidoras e que, por isso, o rio estaria em risco. “Ocorre que existem pessoas que não têm onde morar e constroem casas em cima de toras de madeira (flutuantes) e vivem nos rios utilizando-se das águas para jogarem seus detritos […] Neste contexto, verifica-se que as pessoas que estão no local não estão obtendo uma vida sadia e, ainda, estão ‘matando o rio’, com a sujeira que é jogada diariamente”, disse à época o promotor Mário Bezerra. 

Dentre os 900 flutuantes agora em 2024, a prefeitura estima que 660 sejam para recreação e comércio, 190 sejam para moradia e outros 50 são piers. Nem sempre foi assim e, há 20 anos, existiam apenas os flutuantes utilizados para habitação. Nos últimos anos, no entanto, o rio virou ponto turístico e de lazer, levando dezenas de pessoas a frequentarem o local. Durante a pandemia, o problema se agravou: com restaurantes e bares fechados, festas clandestinas passaram a ser organizadas na região, cuja fiscalização é mais difícil. Isso porque a maior parte da ocupação no rio Tarumã-Açu não segue as normativas habitacionais e foi ocorrendo livremente, sem retirada das estruturas ou cobrança de impostos por parte da prefeitura, responsável pela proteção dos recursos hídricos dentro do município, ou do governo do Amazonas. 

Flutuantes no rio Tarumã-Açu, em Manaus, podem ser retirados após decisão judicial. Foto: Divulgação/TJAM Credit: Divulgação / TJAM Credit: Divulgação / TJAM

O Tarumã-Açu é um grande afluente do rio Negro e é, na verdade, uma bacia, de onde surgem outros rios: Acará, da Bolívia, Argola, Cabeça Branca, do Branquinho, do Caniço, do Gigante, do Leão, do Mariano, Matrinxã, do Panermão, do Santo Antônio, do São José, do Tiú e o Tarumã-Mirim.

O morador Diego Campos comprou um flutuante no Tarumã há seis anos para morar e prestar serviço nas lanchas e nos restaurantes e, à InfoAmazonia, explica que sobrevive do trabalho no rio: “eu não tenho estudo. Quando eu era adolescente, me envolvi na criminalidade. É muito difícil arrumar emprego na cidade. Faço limpeza e manutenção de flutuantes. Dá pra ganhar uma grana boa e eu gosto de viver nessa tranquilidade”. Ele também conta que gastou R$ 3 mil com a caixa de dejetos, um equipamento para armazenar material fecal e outros resíduos domésticos de lugares sem tratamento de esgoto, mas que ainda não conseguiu obter documentação e fazer a instalação.

 

Eu não tenho estudo. Quando eu era adolescente, me envolvi na criminalidade. É muito difícil arrumar emprego na cidade. Faço limpeza e manutenção de flutuantes. Dá pra ganhar uma grana boa e eu gosto de viver nessa tranquilidade.

Diego Campos, morador de casa flutuante

Diego tem duas crianças, de 5 e 6 anos, e mora com a esposa. Além de estar preocupado com a própria casa, também tem medo de perder o emprego com a retirada dos flutuantes de lazer. “Se eles tirarem, não sei nem para onde a gente vai, porque até embaixo da ponte está tudo cheio”. 

Já Israel Oliveira, outro morador, trabalhava pilotando lanchas no rio Tarumã em 2011 quando comprou uma casa flutuante. Na época, ela custou R$ 20 mil. Com três filhos, ele decidiu fazer a vida por ali e, hoje, trabalha fazendo reparos nas estruturas de lazer e comércio. Nascido e criado na zona rural de Manaus, ele diz que tem medo de ser despejado e que sempre viveu ao lado da natureza. “Não tenho vontade de morar na cidade. Eu gosto dessa calma aqui. É muito bom durante a semana, então…imagina. É como estar no interior, tudo silêncio”. 

Com o crescimento do número de novos flutuantes, Israel diz que algumas coisas mudaram. Ao mesmo tempo em que houve um aumento da poluição sonora, as oportunidades de emprego também se diversificaram. “Eles são a renda da gente. bastante preocupado. Se retirar tudo, como vamos ter a nossa renda? Se eu precisar sair, eu também não sei nem o que fazer, porque não iria ter ganho com o que construí”, explica o morador. 

Eles [flutuantes] são a renda da gente. bastante preocupado. Se retirar tudo, como vamos ter a nossa renda? Se eu precisar sair, eu também não sei nem o que fazer, porque não iria ter ganho com o que construí.

Israel Oliveira, morador de casa flutuante
Israel Oliveira mora no flutuante há mais de dez anos no rio Tarumã-Açu. Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia

Habitações em risco e poluição no rio Tarumã-Açu

Desde o início do ano, a Defensoria Pública do Estado (DPE) pede que a decisão de retirada seja suspensa sob argumento de que é necessário escutar os novos moradores que, na época do processo, não foram consultados. A Justiça aceitou parcialmente os pedidos da DPE, garantindo a participação da Comissão de Conflitos Fundiários, do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), que agora deve escrever um relatório sobre o contexto social das pessoas que moram ali para remeter novamente à Justiça. 

À InfoAmazonia, a DPE afirmou que os flutuantes estão sendo usados como “bode expiatório” para a poluição que vem dos afluentes da bacia. O órgão reafirma que os moradores dos flutuantes do Tarumã-Açu não foram citados no processo inicial, que incluía apenas 74 casas, e que por isso não tiveram direito à defesa. A defensoria montou um comitê para acompanhar as discussões da Comissão de Conflitos Fundiários do TJAM. 

Placa de notificação fixada pela Prefeitura de Manaus, em casa flutuante no rio Tarumã-Açu. Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia

“O que tem se demonstrado, nas nossas visitas em campo e os relatos que existem no próprio processo, é que a afirmação de que os flutuantes são os poluidores do Tarumã-Açu não é verdadeira. Os flutuantes foram eleitos como bode expiatório. O que tem se constatado é que são os igarapés, em sua grande maioria, afluentes do Tarumã, que têm levado a maior parte da poluição para o Tarumã. Esse fato não tira, obviamente, a obrigação e preocupação no sentido de se buscar a organização dos próprios flutuantes para que eles possam estar adequados com relação à permanência na localidade”, afirmou a defensoria, em resposta à reportagem. 

Os flutuantes foram eleitos como bode expiatório. O que tem se constatado é que são os igarapés, em sua grande maioria, afluentes do Tarumã, que têm levado a maior parte da poluição para o Tarumã.

Defensoria Pública do Estado (DPE)

A principal alegação da ação civil do MP-AM é a de que a permanência das estruturas pode causar danos ambientais ao curso hídrico, já que a maioria delas não possui destinação adequada de esgoto. Em nota enviada ao site Amazonas Atual, em julho de 2023, a Marinha informou que, entre os 900 flutuantes, 146 (16%) obtiveram a licença “Nada a Opor”, que garante uma das fases de regularização. Para obter o documento, é necessário ter uma Estação de Tratamento de Efluentes (ETE) no empreendimento ou habitação, o que assegura justamente o tratamento de esgoto. Ou seja, apenas 16% têm tratamento de esgoto. A reportagem procurou a Marinha para confirmar e atualizar os dados, mas não obteve resposta até esta publicação. Também procurou o MP-AM e questionou sobre a necessidade de reavaliar o processo, mas tampouco houve retorno. 

Além disso, uma parte dos flutuantes possui caixa de dejetos, mas a região não possui coleta de lixo passando nas casas. Os habitantes acabam jogando os resíduos em uma lixeira coletiva sobre o rio e, semanalmente, a prefeitura passa com uma lancha para recolher. Esse sistema foi organizado pelos próprios moradores, porque, até 2022, eles precisavam deixar o lixo no porto do rio, onde a prefeitura fazia a retirada. 

Lixeira coletiva no rio Tarumã-Açu, organizada por moradores que descartam em ponto único para depois a Prefeitura de Manaus recolher. Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia

Apesar disso, vale ressaltar que nem todo o esgoto despejado no rio é originalmente dos flutuantes, como aponta relatório técnico feito por um grupo de pesquisa da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), a pedido do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam). Segundo o documento, o rio também recebe resíduos e substâncias de condomínios que estão ao redor, marinas, moradias indevidas e até mesmo do aterro sanitário municipal. A reportagem entrou em contato com o órgão solicitando nota sobre a análise do relatório e o impacto disso, mas não obteve resposta.

Em julho do ano passado, o Ipaam embargou uma obra que estava sendo feita em uma mansão construída às margens do rio. Isso ocorreu após denúncia publicada pelo g1 Amazonas, que mostrou a existência de 20 mansões no entorno do rio, com construções sendo feitas de forma irregular. Como consequência dessas interferências urbanas, há uma degradação do rio e dos igarapés. 

No entanto, a análise dos pesquisadores mostra que o Tarumã-Açu ainda está em uso aceitável para banho, e alerta para os fatores de risco caso não ocorra uma redução dos danos ambientais à região. Sérgio Duvoisin Junior, professor que assina o relatório, explica que é necessário uma regulação por parte dos órgãos do Estado. 

“Sem dúvida, o chorume do aterro sanitário vai para o igarapé da Bolívia e vai desembocar no Tarumã-Açu. Dizer simplesmente que o problema são os flutuantes não é uma verdade. Os flutuantes são uma variável a mais que apareceu há alguns anos e que é muito localizada. Eu acho que a partir da exposição desse problema do Tarumã-Açu, a partir do momento que a população vê que ele é importante para o lazer, para a pesca, o povo tem que tomar consciência de que alguma coisa precisa ser feita e cobrar”, explica. 

Sem dúvida, o chorume do aterro sanitário vai para o igarapé da Bolívia e vai desembocar no Tarumã-Açu. Dizer simplesmente que o problema são os flutuantes não é uma verdade. Os flutuantes são uma variável a mais que apareceu há alguns anos e que é muito localizada.

Sérgio Duvoisin Junior, professor
Professor Sérgio Duvoisin Junior, responsável por análises da qualidade da água do rio Tarumã-Açu. Foto: Jullie Pereira/InfoAmazonia

O professor afirma que alguns parâmetros já demonstram que o rio precisa ser mais preservado, como é o caso do aumento do potencial hidrogeniônico: É uma medida que varia de 1 a 14 e mede a acidez da água. Quanto mais ácido, menor é o pH; quanto mais básico, maior é o pH. (pH). Nas águas dos rios amazônicos, o normal é que essa medida esteja entre 4,0 a 5,5. No período analisado, de 2021 a 2023, em alguns meses, a média foi de 5,69 e 6,99. Esse é um dos principais indicadores para medir a ação humana, já que as fezes e a urina alteram o pH. 

“Os parâmetros que têm a ver com a gente [seres humanos] estão piorando. Esse é o problema, mas a gente está antevendo. A gente está mostrando. Olha, está piorando. Então, está na hora de ter a ação para estabilizar”, explicou Duvoisin. 

Tratamento de esgoto em Manaus

Em Manaus, 73% da população não tem acesso a tratamento de esgoto. As casas que vivem ao redor dos igarapés e dos rios acabam tendo seus dejetos e lixos jogados na água, segundo o Trata Brasil, organização da sociedade civil formada por empresas com interesse no avanço do saneamento básico e na proteção dos recursos hídricos. “A gente tem uma concessionária de água que precisa fazer o tratamento de esgoto, mas não está sendo feito completo ainda. Ela tem que começar a ter essa responsabilidade e fazer o papel dela. As pessoas têm que fazer o papel delas também. Se existe uma rede de esgoto passando, a pessoa tem que regularizar [a situação de sua casa] também”, defende Duvoisin Junior. 

Em janeiro deste ano, a Águas de Manaus, empresa que assumiu o serviço de tratamento de esgoto em 2018, lançou o programa “Trata Bem Manaus” com o objetivo de chegar a 90% de saneamento na cidade até 2033. A região do Tarumã-Açu, no entanto, ficou por último no planejamento e deve fazer parte dos 10% que terão o problema resolvido entre os anos de 2033 e 2046. De acordo com os dados do Trata Brasil, Manaus está entre as 20 piores cidades no ranking de saneamento básico nos últimos 10 anos.

O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Tarumã-Açu, Jadson Maciel Gilberto, afirma que a região precisa de fiscalizações para conter crimes ambientais. Ele informou que está enviando um ofício solicitando a mudança de local do Batalhão da Polícia Ambiental, para ficar mais próximo dos flutuantes, já que atualmente está localizado no porto, a cerca de 20 minutos de distância de lancha. 

“A bacia tem uma série de conflitos. Os flutuantes viraram destaque, mas se a gente for identificar aqui os problemas que a bacia tem, eles são vários. É extração de madeira, extração de areia, é invasor de terra e desvio de energia, pesca ilegal, praias feitas sem autorização, mansões sendo construídas também na margem do rio sem autorização. Então, vai muito além da questão dos flutuantes”, afirma. 

O comitê está dentro da estrutura da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Além de ser presidente, Jadson Maciel também é morador da bacia e tem um programa de educação ambiental chamado “Remada Ambiental”. O projeto foi responsável pela instalação da lixeira coletiva e tem atuado fazendo limpezas periódicas no local. “A gente quer propor que os flutuantes comerciais que estão regularizados permaneçam. Já os flutuantes de moradia, cabe ao município cadastrar e encontrar uma moradia para eles. Isso é outra novela”, afirma. 

A DPE, por sua vez, afirma que deve-se garantir que os moradores não sejam retirados, mas sim que passem por regulamentação: “a Defensoria Pública do Estado do Amazonas (DPE-AM) não espera que as pessoas sejam retiradas. Houve o encaminhamento para a Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Amazonas justamente para que o Judiciário decida em relação aos encaminhamentos que a DPE-AM tem apontado: a ausência da discussão do devido processo legal e a necessidade de regulamentação. A Defensoria espera a regulamentação. Entendemos que aqueles que não atenderem à regulamentação que se pretende desenhar não devem permanecer na área”. 

O TJAM afirmou à InfoAmazonia que, em caso de desocupação de todos os flutuantes, haverá uma ação coordenada com outros órgãos. “Na hipótese de desocupação, a referida Comissão promoverá uma ação coordenada entre os órgãos de habitação do Estado do Amazonas e do Município de Manaus, conjuntamente com a Defensoria Pública e o Ministério Público, visando encontrar uma solução para realocação dos residentes vulneráveis afetados”.

A reportagem também procurou a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Mudança do Clima, para comentar sobre os planos de assistência social do município, mas não obteve retorno. 

Manaus já teve uma cidade flutuante, entre os anos de 1920 e 1967. Isso ocorreu devido à crise da borracha, que à época era a principal fonte econômica do estado. Com a falta de emprego, muitos dos imigrantes e moradores não tinham mais onde viver e como se manter. Dessa forma, passaram a construir casas ao redor da cidade, que chegou a ter 2 mil flutuantes. 

Foto: Reprodução da tese de doutorado “ ‘Cidade Flutuante’, uma Manaus sobre as águas”, de Leno José Barata Souza.

O rio ficou cheio das casas, sem condições de tratamento sanitário. Em 1967, na gestão do governador Arthur Cezar Ferreira Reis, a cidade flutuante foi desfeita, gerando a criação de alguns bairros que hoje existem em Manaus, como o bairro Alvorada e Coroado. 

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Jullie Pereira

Repórter da InfoAmazonia em parceria com o Report for the World, que aproxima redações locais com jornalistas para reportar assuntos pouco cobertos em todo o mundo. Nasceu e mora em Manaus, no Amazonas,...

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