Pesquisador dos movimentos religiosos na Amazônia, Donizete Rodrigues explica como a desinformação está sendo usada por lideranças evangélicas fundamentalistas para justificar a exploração da terra e da fé.
Centenas de milhares de pessoas se amontoavam no sambódromo de Manaus, em uma noite de abril de 2005, quando o pastor televangelista: Televangelista é o pastor que usa a mídia, especificamente rádio e televisão como meio evangelizar. israelense-canadense Benny Hinn profetizou aos presentes: “Deus já fez grandes coisas pelo Brasil e coisas maiores estão por vir. Acredito que estou profetizando isso para você, não estou apenas falando, sinto profundamente no meu espírito que este país será um farol. Deus enviará sua luz através do Brasil. Coisas tremendas estão prestes a acontecer aqui”.
No início do século XX, a pregação feita durante a “Cruzada de Milagres”, um evento evangélico mundialmente conhecido, inaugurou um período de profusão de igrejas pentecostais e neopentecostais na Amazônia, mas jamais tão latente na região quanto o “pós-Hinn”.
Uma pesquisa recém-publicada pelo Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo, mostrou que o Brasil ganhou, em média, 17 novos templos evangélicos por dia em 2019.
As razões para o boom são objeto das pesquisas de Donizete Rodrigues, doutor em Antropologia Social pela Universidade de Coimbra e pesquisador do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, da Universidade Nova de Lisboa.
Em entrevista ao Mentira Tem Preço, ele, que atua como professor-convidado da Universidade do Estado do Pará, conta como e por que a desinformação se tornou ferramenta fundamental entre lideranças religiosas mais radicais na Amazônia.
Como fazemos o monitoramento:
O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pela InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.
InfoAmazonia – O monitoramento do projeto Mentira Tem Preço mapeou líderes religiosos que, com frequência, produzem e compartilham desinformação sobre a Amazônia e o meio ambiente. Por que o interesse por esses temas?
Donizete Rodrigues – Quando produzo ou compartilho desinformação, dizendo que o aquecimento global é mentira, que as mudanças climáticas são mentiras, que a Amazônia tem que ser explorada por grandes projetos, a lógica é a de atacar para descredibilizar.
A desinformação tem um efeito perverso ao tentar desconstruir a evidência científica de que a Amazônia precisa ser conservada enquanto floresta, enquanto rios, enquanto saberes tradicionais.
Quando você nega a realidade de que a Amazônia é importante não só para o Brasil, mas para o mundo todo, você abre caminho para a exploração.
A estratégia é tirar o foco, dizer que a Amazônia não é importante. Se não é importante, justifica a minha presença, a minha exploração. E justifica também a necessidade de Deus, de uma ajuda divina.
Precisamos lembrar que o movimento pentecostal no Brasil tem um forte componente econômico, a chamada teoria de prosperidade [doutrina evangélica surgida nos Estados Unidos propõe que o acúmulo de riqueza (ou ‘benção financeira’) é uma vontade divina].
A desinformação produzida por líderes radicais, na sua avaliação, é estratégica?
A desinformação é uma estratégia de poder que os grupos religiosos radicais na Amazônia abraçaram, apesar de não ser algo exclusivo deles. É pensada com profissionalismo – não é algo autônomo, genuíno – para chegar ao poder, para ganhar eleições. Normalmente, começando por destruir a imagem do meu opositor.
Isso começa nos Estados Unidos, na campanha do Donald Trump. Antes, os evangélicos achavam que não deveriam se meter com política. Mas há uma virada quando os grandes líderes ganham ou compram espaço na televisão norte-americana e percebem que detinham poder político.
Como, historicamente, as igrejas pentecostais no Brasil têm raízes nos Estados Unidos, o que acontece lá é importado para cá. E aí o que parte da bancada evangélica faz? Importa a estratégia e a tecnologia em busca desse poder. As fake news tornam-se ferramenta política, uma estratégia-modelo.
Quando começou, nos Estados Unidos, isso era utilizado na luta contra lobbys ambientais, contra quem defende a ecologia. Depois, virou estratégia também na Europa, com o Orbán [Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria desde 2010] ou na Polônia.
Quase todos os países, hoje, estão a lutar contra essa direita radical, regimes populistas, que se utiliza muito do sistema de desinformação para alcançar o poder.
Explico isso para dizer que é um método muito eficiente, e é por isso que os evangélicos radicais abraçaram essa estratégia e trouxeram para dentro das igrejas. A diferença, no Brasil, é que, em vez de apoiar políticos, eles se tornaram os próprios políticos. É só olhar para Brasília, para a bancada evangélica.
Essa ligação com o poder político-partidário explica o crescimento latente dessas megaigrejas na Amazônia nos últimos anos?
Sim. Líderes de megaigrejas desse segmento neopentecostal, mais ligado ao poder econômico e político, eram próximos ao governo (de Jair Bolsonaro-PL, 2018-2022), o que favoreceu a entrada de templos na Amazônia com esse caráter de exploração e de conversão de indígenas. Líderes espirituais indígenas foram desprezados, desrespeitados e expulsos de comunidades.
Como se deu a formação histórica das igrejas evangélicas na Amazônia?
A Amazônia, podemos dizer, é o berço do pentecostalismo no Brasil. O pentecostalismo surgiu, nos Estados Unidos, com o princípio da fragmentação, de fieis que deixaram seus templos para criar, com outras pessoas, uma nova igreja. Para pôr um pouco de ordem doutrinária nessas centenas de novas igrejas que são criadas quase como cogumelos, eles [os suecos Gunnar Vingren e Daniel Berg] criaram a Assembleia de Deus, que é uma congregação, um conjunto de igrejas.
Mas temos que voltar um pouco atrás. Primeiro tivemos as primeiras missões jesuíticas para converter os indígenas. O protestantismo surge um pouco mais tarde, no final do século XVII, e com mais intensidade no século XVIII, nomeadamente vindo dos Estados Unidos – missionários que entram na Amazônia distribuindo bíblias e tentando converter populações indígenas locais.
O pentecostalismo vem depois, como um movimento de reavivamento religioso, que surgiu nos Estados Unidos, no início do século XX. Surge em 1906 e, imediatamente, entra na Amazônia pela cidade de Belém por meio de dois missionários convertidos em Chicago. Eles chegam em Belém, de barco. Primeiro, congregam nessas igrejas protestantes históricas e depois começam um movimento pentecostal na Amazônia, nomeadamente em Belém e em Manaus.
Por que as igrejas pentecostais e neopentecostais, especificamente, tiveram tanto sucesso na Amazônia?
As igrejas neopentecostais são ‘reavivadas’, apostam na experiência do Espírito Santo, no falar em línguas, no êxtase, no transe e na cura divina. Por isso elas têm uma tendência de se comunicar com a cultura local. Há, ainda, uma correspondência direta entre o princípio religioso-espiritual do xamanismo com o pentecostalismo. Ambos os sistemas se apoiam em espíritos; praticam curas; têm êxtase, transes e sonhos. Esse paralelo facilita a conversão.
Qual é o preço da desinformação aliada ao fundamentalismo religioso na Amazônia? Há um prejuízo enorme na questão da natureza, ao terem ou apoiarem projetos de exploração do ouro, da contaminação dos rios, do desmatamento da Amazônia.
A diversidade cultural e religiosa tem que ser preservada. Se essas lideranças avançam em populações indígenas com uma lógica de conversão forçada, elas estão a criar uma homogeneização, uma cristianização forçada da Amazônia. Isso tem efeitos humanos negativos, porque os indígenas perdem sua referência cultural, religiosa, cosmológica. Desestrutura as comunidades. O resultado é trágico, não só para a Amazônia, mas para o mundo inteiro. É um etnocídio.
Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço, realizado pela InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala.
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