InfoAmazonia entrevistou o líder indígena, cuja história de vida se entrelaça com a luta pela demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e pela criação de algumas das mais importantes organizações indígenas da Amazônia.
Em 1977, lideranças indígenas da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, começaram a se reunir para discutir a demarcação do território. Entre os presentes nas assembleias, estava Jacir de Souza Macuxi, naquela época com 30 anos e representante da comunidade Maturuca, que se tornaria o local de resistência em favor da homologação da área. Eles estavam cansados da exploração garimpeira e de serem forçados a trabalhar para fazendeiros.
Foram 34 anos de luta para alcançar o objetivo de ter o direito à terra. No decorrer disso, Jacir foi um dos responsáveis por estimular a criação de uma das maiores organizações indígena do país, o Conselho Indígena de Roraima (CIR), também em 1977. Depois, partiu para Manaus, onde ajudou a fundar em 1989 a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
A InfoAmazonia entrevistou Jacir na 43ª Assembleia Geral da Região das Serras, que ocorreu entre 5 e 10 de janeiro deste ano e reuniu mais de 500 representantes indígenas de 77 comunidades da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Ele aceitou conversar com a reportagem depois de pedir que nós adivinhássemos quantos netos ele tinha. Após várias tentativas falhas, revelou que são mais de 70.
Hoje, ele tem 76 anos. Em cada debate, Jacir puxava o microfone e dava a sua opinião — e sempre era escutado com respeito. Pedia que os indígenas continuassem a repudiar o álcool nas comunidades e que o garimpo e as invasões fossem combatidas. A luta pela homologação não o deixou sem humor, mas o manteve alerta. Qualquer desconhecido é alvo de questionamentos. Em sua bolsa, carrega sempre o documento da portaria de homologação da sua terra e nunca sai sem a companheira, Eudina Macuxi. Questionado sobre o marco temporal, Jacir diz estar tranquilo, porque confia que irão vencer mais essa luta. Mas, apesar dos avanços da causa indígena nos últimos anos, ele diz não acreditar que os brancos estejam mudando de pensamento e afastando preconceitos. “Eles contam mentiras, são mentirosos, ficam inventando coisas contra a gente. Então, eu sinto que a sociedade, que as autoridades, não querem nos ajudar”.
InfoAmazonia — Como era a Raposa Serra do Sol antes da homologação e o que aconteceu depois que esse direito foi reconhecido?
Jacir de Souza Macuxi — Quando eu nasci, eu conheci a Raposa Serra do Sol já com a chegada dos garimpeiros e fazendeiros. Eles eram muitos, existiam cidades inteiras de garimpeiros aqui dentro. Então, nós fomos obrigados a trabalhar para eles.
Em 1977, eu assumi o cargo de tuxaua: Cargo de liderança concedido pela comunidade a qual a pessoa faz parte. São responsáveis por participar de assembleias, organizar movimentos e repassar informações para coordenadores regionais. e, a partir disso, eu já comecei a procurar informações sobre como demarcar essa terra. Começamos a reunir os parentes e viajar para Brasília, falando com a Funai e com os ministros. Naquela época, a gente lutava pela demarcação em área contínua. Essa luta demorou 34 anos. Nós mesmos ajudamos a fazer a delimitação para a Funai reconhecer. Não foi fácil, fizemos manifestação em cima de manifestação.
Hoje, estamos aqui com o documento da homologação, estamos reconstruindo nossa terra, nossas plantações.
Hoje, Roraima passa por um desafio importante na luta contra o garimpo. Principalmente a Terra Indígena Yanomami, mas também vocês aqui na Raposa Serra do Sol. O senhor pode falar sobre isso?
Quando entrou o presidente Bolsonaro, ele falava que iria entrar nas terras demarcadas. E isso foi feito através dos garimpeiros. Eles entraram, estão nas terras de Roraima. Precisamos expulsá-los, a presença deles é ilegal. Perdemos muitos parentes, no sangue mesmo [assassinados], por causa do garimpo. Nas nossas assembleias, discutimos tudo isso, aqui (na Raposa Serra do Sol) vamos fortalecer nossos grupos de monitoramento e segurança. Não podemos depender do Estado. Eles fazem uma operação, depois os garimpeiros vão para outro rios, mas ainda em terras protegidas. Temos que falar da destruição deles. Eles acabam com tudo, perturbam a gente, trazem bebida, acabam com as comunidades.
O STF definiu a indenização para aqueles que adquiriram terras por boa-fé. Qual é a experiência que a Raposa tem desses casos de fazendeiros que foram indenizados com a desintrusão? O senhor acha que é uma solução positiva para resolver conflitos?
Quando os fazendeiros receberam as indenizações, eles foram embora. Hoje, eu ainda tenho contato com alguns que têm loja em Boa Vista. Na época da desintrusão, eu falei: ‘olha, se você fizer uma loja, nós vamos comprar de você’.
Então, quando vou em Boa Vista, eu vou lá e compro algo. Foi uma forma de não estender esse conflito. Para a gente, foi bom porque eles já receberam dinheiro do Estado e não podem mais voltar, tem como comprovar isso, mas eles foram indenizados pelas propriedades que tinham, pela perda do gado, não só pela terra. Os advogados indígenas aqui na assembleia explicaram que a indenização só pela terra não faz sentido.
O senhor esteve durante toda a luta pela Raposa Serra do Sol, como é agora ver os direitos novamente ameaçados pelo marco temporal?
Nós vamos enfrentar o Congresso, porque eles têm que respeitar nossa gente. Nessa parte, eu estou muito tranquilo, de cabeça erguida porque eu tenho experiência com Raposa Serra do Sol, eu sei que vamos lutar e vamos vencer. Temos que continuar informando a base, ter as informações esclarecidas para repassar às lideranças. Por que vamos nos mobilizar, chamar o povo. Não tenho medo, passamos por muita coisa e ainda temos força.
O senhor foi um dos responsáveis por iniciar a organização indígena em Roraima. Como avalia as organizações indígenas do país hoje?
Quando começamos a organizar aqui em Roraima, tivemos um bom alcance e logo depois iniciamos os trabalhos na Coiab. Temos os coordenadores em cada região da Raposa Serra do Sol, temos um trabalho unificado.
Um tempo atrás, a Coiab ficou um pouco quebrada e nos unimos de novo, com o apoio do CIR ela se reergueu. Precisa ser assim, as organizações se apoiando. Quando temos manifestações, fazemos tudo, levamos comida, água, fazemos nossos movimentos serem fortes. Lá em Brasília, eles estão organizados, atacando nossas conquistas. Temos que continuar nesse caminho de cobrar nossos direitos.
E como o senhor acompanhou este primeiro ano do Ministério dos Povos Indígenas?
É importante que agora a gente dê força ao ministério. É a primeira vez que temos um ministério e temos uma história antiga que nos emociona muito, que provocou a perda dos nossos parentes. Eu agradeço muito ao Lula, porque ele homologou essa terra. A gente ficou triste quando ele foi preso, eu mandei uma cartinha pra ele. Disse que estávamos rezando por ele, ele me respondeu depois, agradecendo. Depois, ele saiu e lançou a sua candidatura. Eu acho que foi muito bom. Eu sei que ele enxerga os indígenas. Hoje, temos um ministério, temos uma representante na Funai em Brasília e uma representante na Funai aqui em Roraima. Foi o governo Lula que deu esse poder aos indígenas. A gente precisa estar dando apoio aos nossos parentes que estão nesses espaços.
Jacir, o senhor acha que a visão que o Brasil tem sobre os povos indígenas está mudando?
Olha, sobre isso, nós não estamos bem tranquilos. Se toda autoridade reconhecesse o sofrimento e os direitos dos povos indígena, eu ficaria tranquilo. Agradeceria todo presidente que passasse, todo deputado federal, todo senador. Mas o que eu vejo é que eles só estão defendendo os direitos deles, os interesses deles. Eles querem enganar os povos indígenas. Eles contam mentiras, são mentirosos, ficam inventando coisas contra a gente. Então, eu sinto que a sociedade, que as autoridades, não querem nos ajudar.