Edital para estudo de viabilidade técnica da ferrovia foi publicado em junho de 2014. De 2005 até 2013, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) do Pará registrou 2.389 multas; depois, com o início do projeto, foram 6.972.
As multas por crimes ambientais ao redor da Ferrogrão (EF-170), estrada de ferro de 933 quilômetros planejada entre Sinop (MT) e Miritituba (PA), aumentaram 190% após o início do projeto, segundo análise da InfoAmazonia com base nos dados da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMAS) do Pará. De 2014, ano de início do estudo de viabilidade técnica, até 2022, o órgão emitiu 6.972 multas na região (em um raio de 50 km ao redor do traçado da ferrovia), contra 2.389 no período anterior, de 2005 a 2013.
O edital para estudo de viabilidade técnica da ferrovia foi publicado em 10 de junho de 2014. Depois do lançamento do projeto, de junho até dezembro de 2014, foram registradas 1.088 multas por crimes ambientais, uma média de 170,7 multas por mês. Nos meses anteriores, de janeiro a maio, haviam sido registradas 238, uma média bastante inferior: 47,6 multas mensais. Ou seja: os números da SEMAS apontam uma alta imediata de 260% na média mensal de multas após o início da Ferrogrão.
Há, ainda, um segundo pico no número de multas na região da ferrovia, que ocorreu em 2022, ano em que a Justiça determinou a consulta prévia aos povos indígenas, algo que não estava sendo feito desde o início do projeto. A InfoAmazonia solicitou do governo do Pará uma resposta sobre os pagamentos das multas ligadas à Ferrogrão, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem.
Após o edital da Ferrogrão, além do aumento no número de multas, há uma mudança no tipo de crime ambiental registrado pela SEMAS do Pará. Até 2013, os delitos eram limitados principalmente a três categorias: desmatamento, construção de serrarias ilegais e extração de madeira. Depois, a variedade aumentou e passou a envolver também o porte de motosserra e uso de trator dentro de florestas protegidas, apreensão de animais silvestres em cativeiro, uso de mercúrio e extração de ouro em garimpo ilegal, entre outros.
Além disso, as infrações registradas de 2014 até 2022 geraram multas que hoje somam R$ 5,5 bilhões, em valores corrigidos pelo IPCA, número 130% maior do que o registrado no período anterior, R$ 2,4 bilhões (2005 a 2013), também corrigidos pelo IPCA. Dentre elas, 46% foram por desmatamento. Novo Progresso e Itaituba reúnem 62% dos casos de todos os tipos na região da Ferrogrão, com 4.349 mil multas aplicadas pela SEMAS do Pará após o início do projeto.
Entre as unidades de conservação (UCs), o Parque Nacional do Jamanxim é que concentra a maior parte das multas por crimes ambientais após o início do planejamento do projeto, em 2014, até 2022: são 457. Em 2017, foi sancionada a Lei nº 13.452, que alterou os limites da área protegida da floresta para a construção da ferrovia. Em setembro do ano passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes suspendeu a lei e pediu novos estudos ambientais para o licenciamento da obra.
Embargos do Ibama
A InfoAmazonia também analisou os embargos: É um instrumento utilizado pelos órgãos ambientais para interromper atividades que estejam causando danos ao meio ambiente ou que estejam em desacordo com as leis e normas ambientais. aplicados pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) antes e depois do começo do projeto da Ferrogrão, também em um raio de 50 km da ferrovia. No caso deles, é possível verificar os nomes dos infratores.
No total, foram 1.583 mil embargos na região de 2014 a 2023, contra 1.654 nos 10 anos anteriores, de 2004 a 2013, uma queda de 4%. Entre os nomes, estão alguns infratores conhecidos. É o caso de Antônio José Junqueira Vilela Filho, com 16 embargos. Ele foi preso preventivamente na operação Rios Voadores, em 2016, acusado de ser chefe de um esquema de desmatamento ilegal e grilagem de terras no interior do Pará. Sua família é envolvida no ramo da agropecuária. Em 2006, seu pai, Antônio José Rossi Junqueira Vilela, recebeu uma multa por desmatamento de R$ 60 milhões, em valores da época.
Já Ezequiel Antônio Castanha, que contabilizou oito embargos, chegou a ser preso em 2014 por invasão de terras públicas e desmate ilegal de florestas do Pará. Ele foi acusado de grilar as áreas e depois vendê-las a preços que chegavam aos R$ 20 milhões. Na mesma operação, foi preso também Giovany Marcelino Pascoal. Ele tem dois registros de embargo neste período. De acordo com inquérito da Polícia Federal (PF), ele atuava no mesmo esquema, junto com Ezequiel.
Impacto nos povos indígenas
O aumento dos crimes ambientais relacionados à Ferrogrão é uma das maiores preocupações dos povos indígenas da região. Mydjere Mekrã ngnotire, líder do povo Kayapó, vive na Terra Indígena (TI) Baú, um dos 11 territórios que já estão sofrendo impacto da ferrovia.
“Quando asfaltaram a BR-163, houve um aumento das fazendas perto da nossa reserva. Tem estrada perto da nossa reserva, roubo de madeira, roubo dos nossos peixes, roubos das coisas preciosas. Só de asfaltar a BR-163 já aconteceu isso, imagina a Ferrogrão. Só de falar na construção da Ferrogrão, já estão existindo novos armazéns grandes, para armazenar grãos. Eles já estão colados com a nossa reserva, isso é muito preocupante para nós”, disse Mydjere
A BR-163 foi inaugurada na década de 1970 e passou por processos de pavimentação em diferentes etapas. Em 2019, durante a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), ela foi completamente finalizada e gerou novos impactos às comunidades indígenas. A Ferrogrão tem um traçado paralelo à rodovia federal.
Além dos crimes ambientais, Mydjere Mekrãngnotire também denuncia que a Ferrogrão pode impactar uma região indígena considerada sagrada, onde foi enterrado o líder Kenti Kayapó, da TI Baú. No momento, os indígenas tentam identificar o local exato para registrar como ponto histórico da comunidade. “O Kenti fundou uma nova aldeia, subindo o rio Jamanxim. Lá é um lugar sagrado para nós. Vamos sair com uma equipe para colocar em mapa e proteger esse local, onde tem o cemitério do grande guerreiro Kenti. Queremos proteger essa memória, para que sobreviva a história”.
Uma nova análise da InfoAmazonia, publicada no início de março deste ano, identificou que o impacto do desmatamento e de crimes ambientais causados pelo projeto logístico do agronegócio, incluindo o traçado da Ferrovia e da BR-163, já afetam diretamente 64 aldeias, 11 terras indígenas e 20 unidades de conservação. Desde 2014, mais de 800 mil hectares de floresta foram desmatados nessa área, segundo dados do Prodes: O Prodes é o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal por Satélite, feito pelo Instituto de Pesquisas Espaciais. Nele, pesquisadores monitoram as taxas de desmatamento na Amazônia Legal, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), até 2023.
A analista Mariel Nakane, do Instituto Socioambiental (ISA), integra o Grupo de trabalho EF-170, criado em 2023 pelo Ministério dos Transportes para avaliar a vulnerabilidade socioambiental da Ferrogrão. “O que acompanhamos são os relatos dos povos indígenas e corroboramos a impressão deles, de que as atividades ilegais só têm aumentado, só tem chegado mais perto, mais próximo dos territórios. Então, temos relatos de roubo de madeira e de garimpo na TI Baú. Na [TI] Panará, os indígenas veem a soja encostar na terra, com uma pressão por arrendamento. Isso podemos dizer de forma concreta”, afirmou.
Ao redor dos 50 km da ferrovia, também existem 337 sítios arqueológicos, sendo 130 deles na cidade de Itaituba. Fordlândia, Monte Cristo, Apecê e Santarenzinho estão entre os sítios. São vestígios pré-coloniais e históricos, como cerâmicas, terra preta: Um tipo de terra escura que tem origem pré-colombiana e indica a presença de indígenas na Amazônia há milênios e lítico (rochas ou minerais) lascado e polido. Alguns estão rentes ao traçado da rodovia BR-163, como é o caso do sítio São João e do sítio São Cosme, ambos ainda em fase de estudo.
Esse perímetro de 50 km, utilizado na análise da InfoAmazonia, foi estabelecido com base em uma nota técnica do Instituto Kabu, na qual comunidades indígenas delimitaram a área de impacto da futura ferrovia. No âmbito legal, para efeitos de licenciamento, a Portaria Interministerial nº 60, de 24 de março de 2015, determina que todas as terras indígenas situadas num raio de 10 km da construção de ferrovias na Amazônia Legal devem ser submetidas a um Estudo de Componente Indígena (ECI): Os Estudos de Componente Indígena (ECI) representam um conjunto de análises técnicas e científicas voltadas para a avaliação dos impactos de empreendimentos e atividades econômicas sobre territórios e comunidades indígenas. Esses estudos são conduzidos com a participação ativa das próprias comunidades afetadas e levam em conta aspectos culturais, sociais e ambientais específicos das populações indígenas envolvidas.. No entanto, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho: A Convenção 169 da OIT assegura o direitos dos povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais de serem consultadas de forma livre, prévia e informada sobre qualquer projeto que interfiram seus territórios e modos de vida. (OIT), que possui status de lei, estipula que os povos indígenas afetados por qualquer empreendimento ou decisão administrativa devem ser consultados antes do início do projeto. Nesse contexto, a reportagem levou em consideração a avaliação das organizações indígenas e do que determina a Convenção 169.
Novos estudos ambientais
O advogado indígena Yakau Ewésh, da Rede Xingu+: A rede reúne 32 organizações, instituições e associações de comunidades indígenas e ambientais com atuação na bacia do rio Xingu., também tem participado das reuniões do Grupo de Trabalho EF-170. Ele explica que, até o momento, o projeto da Ferrogrão não está considerando a existência das comunidades indígenas e os impactos à vida de quem mora na região.
“O projeto da Ferrogrão é um projeto muito maior [que o da BR-163]. O que acontece é que vai aumentar muito o fluxo de ocupação daquela área e com isso a possibilidade de grilagem e o consequente aumento do desmatamento. Essa é a previsão se a Ferrogrão sair. Só com a especulação da Ferrogrão já há um movimento muito grande naquela região ali”, diz Ewésh.
Em fevereiro deste ano, a rede lançou uma nota técnica solicitando que a empresa responsável pelo projeto, a INFRA S.A., realize estudos ambientais preliminares, como determina a Convenção nº 169 da OIT — ela prevê que os indígenas sejam consultados em todas as fases do projeto e que as avaliações de impacto sejam feitas antes da implementação.
No caso da Ferrogrão, a consulta não foi feita antes do chamamento do edital e o grupo de trabalho foi constituído apenas no fim do ano passado. A empresa, apesar disso, afirmou não ser necessário realizar esses estudos prévios, e informou que todas as informações estarão incluídas no Estudo de Impacto Ambiental: Documento em que são avaliados os impactos ambientais, econômicos, geográficos e sociais decorrente de um projeto cujas atividades podem causar alterações ambientais (EIA).
No documento, a Rede Xingu+ colocou 11 condicionantes para que a Ferrogrão seja implementada, dentre elas: cumprimento da proteção de patrimônio cultural material e arqueológico dos povos indígenas; apoio à elaboração e implementação de planos de gestão territorial e ambiental de TIs; avaliação de riscos climáticos no contexto da Ferrogrão; ampliação do Parque Nacional do Jamanxim na porção sudoeste, com implementação prioritária da regularização e consolidação do parque.
Mariel Nakane avalia que o projeto está desconsiderando que a ferrovia pode colocar muita coisa em risco. “Esse contexto [de crimes e exploração] mais recente é totalmente desconsiderado pelo governo. Embora a política de corredor logística e estratégico seja uma política de transportes, observar os impactos do que é implantar um corredor logístico no território, não está sendo olhado”, diz.
A reportagem enviou questionamentos ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), para saber de que forma o órgão está avaliando o impacto da ferrovia aos povos indígenas, e também ao Ministério dos Transportes, sobre os novos estudos ambientais e de que forma a consulta às comunidades locais está sendo feita. Não obtivemos respostas de nenhum dos ministérios até a publicação desta reportagem.